|
|||||
A
descoberta do Cafundó e o Kafundó descoberto
|
|||||
Carlos Vogt & Peter Fry A Descoberta O Cafundó é um bairro rural, situado no município de Salto de Pirapora. Está a doze quilômetros dessa cidade, a trinta de Sorocaba e a não mais de cento e cinqüenta quilômetros de São Paulo. Sua população, predominantemente negra, divide-se em duas parentelas: a dos Almeida Caetano e a dos Pires Pedroso. Cerca de oitenta pessoas vivem no bairro. Destas, apenas nove detêm o título de proprietários legais dos 7,75 alqueires de terra que constituem a extensão do Cafundó. São, conforme voz corrente na comunidade, terras doadas a dois ancestrais escravos de seus habitantes atuais pelo antigo senhor e fazendeiro, pouco antes da Abolição, em 1888. A doação feita às duas irmãs - Ifigênia e Antônia, que estão na origem das duas parentelas - teria sido muito maior. A especulação imobiliária, a ambição dos fazendeiros circunvizinhos e a falta de documentação legal por parte de seus legítimos donos foram encolhendo a propriedade para as proporções que hoje tem. Nela, seus moradores plantam milho, feijão e mandioca principalmente. Nela, criam galinhas e porcos. Tudo em pequena escala, apenas para atender parte de suas necessidades de subsitência. Fora dela, trabalham como diaristas, bóias-frias e, às vezes, no caso das mulheres, como empregadas domésticas. Assim, participam de uma economia de mercado. Sua língua materna é o português, uma variação regional que sob muitos aspectos poderia ser identificada ao chamado dialeto caipira, tal como o apresenta, por exemplo, Amadeu Amaral (1976). Usam, além disso, um léxico de origem banto, quimbundo sobretudo, cujo papel social na comunidade será referido mais adiante. O fato de serem proprietários das terras em que vivem, aliado ao fato de falarem, como eles mesmos dizem, uma "língua africana", constitui certamente a causa mais imediata da "descoberta "do Cafundó. A sua "descoberta"é recente. Data de 1978. Para ser mais exato, do dia 10 de março de 1978, quando lá estiveram os primeiros jornalistas. As primeiras notícias apareceram no jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, e n'O Estado de São Paulo no dia 19 de março do mesmo ano. Nesse dia também estivemos no Cafundó pela primeira vez. Ao Cafundó acorreram jornais e revistas dos mais representativos do país: O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, Folha de São Paulo, Veja, Isto É, entre outros. Por que esta comunidade continuou a utilizar esse léxico? Qual o sentido cultural e político dessa prática lingüística tanto no contexto das relações sociais primárias da comunidade, quanto no contexto mais abrangente das relações produzidas como efeito da "descoberta"? No caso da "língua" do Cafundó, como em todos os outros "africanismos" no Brasil, há, grosso modo, duas maneiras de abordar o assunto que chamamos por conveniência a filológica ou historicizante e a histórico-estrutural. No primeiro caso, a grande preocupação é estabelecer que certos traços culturais encontrados no Brasil contemporâneo de fato existem ou existiram na África. Essa "busca de origens" leva, após diligente pesquisa de fontes, a estabelecer o que chamamos genealogias culturais, que mapeiam a maternidade dos "africanismos" no Brasil. Efetivamente, o cientista social, através desse exercício acaba ou descobrindo "africanismos" dos quais os brasileiros não tinham conhecimento (é o caso de certos ritmos e palavras), ou legitimando com o carimbo cartorial da ciência as afirmações locais (agora no Cafundó, por exemplo, podemos constatar perante os céticos que a maioria das palavras da "língua" são de fato de origem banto). Esta perspectiva teórica filológica tende a diminuir a importância das condições históricas e sociais que fizeram e fazem com que tais traços culturais acabem sobrevivendo à travessia atlântica e se reproduzindo ao longo das gerações aqui no Brasil. Além disso, tende a minimizar o processo histórico ao longo do qual esses traços mudam de sentido e significação. Que interesse tem estabelecer e pesquisar os "africanismos" no Novo Mundo? Quando Herskovits publicou o seu livro The Myth of the Negro Past em 1941, logo no início declarou a sua intenção. As pesquisas sobre a cultura de origem africana nos E.U.A. seriam uma tentativa de "melhorar a situação inter-racial" nesse país, através de uma compreensão da história do negro, até então ignorada. Todo o livro é construído para derrubar cinco "mitos" vigentes na época. Primeiro que os negros, como crianças, reagem pacificamente a "situações sociais não satisfatórias"; segundo, que apenas os africanos mais fracos foram capturados, os mais inteligentes fugindo com êxito; terceiro, como os escravos provinham de toda parte da África, falavam diversas línguas e vinham de culturas bastante variadas, e, como foram dispersos por todo o país, não conseguiram encontrar um "denominador cultural" comum; quarto que, embora negros da mesma origem tribal conseguissem, às vezes, manter-se juntos nos E.U.A., não conseguiam manter a sua cultura porque esta era patentemente inferior à dos seus; e quinto, que "o negro é assim um homem sem um passado"(Herskovits, 1958:2). Herskovits, no prefácio da segunda edição do livro (1958:XXIX) reconhece que muita coisa mudara desde a primeira edição e diz: "De quando em vez, é verdade, ainda encontramos negros nos E.U.A. e no Caribe que rejeitam o seu passado. Mas o número dos que fazem isso está diminuindo paulatinamente, como também o número dos seus concidadãos brancos que mantém o ponto de vista anterior. E o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma segurança maior de que terá um futuro". A preocupação "filológica" de Herskovits pode ser vista, então, como um ato político numa determinada conjuntura do processo de transformação das relações entre negros e brancos nos E.U.A. O mero reconhecimento de que o negro tem história, por incrível que possa hoje parecer, foi uma luta. E também no Brasil. É mais do que evidente que a história do negro está apenas começando a ser escrita e não é por acaso que neste momento vários grupos politicamente minoritários exigem que a sua história seja revelada. Não surpreende, pois, que o Cafundó rapidamente virasse manchete. Constatar a "sobrevivência" de uma "língua africana" é algo que em si tem um sentido político importante. Aponta para o fenômeno de "resistência cultural". Mas esta "resistência cultural" não é um processo simples que se dá no confronto entre duas culturas imutáveis no tempo. Esta concepção de cultura leva a ver os "africanismos" no Brasil como sintoma de uma certa pujança metafísica das culturas africanas. Essa posição ignora que a vida social não consiste em batalhas campais entre culturas, mas sim em enfrentamentos entre grupos, categorias e indivíduos, para quem a cultura orienta a ação política e é ao mesmo tempo uma arma usada para empreendê-la. Nessas pequenas e grandes batalhas do dia a dia, a cultura vive através daqueles que a usam, e ao ser assim utilizada, ela os transforma e se transforma. Desse ponto de vista, fica evidente que a "língua africana" do Cafundó não é apenas a "sobrevivência" de uma língua banto qualquer; ela é acima de tudo uma prática lingüística em constante processo de transformação e cujo significado político e social é dado pelo contexto das relações onde ela tem vida. É a segunda abordagem, a histórico-estrutural, que se detém nesses problemas. Põe-se diante do problema da reprodução e transformação da cultura e procura resolvê-lo através de um estudo das relações sociais concretas nas quais esses traços culturais se articulam. Privilegia a natureza política e econômica das relações entre os articuladores dos "africanismos" e a sociedade envolvente. No caso do Cafundó privilegiaria a "caipiridade" do grupo, colocando em segundo plano a sua "africanidade". O que se vê como sistemático numa abordagem, torna-se ipso facto residual na outra, e vice-versa. Ao que tudo indica, o papel social da "língua africana do Cafundó" está relacionado com o que se pode chamar "uso ritual", no mesmo sentido em que outras manifestações culturais de origem africana continuaram a existir no Brasil em várias comunidades negras (candomblé, congo, capoeira, etc.). Em todos esses casos, uma outra identidade acrescenta-se àquelas que estão normalmente associadas à classe e à cor. No caso particular das pessoas do Cafundó, a "língua" acrescenta à sua identidade étnica de pretos e à sua identidade social de peões o status de "africanos". Desse modo, a "língua" possibilita uma forma de interação social, quer no interior do grupo, quer entre este e a sociedade envolvente, que difere daquelas que normalmente caracterizam as relações de trabalho num sistema produtivo. Tudo se passa como se, por uma espécie de mecanismo compensatório, fosse criado um espaço mítico no interior da situação de degradação econômica e social, característica da história das populações negras do Brasil, espaço no qual seria possível uma como que renovação ritual de uma certa identidade perdida. Assim, a "língua" pode ser vista não só como um sinal diacrítico que demarca simbolicamente a comunidade do Cafundó, mas também como um elemento importante nas interações sociais dentro e fora do grupo. Reconhecendo as origens africanas da "língua", os brancos da vizinhança que tendem a ver a gente do Cafundó como "vagabundos" são também obrigados a atribuir-lhes uma certa importância, enquanto falantes dessa estranha linguagem. Muitos brancos da região, tanto os que vivem nas ou vieram das proximidades do Cafundó, como os que convivem com os habitantes da comunidade em situações de lazer, nos bares de Salto de Pirapora, por exemplo, fazem questão, especialmente na presença de estranhos, de mostrar sua competência em falar a "língua". Com essa perspectiva analítica é possível começar a compreender porque esse sistema lingüístico particular sobreviveu até o presente, apesar de não ser "necessário" para a comunicação. O português, língua materna da comunidade, é, desse ponto de vista, muito mais eficiente. A "língua africana" teria assim sobrevivido em parte por causa dessa função ritual nas interações estabelecidas dentro do grupo e entre este e o mundo exterior. Assim, África (mesmo que mítica) e cultura caipira (ainda que real) são, ao menos, dois entre os vários sentidos que se abrem a partir do Cafundó. Pobres, até mesmo miseráveis nas relações de trabalho e produção, pretos, vagabundos ou caipiras integrados à região em que vivem, os habitantes do Cafundó, como o personagem Brás Cubas, de Machado de Assis, têm também o seu emplasto e seu motivo inconfesso: a "língua africana". "Língua" esta, que nós mesmos, pesquisadores, podemos ter contribuído, consciente e inconscientemente, para incentivá-los a falar. Tanto que as crianças começaram a se oferecer, assim que chegávamos ao bairro, para mostrar os progressos que faziam na aquisição do vocabulário banto. De um certo modo, e sem muito exagero, todo mundo foi possuído pela vertigem de "enrolar a língua". E nós, contentes com o que acontecia. Um dia, Noel Rosa de Almeida, um dos que lá moravam, nos diz que sua mulher, Dona Isaura, sabia falar uma outra língua secreta porque era descendente de bugre. De fato, Dona Isaura tem feições de índia! Isto, somado à esquizofrenia lingüística de que éramos todos tomados no Cafundó e à disposição de espírito para as grandes e originais descobertas, levou-nos a invadir a casa de Dona Isaura armados de gravadores, máquinas fotográficas, e sobretudo da esperança luminosa da revelação de mais um maravilhoso segredo histórico. Noel, o marido, nos acompanhava. Dona Isaura resistia. Falava de sua vida, de suas andanças de mulher pobre, de seu trabalho como doméstica na casa de famílias do sul, de onde viera, do tempo que já estava ali no bairro, da quantidade de filhos, das necessidades por que passavam, e nada da "língua esquisita". Depois de muita insistência nossa e do próprio marido, ela concorda em dizer alguma coisa. Nós nos preparamos para pelo menos um vocabulário tupi. Então, ela: "Schnaps trink" e "mangiare". E era tudo o que conseguia dizer de diferente. Simplesmente, havia trabalhado em casa de alemães e italianos em Curitiba e retivera essas duas expressões, que pronunciava a seu modo e com muito constrangimento. Agradecemos-lhe a colaboração e, após alguns dedos de prosa a mais, saímos. Sentíamo-nos num misto de frustação e auto-ironia. Rimos bastante de nós mesmos. Talvez para compensar a desilusão de nossa ingenuidade opressiva. Entretanto, em qualquer hipótese, é preciso levar também em conta que aquilo que se "descobre" nunca é independente do momento da "descoberta". A África no Brasil O Cafundó veio a público em 1978. A África tem sido "descoberta" no Brasil desde o Século XIX de formas muito diferentes. A literatura abolicionista, de Castro Alves a Joaquim Nabuco, tratou o negro no Brasil como um problema homogeneizado pela escravidão, enquanto mácula. A advertência de Sílvio Romero aparece no mesmo ano da Abolição. Nina Rodrigues, que aceita o desafio, vive no livro Os Africanos no Brasil a contradição entre as chamadas teorias científicas da época, baseadas principalmente em Lombroso, e a simpatia pelo problema do negro, conforme já assinalara Edison Carneiro (1964:209 segs.). De um lado, uma teoria fundada na reação da burguesia contra o socialismo nascente e que se apega ao princípio da hierarquia racial; do outro, o esforço em mostrar a pureza e a autenticidade nagô na bahia. É como se Nina Rodrigues utilizasse os princípios de pureza racial para subvertê-los pela sua aplicação extrema e contrária: o elogio da pureza negra. Adota uma teoria de fundamento racial e mesmo racista e é levado ao extremo oposto ao valorizar a pureza negra dos ritos religiosos de origem africana na bahia. E por falar em paradoxo, eis aí mais um, quem sabe muito parecido historicamente ao que caracteriza a atitude de Euclides da Cunha diante do sertanejo nordestino em Os Sertões. Num outro momento, na década de 30, com preocupações regionalistas e nacionalistas, a África no Brasil será um sinal diacrítico a distinguir ao mesmo tempo o norte e o sul do país e o próprio país do resto do mundo, em particular da Europa. Se já não é o conceito de raça que define a pureza das tradições, mas sim o de cultura, se o negro deixa de ser visto como um caso de patologia médica, a singularidade de seus comportamentos culturais tampouco deixa de obedecer a uma escala de valores na qual o autêntico é a nota máxima. Veja-se a propósito o artigo de Edison Carneiro (1964: 98-102) - "O Congresso Afro-Brasileiro da Bahia" - escrito em 1940, no qual o autor, entre os vários elogios a esse congresso realizado em 1937, o contrapõe regionalmente ao Congresso do Recife, de 1934, e disputa com ele a primazia do autêntico, baseado na pureza das apresentações dos ritos para os congressistas: "Esta ligação imediata com o povo negro, que foi a glória maior do Congresso da Bahia, deu ao certame "um colorido único", como já previra Gilberto Freyre. Artur Ramos, em carta que me escreveu sobre a entrevista ao Diário de Pernambuco, dizia: 'O material daí que [ Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco constituirá justamente a parte de maior interesse científico. O Congresso do Recife, levando os babalorixás, com sua música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque a pureza dos ritos africanos. O congresso da Bahia não caiu nesse erro. Todas as ocasiões em que os congressistas tomaram contacto com as coisas do negro foi no seu próprio meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de capoeira". (p.99) Interessante notar que essa linha genética (mais onto que filo, nesses casos) estende-se até nossos dias e constitui um argumento sempre avocado na defesa dos movimentos ou associações negras no Brasil. Veja-se, por exemplo, o que diz Lélia Gonzales no debate publicado pela Isto É (n° 73, 17/05/78: 46), por ocasião dos noventa anos da Abolição. Para contestar o caráter alienado que muitos intelectuais ou não-intelectuais atribuem ao Black-Rio, diz ela: "(...) uma semana antes eu assisti o filme do Zé Celso Martinez, o 25, então percebi elementos assim incríveis. A gente percebe que a dança que os guerrilheiros de Moçambique, não, não era dança, era treinamento, em termos de guerrilha, isto eu vi num show do Black-Rio, o mesmo tipo de movimento, ele se perpetua até nossos dias e, no entanto, o Black-Rio é encarado como movimento de alienação". Estende-se, assim, no tempo, se não mais nos estudos que lhe são dedicados, ao menos na ideologia de sua defesa, aquela premissa apontada por Edison Carneiro (1964:104) de que o negro era um estrangeiro. Esta premissa, segundo o autor baiano, teria feito com que nossos estudiosos fossem "encontrá-lo, de preferência, naquelas das suas manifestações de vida mais caracteristicamente africanas, e com especialidade nas suas religiões - um dos alvos da análise científica proposta por Sílvio Romero. (...) Estas duas atitudes - a de considerar o negro como um estrangeiro e a preferência pelas suas religiões - desgraçaram os estudos do negro". Quanto a esta última observação, não estamos muito certos da extensão da tragédia intelectual que ela pinta. O próprio Edison Carneiro, num artigo escrito em 1956 - "Nina Rodrigues" (Carneiro, E., 1964:209-217) -, em meio a várias críticas, não deixa de reconhecer todos os méritos devidos ao médico maranhense. Entre esses méritos está certamente o de ter proposto um método comparativo para o estudo dos comportamentos do negro no Brasil e na África. Edison Carneiro e Artur Ramos, apesar das diferenças que entre eles existem, foram herdeiros comuns desse método, ao qual, aliás, não poupam elogios e do qual diz explicitamente o primeiro: "Línguas, religiões e folclore eram elementos dessa comparação a que a história dava a perspectiva final. Deste modo ganhou o negro a sua verdadeira importância em face da sociedade brasileira". (p.211) É a fase heróica dos estudos do negro no Brasil. Nela, a resistência intelectual alia-se à prática desta resistência, por parte de alguns pais e de algumas mães de santo de alguns candomblés na Bahia, diante da desafricanização programática dos cultos no sul do país; nela ainda, há como que uma romantização do terreiro puro onde o conflito não aparece, onde a magia não aparece, onde, numa aliança de interesses políticos entre intelectuais e produtores da cultura, uns servem aos outros. Os Congressos de 1934, no Recife, e de 1937, na Bahia, apesar das disputas regionalistas pelo prestígio da autenticidade, partilham objetivos comuns: não apenas os de congraçar gente do povo e intelectuais, mas também, segundo os termos de Edison Carneiro (1964:100), os de "contribuir para criar um ambiente de maior tolerância em torno dessas caluniadas religiões do homem de cor"; ou, conforme Gilberto Freyre (1937:349), os de permitir que muita gente se voltasse para o assunto e descobrisse "nessas 'coisas de negro' mais do que simples pitoresco (...) uma parte grande e viva da verdadeira cultura brasileira". No que diz respeito às alianças, o depoimento de Pedro Cavalcanti (1935:244), apresentado no Congresso do Recife, é exemplar e exemplificador: "(...) em fins de 1932 reuniram-se na Diretoria Geral da Assistência a Psychopatas os paes e mães de terreiros do Recife, e ahi foram acertadas medidas sobre o livre funcionamento das seitas. Nós nos comprometíamos a conseguir da Polícia licença para tal. Os paes de terreiro nos abririam as suas portas e nos dariam os esclarecimentos necessários para que pudéssemos distinguir os que faziam religião e os que faziam exploração". Por outro lado, acreditamos que mesmo a "estrangeirização" do negro nessa fase heróica, se ocorreu, deve ser avaliada também de um outro prisma. Aquele que decorre do próprio heroísmo e romantismo da fase: seria preciso refazer a identidade do negro no país. Deixando de ser escravo, arriscava-se à marginalidade que o estigma da escravidão lhe impunha numa sociedade de homens livres. Era preciso, pois, considerá-lo estrangeiro, dar-lhe um passaporte e fazê-lo entrar novamente no país através da eleição e da dignidade de suas origens. Vê-se por aí o quanto seria interessante comparar este movimento com o movimento de valorização mítica do índio do Século XIX. Razões e impedimentos históricos os separam no tempo em quase cem anos. Apesar das diferenças que certamente serão muitas e importantes, é preciso lembrar que já Sílvio Romero, na famosa advertência citada por Nina Rodrigues, chamava a atenção para a presença do negro na cultura brasileira fazendo menção da presença da América, vale dizer do índio, em nossas selvas. Pensando nessa possível comparação é que chamamos romântica essa fase dos estudos afro-brasileiros. Contrariamente ao que muitas vezes se pensa, as alianças de interesse, as relações entre os intelectuais e os produtores da cultura negra mostram que o mercado da produção acadêmica não é restrito à própria academia. Na verdade, esse tipo de aliança gera compromissos mais amplos: aqueles em que o intelectual busca o autêntico e cartorialmente o autentifica. Uma vez reconhecida a firma, o objeto da pesquisa integra, como prova de sua autenticidade, o carimbo do intelectual. Beatriz Góis Dantas (1982:162) observa que "o movimento de legitimação dos candomblés acompanhava o movimento de aproximação mítica com a África. Os pais de terreiro que não podiam viajar bebiam a África na literatura que no Brasil se produzia sobre as crenças e práticas rituais dos candomblés mais puros". Deste fenômeno há referências não só em Roger Bastide que nos anos 40, em sua primeira viagem ao nordeste, encontra muitos pais de santo possuidores dessa literatura, mas também em Edison Carneiro (1964:208) para a Bahia, em particular no que concerne a Aninha do Axê Opô Afonjá, e René Ribeiro (1952:103) para o Recife. No sudeste, algo de semelhante ocorria. Mas o que servia para legitimar, em cima, era tido como exploração e mistificação, em baixo. Tanto assim que no dia 05/10/38 o Diário da Noite do Rio de Janeiro traz uma denúncia do mau uso que se fazia dos livros de Nina Rodrigues, de Artur Ramos, de Edison Carneiro, de Gonçalves Fernandes para atrair turistas e grã-finos e extorquir-lhes dinheiro em "autênticas macumbas" onde se negociava "com estas coisas cheirando a África". (Apud Ramos, A., 1951:159). Não é muito diferente, sob alguns aspectos, a nossa relação com o Cafundó hoje; nem é tampouco muito desigual a atitude de Dona Geni, com terreiro de umbanda em Pilar do Sul, que chamada a intervir em assuntos graves da comunidade mostra-se em seguida fortemente interessada em aprender a "língua africana" para dar maior legitimidade ao seu culto. Nós apadrinhamos a comunidade, compramos porcos, sementes, alimentos, incentivamos seus membros a não deixarem o bairro, pretigiamos o uso da "língua africana" que aos poucos foi adquirindo valor de troca, sobretudo nas relações com pesquisadores e com representantes dos meios de comunicação. Assim, além do papel de língua secreta que os moradores do Cafundó conscientemente lhe atribuem, além da função ritual, menos aparente, que nós pesquisadores lhe reconhecemos, há este outro papel - o de mercadoria-instituído independentemente da vontade e do entendimento de uns ou de outros em particular, mas no interior de sua relação. Neste caso, uma palavra do vocabulário banto do Cafundó não vale propriamente nem pelo que diz secretamente, nem pelo que esconde como parte de um ritual. Isto é, sendo sinal diacrítico, enquanto língua secreta, e signo de identidade mítica, no seu papel ritual, o léxico africano é também objeto de troca no comércio intelectual entre a comunidade e os pesquisadores. Por volta de 1950 encerra-se, segundo Edison Carneiro (1964:116), a fase afro-brasileira dos estudos do negro no Brasil. Embora sem praticá-la efetivamente, está ao mesmo tempo anunciando a chamada fase sociológica desses estudos. No mesmo artigo programático escrito em 1953 - "Os Estudos Brasileiros do Negro" -, discutindo entre outras coisas o projeto patrocinado pela UNESCO, ele escreve: "Se o negro com sua presença alterou certos traços do branco e do indígene, sabemos que estes, por sua vez, transformaram toda a vida material e espiritual do negro, que hoje representa apenas 11% da população (1950), utiliza a língua portuguesa e na prática esqueceu as suas antigas vinculações tribais para interessar-se pelos problemas nacionais como um brasileiro de quatro costados. Tudo isso significa que devemos analisar o particular sem perder de vista o geral, sem prescindir do geral, tendo sempre presente a velha constatação científica de que a modificação na parte implica em modificação no todo, como qualquer modificação no todo importa em modificações em todas as suas partes". (1964:117) Agora já não interessa mais o concerto ou o desconcerto do país em relação às nações desenvolvidas. É na dialética do universal e do particular que se hão de encontrar os caminhos para as nações do terceiro mundo. Mas este empenho programático não terá, como dissemos, maiores conseqüências na obra de Edison Carneiro, e sim na da chamada Escola Sociológica de São Paulo, com os trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, entre outros. Um caso curioso pela dualidade de comportamento teórico é o do pesquisador francês Roger Bastide. Em As Religiões Africanas no Brasil (1971:44) afirma em latim a sua identidade africana: "africanus sum". Esta adoção espontânea e um tanto emotiva de uma identidade africana, coerente com parte de seus trabalhos, é, no entanto, um pouco surpreendente quando se levam em conta as suas preocupações teóricas presentes, por exemplo, no livro que escreve com Florestan Fernandes (1959) - Brancos e Negros em São Paulo -, sob o patrocínio da UNESCO. Nessa época, a África já não tem a mesma importância epistemológica que tivera anteriormente. Importa, isto sim, a estrutura de classes no Brasil, a história particular do negro, primeiro como escravo, depois como trabalhador livre marcado pelo estigma do preconceito de cor. Ao romantismo da fase precedente substitui-se, então, um realismo de inspiração sociológica, de fundo social e de aspiração socialista. O movimento que se pode acompanhar nesses estudos, que comentamos de maneira bastante genérica, parece vir da análise em termos médico-legais, para a análise culturalista e enfim para a análise sociológica, justamente na década em que, superada a questão da nacionalidade, quer em termos de raça, quer em termos culturais, o país não tem mais que se integrar em nenhum concerto universal de nações, mas ser um dos estopins da revolta terceiro-mundista contra a desigualdade e a injustiça social. Mas 1978, quando o Cafundó foi "descoberto", são outros anos. O golpe militar de 1964 consolidou-se no poder; a guerrilha urbana foi esmagada pelas forças de repressão; os modelos universais de redenção social do homem adquirem figuras de impasses históricos; o humanismo de direita (o liberalismo) e o de esquerda (o comunismo) perdem-se nas disputas de áreas de influência e em confrontos da hegemonia política; nas entrelinhas do universalismo reaparece o indivíduo, tanto no sentido próprio quanto no de pequenos grupos e categorias: as chamadas minorias. É mais ou menos nesse contexto o painel aqui esboçado é, sem dúvida, incompleto. Tendências mais contemporâneas no estudo do negro no Brasil deveriam ser também apontadas. Entre elas, o que poderíamos chamar Lingüístico-Antropológica, na qual nosso trabalho poderia estar inscrito, caracterizando-se, de fato, por fazer uma como que Antropologia da Linguagem. Seria preciso, ainda, mencionar outras perspectivas de análise que, mesmo partilhando de atitudes teóricas comuns a outros tratamentos, têm às vezes elementos singulares de distinção. É o caso, por exemplo, da obra de Clóvis Moura que, além de associar uma visão histórico-cultural do negro às significações estruturais de sua participação na sociedade brasileira, caracteriza-se também, entre outras coisas, pelo ativismo político de seu autor, que o Cafundó é "descoberto". Mas a própria descoberta, sobre o fundo de miséria e abandono que revela, tece o processo multiplicador de outras identidades. Africano e caipira, mítico e real, estranho e distante pela "língua secreta", familiar e próximo pelas relações sociais de produção, o Cafundó é também o conjunto de representações que dele se vão construindo na diversidade de interesses que nele se cruzam. O "Kilombo do Kafundó" A Constituição de 1988 no Art. 68 do Ato das Disposições Transitórias diz o seguinte: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos." Isso reflete um movimento que se faz presente no cenário internacional e nacional e que manifesta de maneira enfática o enfoque teórico, ideológico e mesmo militante de intelectuais e de organizações na defesa da etnicidade como um valor em si mesmo. Sobre esse valor, não só se produzem novas interpretações das questões sociais envolvendo "minorias étnicas", como também se constituem ações pragmáticas visando ao fortalecimento dessas minorias, de preferência num quadro jurídico institucional constituído à caráter para atender reivindicaçoes de identidade e de reconhecimento formal para benefício legal diante dos governos e da sociedade como um todo. Como observa Neusa de Gusmão: "Ser igual é poder ser diferente e ter direito à diferença. Este é o caso das sociedades indígenas que, no Brasil, afirmam-se como parte do todo sem perder a especificidade. Estabelecem sua luta frente ao Estado-Nação, cobram-lhe responsibilidade, mas não deixam de ser um povo singular. Por outro lado, aos negros formalmente integrados, cabe a denominação de minoria social, independente da magnitude numérica e da magnitude de espaços sociais e físicos que ocupem. Aos negros enquanto minoria, se asseguram direitos singulares e similares qualitativamente àqueles conquistados pelo segmento indígena." (s/d :2) No Brasil, o ano de 1988 é ainda especial para esses fins porque se comemora o centenário da Abolição da escravidão. Em 1995, o Brasil se preparava para comemorar o tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, enquanto tramitava no Senado o projeto de lei da senadora Benedita da Silva que "regulamenta o procedimento de titulação imobiliária aos remanescentes das comunidades de quilombos, na forma do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias": É nesse novo contexto que o Cafundó torna-se Kafundó e passa de uma comunidade constituída pelo mecanismo da doação de terras a ser um quilombo. Na imprensa, o Cafundó tem recebido as mais diversas designações. Ora trata-se de um "povo distante da chamada civilização," ora é apenas um "grupo negro", às vezes é uma aldéia, quando não uma aldeia angolana, outras vezes "terra preta" (traduzindo livremente turi vimbundo) , e mais recentemente tem sido um quilombo. No jornal O Estado de São Paulo de 26 de janeiro de 1994, o jornalista José Maria Tomazela, que produziu várias reportagens sobre o Cafundó, noticia uma reunião de cerca de cem representantes de famílias herdeiras de terras "legadas por seus antepassados que totalizam mais de 150 mil hectares." De acordo com a mesma reportagem, sobre as terras reivindicadas localizam-se hoje "cidades inteiras, como Salto de Pirapora e Pilar do Sul e partes de Sorocaba, Araçoiaba da Serra e Iperó [onde está situado o Centro de Pesquisas Nucleares da Marinha Brasileira]". Sempre de acordo com a mesma reportagem, os "representantes dessas famílias herdeiras reuniram-se em Salto de Pirapora para discutir a formação de uma cooperativa de descendentes de escravos. Eles já formaram a Associação das Comunidades Negras do Kafundó." O pesquisador austríaco Gerhard Kubik, com uma tese difusionista, baseada em semelhanças mecânicas de vocabulário, de comportamentos, de sons, de construções, de formas de trabalho etc., faz do Cafundó uma verdadeira "aldéia angolana," tão angolana que ele não hesita escrever, conforme anotação do mesmo jornalista Tomazela em O Estado de São Paulo em 9 de fevereiro de 1991: "O desparecimento da identidade cultural pela mistura de negros de diversas origens no Brasil é uma tese que caiu por terra com a descoberta da aldéia." Assistimos, assim, a um movimento generalizado que, de certo modo, retoma o esforço de Herskovits na década de 1950 para contar e, sob alguns aspectos, até mesmo constituir um passado comum para os descendentes de escravos africanos. O que talvez distinga os movimentos atuais do que pretendeu Herskovits, intelectual e politicamente, ao criar uma história para o negro americano, resida numa espécie de essencialismo que se pretende hoje atribuir como herança inalienável de geração a geração e que por si só seria suficiente para garantir a identidade africana das populações negras, estejam onde estiverem, e, desse modo, garantir as condições juridico legais necessárias para os benefícios previstos, no caso do Brasil, na Constituição. Nesse clima de busca dessa essência, é que se conforma de maneira um pouco mais elaborada e sofisticada a significação do termo quilombo, da mesma forma que se instalam como que novas profissões para o antropólogo e para a entidade associativa que o representa. O conceito de quilombo torna-se mais elástico e mais abrangente. Em um trabalho recente, Flávio dos Santos Gomes distingue três tipos de quilombos na Provincia Fluminense: os que se constituiram como comunidades autônomas,`com maior perenidade, os que se organizaram como forma de pressão reivindicativa de direitos, e aqueles que se caracterizaram por pequenos bandos de bandidos e salteadores. Todos tem em comum uma relação de oposição e de resistência aos senhores. O que é interessante observar nesse trabalho é a tese de que, embora autônomas, as comunidades mais perenes de quilombolas mantinham uma relação sistémica de comércio com a sociedade escravocrata. Como diz o autor, "apesar das constantes expedições re-esravizadoras essas comunidades quilombolas já se tinham reproduzido ao longo do tempo, possuindo uma economia estável. Além dos produtos cultivados para sua subsistência, elas produziam excedentes, os quais negociavam, e mantinham troca mercantis com vendeiros locais." (Gomes, 1994:22). Nessa perspectiva, os quilombos que se constituiram como reação à escravidão estabeleceram-se muitas vezes como comunidades camponesas integradas ao sistema produtivo regional. Vê-se, portanto, que nesse caso o esforço de sofisticação do conceito, que deixa a abstração da mera resistência para a análise das relações sociais e simbólicas estabelecidas dentro do quilombo e deste com a sociedade mais ampla, incluidas aí as comunidades que continuaram escravas, vem acompanhado de uma consequência prática que, pela abrangência e sofisticação do conceito, permitiria nele incluir também as comunidades camponesas que se constituiram, não propriamente como quilombos enquanto resistência, mas como formas novas de vida pela doação ou compra das terras em que se instalaram.[2] Na linha dessa conceituação, e extrapolando o autor, poder-se-ia imaginar que, dadas as modificações históricas das condições nas quais se constituíram os quilombos no Brasil, durante os séculos de escravidão, aqueles que surgiram nos anos finais do Império conviveram com situações comunitárias nascidas por doação de terra ou por compra de terras. Do ponto de vista estrutural isto é, das relações internas e externas estas não se distinguíam muito dos quilombos históricamente anteriores, a não ser pelos elementos de perseguição e ameaça policial e judicial presentes num caso e ausentes nos outros. Por essa via - chamemos de positiva - de extrapolação poder-se-ia pensar o Cafundó como uma espécie de quilombo pacífico, embora resistente, por todas as características culturais e linguísticas que analisamos ao longo deste livro. Como diz Gusmão: "a realidade de grupos rurais negros como Campinho da Independêncioa (RJ), Cafundó (SP), Bom Jesus (Ma), Kalunga (Go), Pacoval (Pa), Rio das Rãs (Ba) e outros revelam que há uma especificidade a ser pensada, uma luta a ser encaminhada." (s/d :3) É verdade que a complexidade deste raciocínio admite atalhos, e por eles se pode chegar de modo mais rápido à essência dos africanismos hereditários, e desse modo garantir os fundamentos para os laudos periciais de identidade étnica africana que permitirão às populações negras o gozo dos benefícios constitucionais previstos no Artigo 68. Nesse sentido, leia-se o que escreve Eliane Cantarino O'Dwyer a propósito das comunidades negras da região do Rio Trombetas sobre a questão do reconhecimento da propreidade definitiva das terras em que elas vivem: "A legitimidade desse reconhecimento encontra-se registrada na memória social desses grupos que se apresentam como descendentes de um bisavô ou trisavô "mocambeiro" ao traçar oralmente suas genealogias. Segundo verificamos no trabalho de campo etnográfico, essas genealogias são concidentes em alguns pontos de suas linhas de descendência com os nomes próprios relacionados pelo casal Henri e Otille Coudreau em seus relatórios de viagem ao Trombetas e Erepecuru - Cuminá, e que identificavam os últimos 'mocambeiros de fuga'com os quais mantiveram contatos no início do século." (O'Dwyer, 1993:35). Vê-se assim o quanto os estudos antropológicos do passado adquirem uma referência jurídica que fundamenta as razões que levarão aos laudos periciais, que por sua vez permitirão a atribuicão, no "presente etnográfico" da propriedade definitiva das terras às populações que nelas vivem. O conceito teórico de identidade étnica, ou no caso específico de "remanescente de quilombo" confunde-se com uma espécie de palavra de ordem da militância política, constituindo ao mesmo tempo um princípio de explicação e a expressão de uma vontade ideológica. "A identidade étnica," continua O'Dwyer, "de 'remenescente de quilombo' emerge assim em um contexto de luta em que resistem às medidas administrativas ações econômicas através de uma mobilização política pelo reconhecimento do direito às suas terras (O'Dwyer, 1993:35). O objeto teórico da ciência inunda-se da subjetividade do pesquisador. O quanto no Cafundó conseguimos nós mesmos erigir identidades que talvez lá não estivessem antes da "descoberta" da comunidade, é uma questão e uma dúvida que nos acompanharam durante toda a pesquisa, durante toda a elaboração do livro: narradores e personagens, certamente nos entusiasmamos e nos confundimos nas histórias que contamos e nas quais fomos contados. Não chegamos contudo a grafar Cafundó com "K". Fazê-lo seria tomar um desses atalhos a que acima nos refirimos. Ou, este outro que leva Selase W. Williams a tratar a pronúncia do som "0", grafado "th" em inglês, e pronunciado como "d", "t" ou "f" pelas comunidades negras do sul dos Estados Unidos, como um sinal diacrítico da influência africana, e, consequentemente, da identidade correspondente dos seus falantes: "Dentro do escopo afrocêntrico delineado neste artigo, a variação de pronúncia do som final [0] é tratada como uma consequência de diferentes fontes em línguas africanas". (Williams, 1993:419). No anseio de encontrar sinais da identidade africana, o que tem acontecido, é que, em geral, o estudioso percorre a exterioridade desses sinais, e, não dispondo nas comunidades de "provas materiais" definitivas, num tour de force de voluntarismo, acaba, através de malabarismos lingüísticos, antropológicos, sociológicos, econômicos ou políticos, dando a pirueta que transforma a circunstância em essência e a topografia social numa confusão de acidentes. Não é o que se passa no Cafundó. A diferença não está em contrapor um essencialismo que existe numa situação e não em outra. Tudo são circunstâncias. Está em que no caso citado e em tantos outros, o sinal é tão exterior à vida social que dentro dele só há ôco e vazio de consciência. No Cafundó, como já vimos, os próprios falantes é que apresentaram a língua como africana, com a consciência de seu uso e de suas particularidades. Otávio Caetano não só falava bem a língua como fazia questão de apresentar-se como mestre dos seus segredos, com a consciência de seu papel e das funções que a língua desempenha na comunidade. A busca de provas materiais da identidade, e, na falta destas, de provas circunstanciais, ainda que extremamente exteriores, tem caracterizado um movimento político-intelectual que, mesmo nos comportamentos mais sérios, tem levado a uma tentativa de rescrever a história, criar-se um passado, e inventar-se uma tradição. Veja-se, nesse sentido, o trabalho de Flávio Gomes cujo sugestivo título é: "Inventando uma tradição: quilombolas na Capitania de São Paulo (1722-1811)". Do conceito de quilombo, passa-se ao conceito de "remanescente de quilombo." Ao se inventar um passado de essências africanas, inventa-se também um presente novo, denso de consonâncias com esse passado. É desse modo que talvez se entenda a recorrência em alguns artigos do conceito de "presente etnográfico," como, por exemplo em O'Dwyer, 1993. Organizam-se eventos, fazem-se proclamações, cria-se um calendário Zumbi para citações e referências. Em 1994, moradores de comunidades, militantes do Movimento Negro Brasileiro, cientistas sociais e representantes do poder público, reunidos em Brasília, "sob a inspiração do herói nacional Zumbi," para o I Seminário Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos, fizeram uma "proclamação ao povo brasileiro" na qual definem as carecterísticas gerais do que seriam comunidades remanescentes de quilombos: "Uma identidade étnica de preponderância negra; a ancianidade de suas ocupações fundadas em apossamento do seus territórios; a detenção de uma base geográfica comum ao grupo; organização em unidade de trabalho familiar e coletivo; e vivência em relativa harmonia com os recursos naturais existentes." Declara-se que "o título de propriedade coletiva a ser passado em nome de suas associações reforça o uso comum da terra como forma de resistência." Estabelecem-se os mecanismos periciais a as competências devidas para o reconhecimento das comunidades como remanescentes de quilombos: "Qualquer procedimento escolhido deverá conter laudos étno-históricos e antroplógicos, cabendo à Associação Brasileira de Antropologia - ABA - indicar os peritos, com o acompanhamento das comunidades remanescentes de quilombos, organizações do Movimento Negro e das entidades de apoio." E, na sequência de várias recomendações, entre as quais a de um mapeamento das comunidades negras rurais coordenado pela Fundação Cultural Palmares - FCP -, fecha-se o documento assinando-o e datando-o dentro dos padrões dos bons hábitos da Revolução Francesa: "I Seminário Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos, em Brasília, D.F. a 27 de outubro de 1994, do trigésimo ano da queda heróica do Quilombo de Palmares." Dentro desta política de identidade, o conceito de quilombo alarga-se cada vez mais, e é cada vez mais inclusivo. Tome-se por exemplo, o que escreve a esse respeito o President da FCP, Joel Rufino dos Santos: "Os grandes quilombos praticavam a posse útil da terra, a policultura e o respeito ao ecossistema. No plano político, funcionavam como cidade-estado obedientes à formula tradicional africana de poder-trava-poder. No que respeita às interações culturais, foram modelos de convivência e democracial racial - se não é forçar um pouco a mão aplicar ao passado espressões de hoje. [...] Podemos partir de uma definicão larga e elementar: seriam os aglomerados rurais de produtores livres, com maioria de negros, instalados há cem anos ou mais, por ocupação espontânea ou doação senhorial. (Negro aí não é raça nem cor. É a pessoa que se vê e é vista como negra, preta, crioula, morena etc. O tema é complexo)." Dentro dessa concepção, fica difícil não incluir o Cafundó, sem que seja contudo necessário grafá-lo com "K," e nem tampouco carregar nas tintas românticas de um coletivismo social que de fato não existe na comunidade, pelo menos nos registros que dela fizemos durante os anos do nosso trabalho. O tema, como disse o autor, é complexo. Os atalhos é que podem ser fáceis e perigosos. * Este artigo é uma refusão do primeiro e do último capítulos do livro de nossa autoria Cafundó: a África no Brasil. Editora Cia. das Letras/Ed. da Unicamp, 1996 Referências: AMARAL, A. O dialeto caipira. São Paulo, 3a. ed., 1976. BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. São Paulo, 2 vols., 1971. BASTIDE, R. & FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo, 2a. ed., 1959. CARNEIRO, E. Ladinos e crioulos. Rio de Janeiro, 1964. CAVALCANTI, P. As seitas africanas do Recife. In: Estudos Afro-Brasileiros, Rio de Janeiro, 1935. DANTAS, B.G. Vovô nagô e papai branco: usos e abusos da Africa no Brasil, Rio de Janeiro, 1988. FREYRE, G. Novos estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro, 1937. GOMES, F. dos S. "Reflexões sobre quilombos e mocambos no Brasil", (s/d), mimeo. ________. "Inventando uma tradição: quilombos na capitania de São Paulo, 1722-1811", (s/d), mimeo. GUSMÃO, N.M.M.D. "Caminhos transversos: território e cidadania negra", (s/d), mimeo. HERSKOVITS, M. The myth of the negro past, Nova Iorque, 1941. KUBIK, G. Extensionen afrikanischer kulturen in brasilien, Alano, 1991. O'DWYER, E.C. "Remanescentes de quilombos na fronteira amazônica: a etnicidade como instrumento de luta pela terra". Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA, n. 3, vol. 3, pp. 26-38, 1993. RAMOS, A O Negro na Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1956 RIBEIRO, R. Cultos afro-brasileiros do Recife (Um Estudo de Ajustamento Social). Boletim do Instituto Joaquim Nabuco em Pesquisas Sociais, Recife, número especial,1952. RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil, São Paulo, 5a. ed., 1977. ROMERO, S. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. São Paulo, 1977. SANTOS, Joel R. dos."Quilombos", (s/d) mimeo.
|
|||||
|
|||||
Atualizado em 10/12/2000 |
|||||
http://www.comciencia.br |