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Imigrantes valadarenses nos EUA |
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Valéria Cristina Scudeler Se é verdade, conforme disse importante figura do nosso cenário político, "que a melhor saída para o Brasil é o aeroporto do Galeão", teve gente que já adotou este conselho. Mas não estou falando de ex-presidente cassado nem de juiz corrupto, e sim de uma parcela não pouco expressiva - da ordem de 7% - da população [1] de uma simpática cidade do Estado de Minas Gerais, Governador Valadares. Famosa por suas pedras preciosas e semi-preciosas, Valadares ganhou destaque na mídia nacional no final dos anos 80 e início dos 90, graças à grande emigração para os Estados Unidos. No final deste século ocorreu uma inflexão interessante na história das migrações entre Brasil e nações desenvolvidas. Passamos de grandes receptores de mão de obra dos países centrais na virada do século XIX até as primeiras décadas do sec XX para "exportadores" (ainda que em níveis comparativos bastante modestos) de uma parte da nossa população, a qual parece acreditar ter melhores possibilidades de trabalho e remuneração em países mais desenvolvidos, notadamente nos EUA. Preocupados com essa mudança qualitativa no padrão migratório brasileiro, que de certa forma acompanha uma tendência mundial de emigração massiva da população de países periféricos para as nações avançadas, resolvemos fazer um estudo de caso [2] sobre o fluxo emigratório valadarense, buscar suas origens, os motivos de sua proeminência, as características e perspectivas desses imigrantes e suas reais possibilidades em obter sucesso vivendo e trabalhando clandestinamente em outro país[3]. Os primeiros resultados da pesquisa de campo em Governador Valadares mostraram que este fluxo emigratório compõe-se de trabalhadores jovens (a grande maioria tinha entre 20-34 anos quando emigrou), predominantemente do sexo masculino (mas as mulheres têm incrementado sua participação na década de 90), pertencentes às classes média e média baixa e com nenhum domínio do idioma inglês, teoricamente fundamental para sua melhor inserção no mercado de trabalho dos EUA. Seu nível de escolaridade situa-se bem acima da média da cidade, com destaque para uma participação de 13% de universitários. Mas o que leva estes jovens a deixarem para trás familiares e amigos e se aventurar a viver numa região de clima tão inóspito para nossos padrões (a maioria dos valadarenses vai para os Estados de Massachusetts, New Jersey e New York), submetendo-se a trabalhar em ocupações que dificilmente aceitariam no Brasil, por seu baixo prestígio social? A resposta é quase unânime: melhorar o padrão de vida. Em outras palavras, ganhar dinheiro rápido e voltar para a cidade de origem, adquirir bens e, se possível, montar um negócio. Parece curioso que uma cidade do interior do Brasil, de porte médio, tenha tanta relevância em termos de emigração para os EUA. O momento de crise econômica, social e política que o Brasil viveu nos anos 80, não justificaria, por si só, o número expressivo de saídas de valadarenses entre 1987-89, já que tal fenômeno não se constatou em outras cidades do país, tão penalizadas ou mais pelo cenário nacional. A resposta para esse enigma vem sendo construída ao longo da história do município, através de uma "cultura migratória" [4] e de um "imaginário coletivo" do que seria a "América". O ideal valadarense de "fazer a América" encontra suas origens nos anos 40, em meio à segunda guerra mundial, quando empresas e cidadãos americanos chegaram à região do Vale do Rio Doce para explorar a mica (mineral utilizado na construção de rádios) e trabalhar na reforma da estrada de ferro Vitória-Minas. A preparação da cidade para receber os estrangeiros e o contato destes com a população nativa contribuíram fortemente para a formação de um "imaginário coletivo" sobre a "América" enquanto terra das oportunidades e do sucesso econômico. Com o fim do ciclo da mica e de outras atividades extrativas que marcaram a prosperidade dos anos 40 e 50, nos anos 60 Valadares ingressou num período de estagnação econômica. O setor terciário, o mais desenvolvido, já não conseguia responder satisfatoriamente à demanda por empregos. Tal fato levou os valadarenses a experimentarem uma queda do nível de vida que destoou do progresso associado ao investimento e padrão de gasto proporcionado pelos americanos, tendo-se em vista que os mesmos retornaram aos EUA assim que as atividades comerciais e extrativas estabelecidas na região perderam o dinamismo. A falta de perspectivas favoráveis de emprego e rendimentos na região do Vale do Rio Doce, aliada à "cultura migratória" que se formou no desenvolvimento histórico do município, serviram como impulso para as primeiras emigrações com destino aos EUA. Estas eram, inicialmente, encaradas por seus agentes como uma "aventura" e não como uma opção de vida e trabalho. No entanto, alguns valadarenses acabaram permanecendo mais tempo no exterior e, quando retornaram à cidade, com dólares no bolso, "contando vantagens", estimularam novas iniciativas nessa empreitada. As redes sociais, que facilitam novas saídas, se intensificaram ao longo do tempo, tornando a migração menos uma aventura e mais uma opção de trabalho temporário que permite, não sem grandes sacrifícios, o acúmulo de uma reserva de capital que os emigrantes e suas famílias desejam aplicar tanto no seu sustento como na compra de bens imóveis em Governador Valadares. Deste modo, o fluxo migratório tornou-se bastante numeroso a partir dos anos 80 e, como consequência, também o volume de remessas em dólares, as quais se tornaram responsáveis pelo excepcional dinamismo do setor imobiliário valadarense vis-à-vis o contexto de crise econômica nacional daquela década. Nos últimos anos, a emigração valadarense tem contado com uma grande infra-estrutura. O projeto de migrar tornou-se, mais que uma decisão individual, um projeto de toda a família, a qual divide, mesmo permanecendo no Brasil, as responsabilidades e as aspirações concernentes a um melhor padrão de vida. As comunidades na origem e no destino criaram fortes laços transnacionais e tornaram a migração internacional uma perspectiva considerada na experiência de vida e busca de ascensão sócio-econômica de cada valadarense. No entanto, migrar para os EUA pode ser considerada uma forma de ascensão econômica para os valadarenses? Ou, ao menos, uma melhora do padrão de vida? Essas perguntas podem ter diversas respostas e variam conforme a experiência pessoal de cada imigrante. Grosso modo, a maioria dos imigrantes valadarenses não se constitui num fluxo de mão de obra qualificado e que vai assumir ocupações de alto status no país de destino. Quando lá chegam, encontram trabalho principalmente no serviço doméstico, em atividades não-qualificadas em restaurantes e na construção civil. Os salários são, indubitavelmente, maiores que os do Brasil (podem ganhar de 1,5 a 3,5 mil dólares por mês) trabalhando em dois empregos mas, para poder guardar dinheiro, acabam se submetendo a condições de habitação precárias e escassas oportunidades de lazer. Vivem entre brasileiros e, deste modo, dificilmente aprendem a falar inglês além do estritamente necessário para as funções que exercem. Para os que encaram esta empreitada como algo temporário, pode valer a pena o sacrifício, pois é fato que muitos retornaram à cidade de origem ostentando um certo padrão de consumo que dificilmente atingiriam em tão pouco tempo trabalhando no Brasil. Mas, na verdade, o perfil de imigrante temporário já não representa mais corretamente o caso dos valadarenses. Cerca de 52% do total da amostra já vive no país há 5 anos ou mais, podendo chegar a até 27 anos e 47% de todos os valadarenses que ainda vivem nos EUA estão legalizados no país. [5] A principal forma de legalização se deu através da comprovação, por meios escusos, da chegada ao país antes de 1982 (o que, de fato, não ocorreu, pois o fluxo migratório se intensificou apenas entre 1987-89). Este foi um dos critérios adotados a partir da reforma da política imigratória norte-americana, em 1986, para conceder vistos de permanência aos imigrantes. A segunda forma de legalização mais representativa foi o casamento com nativo. Na grande maioria dos casos, esse casamento foi "arranjado" apenas para que o imigrante conseguisse o visto, o que custa cerca de US$ 7 mil, incluindo as despesas com o divórcio. O fato de viverem há tanto tempo ou estarem legalizados nos EUA teria melhorado a sua forma de inserção em termos de status ocupacional? Os dados mostram que isto ocorreu muito marginalmente - cerca de 50% dos imigrantes ainda continua atuando nos trabalhos de base, que a maioria dos cidadãos norte-americanos se recusa a fazer. Portanto, parece contraditório pensar que a migração para os EUA seria uma forma de ascensão social para os valadarenses. Em se tratando dos imigrantes temporários, não é descabido considerar que eles realmente atingem um padrão de vida mais favorável, visto que conseguem aumentar seu patrimônio e adquirir bens de consumo no local de origem. Se isso representa ou não, rigorosamente, uma "ascensão social" ou uma mudança de "classe social", é uma discussão muito complexa. No entanto, ficando no âmbito de suas interpretações subjetivas e do reconhecimento da rede social de origem, muitos deles podem ser considerados vitoriosos em sua experiência migratória e assim são vistos também pelos conterrâneos. Para os que ainda vivem nos EUA e provavelmente viverão ainda por muitos anos, visto que uma boa parte já adquiriu o Green Card (visto de permanência no país), fica mais difícil avaliar suas conquistas. Sob o aspecto salarial parece compensatório, e este é um dos motivos que os faz persistir na luta, ainda que não escondam as saudades e o desejo de voltar para o Brasil. Desempenham ocupações de baixo prestígio social, às quais dificilmente se sujeitariam em Governador Valadares, mas grande parte deles acredita que seu trabalho é valorizado nos EUA e que são tratados com respeito, pelo menos nas ocupações mais bem remuneradas e que podem realizar por conta própria, como o serviço doméstico. Também afirmam que os valores da sociedade norte-americana são menos patriarcais e que existe uma primazia pela defesa de direitos sociais que, no Brasil, é incipiente. Por todos esses fatores, conseguem enxergar uma certa "ascensão social" em relação aos padrões de origem. De qualquer forma, cada imigrante tem sua própria interpretação a respeito de sua experiência e nem todos concordam que, apesar de estarem num país em que a máxima é o respeito à liberdade dos indivíduos e aos direitos dos cidadãos, eles mesmos sejam membros participantes dessa realidade. O que se percebe em seus depoimentos é uma certa confusão de idéias e uma tentativa de estar sempre justificando os trabalhos precários que desempenham pela possibilidade de ganhar mais e de viver num país desenvolvido, que garante a todos seus trabalhadores um certo padrão de conforto material. Mas, como bem afirmou Maxine Margolis [6], os imigrantes "sobem uma escada que desce". Compreender sua opção por permanecer nos EUA não passa somente pela questão dos salários e nem dos "direitos sociais" a que supostamente possam ter acesso. É preciso considerar também outros aspectos de suas vidas nos EUA, como seu espaço de socialização além do âmbito de trabalho. A constituição de uma "comunidade brasileira" lá fora serve como forte pilar de apoio pois, além de atender às suas necessidades de produtos e serviços específicos, constitui-se num território fechado, onde cada um tem seu lugar e dentro do qual podem reafirmar suas verdadeiras origens e valores. Os resultados apresentados neste artigo fazem parte da dissertação de mestrado intitulada "A Inserção de Imigrantes Brasileiros no Mercado de Trabalho dos EUA", defendida em abril de 1999 no Instituto de Economia da Unicamp, que valeu à autora o título de Mestre em Economia com especialização em Economia Social e do Trabalho. Aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp. Bolsista de Pesquisa no CESIT (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho) do Instituto de Economia da Unicamp. [1] Em 1997, a sede municipal da cidade contava com cerca de 230 mil habitantes. [2] Este artigo é baseado em uma pesquisa de campo realizada no período de 10 a 31/07/1997 em Governador Valadares - MG. O projeto que viabilizou sua implementação, aprovado pelo CNPq (MCT/FINEP/PRONEX) em fevereiro de 1997 e desenvolvido no NEPO - UNICAMP, intitula-se Imigrantes Brasileiros nos EUA - Cidadania e Identidade, e teve a coordenação da Profa Teresa Sales. [3] Cerca de 85% da amostra se dirigiu para os EUA e o restante para outros países, especialmente países europeus, Canadá e Austrália. [4] Maxine Margolis afirma existir em Valadares e nas cidades do Vale do Rio Doce uma "cultura de migrar para o exterior". Tal conceito foi elaborado pelo cientista político Wayne Cornelius, e aplica-se a comunidades com amplos padrões de migração internacional estabelecidos por longo tempo. Os descendentes de migrantes incorporam a possibilidade de também migrar em suas perspectivas de vida, e o fluxo migratório acaba retroalimentando as redes sociais do apoio que se formam nas sociedades de origem e destino. Os fatores econômicos são determinantes para as migrações, mas sua viabilização depende dos contatos e de conhecimento prévio das oportunidades no país para o qual pretendem se dirigir. Maxine Margolis, Little Brazil: Imigrantes Brasileiros em Nova York. Campinas, Papirus, 1994, p. 93-94. Neste artigo, define-se "cultura migratória" como uma predisposição, motivada por fatores de ordem histórica, cultural e sócio-econômica, a deslocamentos geográficos, tanto internos como externos a um território nacional. [5] A amostra da pesquisa se divide entre os imigrantes ausentes (que viviam nos EUA até julho de 1997, momento da pesquisa) e os retornados, que já tinham morado lá e voltado para a cidade. As participações são, respectivamente, de 2/3 e 1/3 da amostra total. [6] Maxine Margolis, op. cit., 1994. Valéria Cristina Scudeler é mestre em economia (com a tese "A Inserção de Imigrantes Brasileiros no Mercado de Trabalho dos EUA", defendida em abril de 1999 no Instituto de Economia da Unicamp) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp. |
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Atualizado em 10/12/2000 |
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