|
|||||
A livre circulação de trabalhadores no MERCOSUL |
|||||
Marcílio Ribeiro de Sant'ana Migração e livre circulação A região que constitui hoje o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) caracteriza-se como importante área de mobilidade laboral, tendo a migração internacional, especialmente a de origem européia, desempenhado um papel fundamental na formação socioeconômica e cultural dos países signatários do Tratado de Assunção. Na últimas décadas, observam-se significativas mudanças migratórias na região, entre as quais o aumento da mobilidade populacional entre países limítrofes, crescimento do número de migrantes indocumentados e, especialmente, a expressiva emigração com destino à Europa e aos Estados Unidos. A assinatura do Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991, transforma o cenário das relações entre os países signatários, inclusive no que tange à mobilidade sociolaboral, considerada sob um enfoque novo, o da livre circulação. Migração e livre circulação são conceitos distintos social e juridicamente: o primeiro baseia-se na noção de fronteiras fechadas e no poder de um Estado de controlar o ingresso de estrangeiros em seu território, ao passo que o segundo se vincula à idéia de fronteiras abertas e à possibilidade de os cidadãos se deslocarem livremente no espaço integrado. Há generalizado consenso de que a livre circulação de trabalhadores é direito fundamental e exigência socioeconômica, juntamente com a liberdade de circulação de capitais, de bens e de serviços, de um processo de integração plena, como a pretendida pelos Estados Partes do MERCOSUL (Pérez del Castillo, 1995; Pérez Vichich, 1999). A livre circulação é, dessas liberdades, a que externa com maior clareza a existência de um processo de integração, porque afeta diretamente a vida do cidadão, produzindo uma adesão imediata ao ideal integracionista, ao passo que a manutenção dos entraves à circulação provoca aversão a esse processo (Díaz Labrano, 1996). Ela comporta, ressaltam Goldin e Rivas, a liberdade de deslocamento a outro país por motivo de emprego ou residência, igualdade de oportunidades e de tratamento com os nacionais e o reconhecimento de outros aspectos essenciais ao bem-estar do migrante, como o acesso à seguridade social e à escolaridade, a reunião de familiares, a remessa de lucros. O Tratado de Assunção e a livre circulação de trabalhadores O Tratado de Assunção contempla, embora de forma pouco categórica --- alguns autores referem-se ao déficit do ato fundante do MERCOSUL em matéria social (Pérez de Castillo, 1995) ---, o direito de livre circulação de trabalhadores, ao estabelecer em seu art. 1º: Este Mercado Comum implica: A livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários, restrições não tarifárias à circulação de mercado de qualquer outra medida de efeito equivalente (MERCOSUL, 1992: 6). É inevitável o paralelo com o status jurídico do trabalhador comunitário na Comunidade Econômica Européia, cujo ato de criação, o Tratado de Roma (1957), já previa a liberdade de circulação e a abolição de discriminação entre trabalhadores dos Estados membros por motivo de nacionalidade no emprego, na remuneração e nas demais condições de trabalho (art. 48, 2º). A livre circulação de trabalhadores também encabeça os direitos inscritos na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989. Na presente etapa do processo de formação do MERCOSUL, definida como período de aperfeiçoamento e consolidação da União Aduaneira, a integração restringe-se às liberdades de circulação de capitais, de bens e serviços, com as salvaguardas pertinentes às listas de exceções e a produtos sujeitos a regime especial de comércio. Malgrado avanços no campo social, continua-se a focalizar a mobilidade sociolaboral na ótica da migração e das relações bilaterais, dispensando-se aos cidadãos do bloco o mesmo tratamento a que se submetem os trabalhadores oriundos de países extra-zona. Prevalece o divórcio entre as concepções subjacentes ao processo de integração, que redefinem a região como área política e econômica contínua, e a percepção das fronteiras como espaço de conflito, o que impede entender os movimentos populacionais como fator de desenvolvimento econômico e social (Pérez Vichich, 1999). A questão migratória na agenda do MERCOSUL A questão migratória é tema de interesse de vários foros sociais do MERCOSUL, especialmente do Subgrupo de Trabalho (SGT) 10 "Assuntos Trabalhistas, Emprego e Seguridade Social", órgão de apoio técnico ao Grupo Mercado Comum, integrado por representantes governamentais, empregadores e trabalhadores. A ele compete analisar os temas laborais e previdenciários e propor àquele foro executivo (GMC) as medidas compatíveis com a marcha do processo de integração regional. O estudo da temática migratória no MERCOSUL principia com a criação do SGT 11 (antecessor do SGT 10), em 1991. A Comissão n. 3 "Emprego e Migrações Laborais" é encarregada da análise da livre circulação de trabalhadores e da identificação das medidas necessárias para alcançá-la, tarefas que deveriam concluir-se até 31 de dezembro de 1994, uma vez que se previa o funcionamento do mercado comum a partir de 1º de janeiro de 1995. A inexeqüibilidade dessa meta leva os Estados Partes a definir como objetivo prioritário a implementação de uma União Aduaneira a partir de 1º de janeiro de 1995. O Protocolo de Ouro Preto, de dezembro de 1994, marca esse ponto de inflexão na pauta negociadora do MERCOSUL e estabelece os mecanismos organizacionais e técnicos capazes de viabilizar as metas do Tratado de Assunção. Na esteira dessas mudanças, o Grupo Mercado Comum institui o SGT 10 em substituição ao SGT 11. A principal conseqüências dessas medidas no campo das migrações é o deslocamento do foco de interesse da livre circulação para o diagnóstico dos fenômenos migratórios, a produção de estatísticas e a elaboração de normas, o que alguns estudiosos (Vigevani, 1998 e Pérez Vichich, 1999) interpretam como perda de importância do tema migratório na agenda do MERCOSUL. Em realidade, além das vicissitudes do projeto de formação do mercado comum, vários e complexos desafios envolvem o exercício da livre circulação. Os problemas dizem respeito principalmente ao ritmo de abertura das fronteiras, às normas reguladoras da mobilidade sociolaboral, ao reconhecimento das competências profissionais, à harmonização dos procedimentos dos serviços de imigração, aspectos insuficientemente desenvolvidos no MERCOSUL. Há, sobretudo, fortes temores quanto aos impactos da livre circulação sobre os mercados de trabalho, o nível e a qualidade do emprego, os serviços básicos e a seguridade social. Pérez de Castillo (1995), entre outros, replica não haver evidência de efeitos negativos da migração sobre o emprego. Considera, ao invés, que a maior presença de imigrantes pode gerar efeitos positivos sobre a capacidade interna de poupança, o nível da atividade econômica e as oportunidades de trabalho. No SGT 10, o tratamento dos assuntos migratórios cabe à Comissão Temática II "Emprego, Migrações, Formação e Qualificação Profissional", uma das três que o integram. Embora a livre circulação não constitua objetivo prioritário da presente etapa de integração, supõe-se que o aumento do intercâmbio comercial e de fatores de produção acarrete maior mobilidade de trabalhadores. As estatísticas sobre a entrada de estrangeiros em nosso país não sustentam tal conjetura. O Brasil, observam estudiosos da questão (Repetto Aguirre, 1995; Pérez Vichich, 1999), esteve excluído dos processos migratórios históricos entre os países da região, em razão do cunho europeizante da política migratória brasileira e da capacidade interna de suprir as exigências de mão-de-obra do crescimento industrial. A flexibilização da legislação trabalhista e a remuneração média praticada no Brasil também inibem o ingresso maciço de trabalhadores dos parceiros do bloco. As exceções ficam por conta de movimentos migratórios em zonas limítrofes e do translado de profissionais altamente qualificados aos principais centros econômicos. Em anos recentes, cresce a presença de trabalhadores indocumentados procedentes de países vizinhos no mercado de trabalho informal, como é o caso dos bolivianos no setor de confecções em São Paulo. Os dados existentes no Ministério do Trabalho e Emprego revelam que os trabalhadores procedentes do MERCOSUL somam apenas 1.293 dos 41.401 legalmente autorizados a exercerem atividade profissional ou econômica no Brasil, no período de 1998 a setembro de 2000, o que representa pouco mais de 3% do contingente total. Os argentinos respondem por cerca de 87% dos imigrantes oriundos do bloco. Músicos, artistas, esportistas e assemelhados são as categorias profissionais com maior participação (36,8%); trata-se, portanto, de profissionais com contratos de trabalho temporários. Seguem-se-lhes diretores e gerentes de empresas (21,5%), técnicos e desenhistas técnicos (9,5%), engenheiros e arquitetos (3,6%) e outros grupos de profissionais qualificados. São Paulo (47,6%), Rio de Janeiro (19,5%) e Paraná (13,0%) são os principais pontos de destino dessa força de trabalho. O trânsito fronteiriço de trabalhadores entre o Brasil e parceiros do MERCOSUL antecede a formação do mercado regional, como mostra o caso dos brasiguaios, movimento relacionado com o acesso ao mercado de terras e aos projetos de desenvolvimento rural. Supõe-se que a mobilidade nas zonas limítrofes também se tenha intensificado com o avanço da integração. Todavia, não se conta com dados ou estudos suficientemente sólidos que permitam determinar a magnitude desses fluxos, sua dinâmica e inter-relações com o entorno socioeconômico. A agropecuária e o comércio seriam as principais atividades indutoras da mobilidade fronteiriça. Estima-se que de 8 mil a 10 mil brasileiros cruzem diariamente a fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina), atraídos especialmente pelos salários, que atingem US$ 600 fixos em lojas de eletrodomésticos no lado paraguaio (Correio Braziliense, 23 jul 2000). A suposta intensificação dos deslocamentos nas zonas limítrofes e suas peculiaridades levaram o SGT a centrar esforços em duas ações interdependentes: a) o estudo das migrações fronteiriças e de seus impactos nos mercados de trabalho e serviços; e b) a elaboração de disciplina normativa comum para o trânsito de trabalhadores. Para viabilizar a execução dessas tarefas, instituiu-se a Comissão Ad Hoc de Migrações Trabalhistas, composta por representantes governamentais, empregadores e trabalhadores. A Comissão está prestes a concluir um projeto de pesquisa, que se propõe a reconceituar a fronteira como espaço ativo de relações econômicas, sociais e culturais, mais que simples elemento geográfico ou legal, e a traçar o perfil socioeconômico dos migrantes fronteiriços e de seus grupos familiares. A temática migratória tem pautado as reuniões de Ministros do Trabalho do MERCOSUL, Bolívia e Chile, que vêm seguidamente enfatizando a importância dessa questão para os países do bloco, a necessidade de respeito aos direitos do trabalho e da seguridade social e o combate a atitudes xenófobas e discriminatórias. A proteção dos imigrantes no MERCOSUL As preocupações com a garantia à proteção trabalhista e social dos imigrantes e seus dependentes transcendem o conceito e o espaço da integração, alcançando indistintamente todos os trabalhadores estrangeiros em situação regular nos países do bloco. As constituições dos Estados Partes do MERCOSUL proclamam o princípio da igualdade de tratamento a trabalhadores estrangeiros, com reservas para o exercício de algumas profissões. Os países também se obrigam a garantir tratamento igualitário aos imigrantes por força da adesão a tratados internacionais e, em especial, às convenções da Organização Internacional do Trabalho - OIT. Essas preocupações materializam-se em declarações de compromisso que figuram em vários atos do MERCOSUL, dentre os quais vale citar, por seu alcance político e prático: a) a Declaração Sociolaboral do MERCOSUL, firmada pelos Presidentes dos Estados Partes em 10 de dezembro de 1998, no Rio de Janeiro, cujo art. 4º afirma: Todos os trabalhadores migrantes, independentemente de sua nacionalidade, têm direito à ajuda, informação, proteção e igualdade de direitos e condições de trabalho reconhecidos aos nacionais do país em que estiverem exercendo suas atividades. Os Estados Partes comprometem-se a adotar medidas tendentes ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e as condições de trabalho e de vida destes trabalhadores; b) o Acordo Multilateral de Seguridade Social do MERCOSUL, subscrito em Montevidéu, em 14 de dezembro de 1997, que visa garantir aos trabalhadores migrantes e familiares o acesso às prestações da seguridade social nas condições proporcionadas aos nacionais do país em que se encontrem. O instrumento tramita nos parlamentos nacionais para ratificação, o que já ocorreu no Uruguai. A título de conclusão Resta um longo caminho a percorrer até transformar o direito de livre circulação de cidadãos e de trabalhadores em componente efetivo do projeto de integração regional. Ao SGT 10, espaço por excelência do diálogo social no âmbito do bloco, cabe oferecer os instrumentos necessários à realização dessa liberdade, que expressa de modo mais completo as relações sociais, econômicas, políticas e culturais no MERCOSUL e, portanto, dá sustentabilidade ao projeto comum de desenvolvimento. Aprofundar o conhecimento das várias dimensões da mobilidade laboral em correlação com a trajetória integracionista; criar a moldura normativa para uma circulação organizada; elaborar métodos para o reconhecimento de habilidades profissionais; estabelecer ações coordenadas entre os serviços de imigração: esses são pontos de uma agenda de trabalho do SGT 10 para a promoção gradativa da livre circulação de trabalhadores no MERCOSUL. Referências Diaz Labrano, Roberto Ruiz. O direito à livre circulação no Mercosul. Direito e Justiça. Correio Braziliense, 25 de novembro de 1996. Correio Braziliense, 23 jul 2000. Goldin, Adrin e Rivas, Daniel. Trabajadores migrantes en el ámbito del Mercosur. Revista Derecho Laboral, t. XXXV, n. 167. MERCOSUL: origem, legislação, textos básicos. Brasília: MRE, 1992. Pérez del Castillo, Santiago (coord.). Armonización de normas para la libre circulación de los trabajadores. Informe final. Programa de Apoyo Técnico para la Implantación y Puesta en Marcha del MERCOSUR .1995. Pérez Vichich, Nora. Migraciones laborales y convenios sociales en el Cono Sur; el caso de los convenios sociales argentino-chilenos. Buenos Aires: CARI; CIEDLA; Fundación Konrad Adenauer, 1999. Repetto Aguirre, Jorge G. (coord.). Proyecto Migraciones Laborales. Informe Consolidado Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay.Programa de Apoyo Técnico para la Implantación y Puesta en Marcha del MERCOSUR .1995. Vigevani, Tullo. MERCOSUL e globalização: sindicato e atores sociais. In Vigevani, T. e Lorenzetti, Jorge (coord.). Globalização e integração regional: atitudes sindicais e impactos sociais. São Paulo: LTr, 1998: 322-342. Marcílio Ribeiro de Santana é sociólogo e coordenador nacional do SGT 10 do Mercosul. |
|||||
|
|||||
Atualizado em 10/12/2000 |
|||||
http://www.comciencia.br |