|
|||||
Processos imigratórios em uma perspectiva histórica: um olhar sobre os bastidores |
|||||
Lená Medeiros de Menezes Ao alvorecer do terceiro milênio, a igualdade entre homens e mulheres no ocidente parece ser um dos maiores legados deixado pelos 1900. Apesar dos avanços e conquistas nesta dimensão das relações humanas, entretanto, determinadas resistências e mesmo de retornos no tempo causam inúmeras perplexidades. É o caso, por exemplo, do comércio sexual, que vem renascendo em vigor por toda parte, aproximando, de modo surpreendente os tempos de mundialização da Belle Époque e os tempos de Globalização que se abriram a partir do desmoronamento do mundo soviético. Nas duas últimas décadas, denúncias do tráfico de jovens brasileiras para a Europa, recorrentemente, têm sido estampadas nos jornais. A esta rota direcionada de sul para norte associa-se aquela que tem na Europa Oriental seu ponto de irradiação, como fruto de sua abertura para o ocidente e para o capitalismo. A queda do Muro de Berlim e a desintegração da União soviética, nesse caso específico, parecem ressuscitar processos que pareciam mortos desde que o comunismo, concretizado como proposta, apresentou-se como redenção. A explosão da prostituição por toda a Europa Oriental surpreende a todos que transpõem a antiga "Cortina de Ferro". Para aqueles que, por terra, viajam da Alemanha unificada para a República Tcheca, por exemplo, a longa fila de prostitutas a oferecer seus serviços ao longo dos dois lados da estrada que se abre a partir da fronteira oriental da Comunidade Européia é a constatação mais impactante de que novos tempos chegaram, não necessariamente melhores no seu conjunto. Processos semelhantes acometem países como a Polônia, nos quais o turismo sexual explode como modernidade. Não só o turista vê-se assediado por prospectos de agências variadas, diariamente jogados por parte da porta de seus quartos de hotel - inclusive os bem conceituados - como é colocado como expectador de um verdadeiro festival pornográfico nas telas da TV, no qual os seios siliconadas oferecem um espetáculo bizarro [1]. Da mesma forma que outrora, atividades artísticas ou ofertas miraculosas de emprego projetam-se como chamariz e mascaramento para mulheres desavisadas que sonham com um futuro melhor. Cumprindo trajetórias muito semelhantes àquelas que marcaram a virada inicial do século, muitas jovens, longe da terra natal, privadas de dinheiro e de documentação, tornam-se joguetes nas mãos de experientes exploradores. Atraídas por contratos enganosos ou por uma fama possível, liberdade ou dinheiro, mulheres pobres atravessam o Atlântico para descobrirem, do outro lado do oceano, uma realidade muito diferente das perspectivas projetadas em seus sonhos. A falta de referenciais básicos como amigos e familiares, bem como o confisco de passaporte e da passagem de volta continuam a ser estratégias essenciais de sujeição das mulheres envolvidas pelas máfias internacionais, em um negócio que tece malhas difíceis de serem rompidas. Para a Comissária da União Européia para Assuntos de Imigração e Tráfico de Mulheres (OIM), o tráfico configura-se como um negócio mais lucrativo e menos perigoso do que o tráfico de drogas. Enquanto este pode representar condenações que variam de 10 a 12 anos de prisão, aquele tem penas que não excedem 1 ou 2 anos, sendo muito mais difícil de ser caracterizado e comprovado, graças à complexidade das relações existentes entre as partes envolvidas e a rede de comprometimentos que, inevitavelmente, envolve todos os atores da trama. Ainda segundo a mesma organização, o tráfico de mulheres pode ser caracterizado sempre que são preenchidas quatro condições básicas: o cruzamento de uma fronteira, a existência de um intermediário que forneça transporte e carteira de identidade - seja esta falsa ou roubada -, a caracterização de uma relação comercial, e, finalmente, a entrada ou permanência ilegal da mulher no país de destino. O tráfico, dessa forma, define-se como um "processo migratório marginal" que acompanha os grandes fluxos internacionais, variando em suas rotas e impulsos, mas conservando um elemento básico propulsor: as crises internas que aquecem os movimentos populacionais, sejam elas de ordem política, econômica ou social. Nesse sentido, a proximidade dos processos vividos nos idos de 1900 e na virada dos 2000 mostra-se surpreendente. Ontem como hoje, os deslocamentos populacionais contemplam em seus bastidores o tráfico de mulheres. Ontem como hoje, o Brasil figura como um dos países envolvidos: no passado, como lugar de chegada, no presente, como lugar de partida. Considerada a longa duração, podemos dizer que o tráfico organizado impõe-se como dimensão marginal do capitalismo, atingindo fortemente as regiões em crise e as mulheres pobres. Embora a prostituição seja considerada a mais antiga das profissões, não podemos dizer o mesmo do tráfico organizado, característico da época áurea do imperialismo e, agora, da era da globalização, momentos de mundialização nas quais as migrações internacionais projetam-se como definidores de conjuntura. No ontem e no hoje, a sacralização do mercado na lógica do capitalismo liberal parece consagrar o domínio de um sexo sobre o outro, no corpo das desigualdades e violências que compõem a sua lógica. Como fenômeno de bastidores, o tráfico de mulheres acompanha os fluxos e as tendências gerais dos processos migratórios, colocando-se como lucrativo "negócio" de exportação e importação, sujeito, inclusive, a processos de monopolização. Hoje o turismo, consagrado como lucrativa indústria, alimenta esse processo, enfatizando exotismos e alteridades, impulsionando, desta forma, a sedução do diferente. No passado, coube ao discurso da modernização colocar a mesma questão, ainda que sob outros prismas, com a idéia do progresso transformando as européias em agentes civilizatórios de bastidores.[2] Nos silêncios dos bastidores da imigração de massa que da Europa orientou-se para o Brasil muitos foram os homens e mulheres que migraram por conta do tráfico. Vários deles deixaram o registro de suas histórias nos processos de expulsão a eles movidos entre 1907 e 1930, com base nas leis brasileiras que regulamentavam a matéria.[3] Goldbery e Garzulo e Nudelman podem ser destacados como exemplos paradigmáticos: - Polonês de Varsóvia, Goldbery tinha 58 anos à época da expulsão, ocorrida no ano de 1927. Acusado de traficar e explorar mulheres no Rio de Janeiro, ele foi obrigado a deixar a cidade após 17 anos de residência no país. Apelidado Rei dos Cáftens, foi considerado um indivíduo nocivo à sociedade visto há muitos anos viver de explorar o tráfico de brancas, base do negócio lucrativo de organizações internacionais. [4] - P. Garzulo, era casado, alfabetizado e tinha 43 anos quando foi expulso em 1914. Segundo o depoimento prestado por uma das mulheres que ele explorava, ela conhecera o acusado em Buenos Aires, onde trabalhava em um quilombo, deslocando-se, com ele, para o Rio de Janeiro. Garzulo já fora expulso da Inglaterra e tinha mandado de prisão na Itália, o que o caracterizava como um perigoso cáften internacional.[5] - Viúva e moradora no centro da cidade do Rio de Janeiro, a polonesa A. Nudelman tinha 34 anos quando foi processada, como caftina, em 1907, acusada de ser procuradora de muitos cáftens expulsos do Brasil. Sete mulheres, todas estrangeiras, testemunharam e declararam que a acusada tomava dinheiro às mulheres sob seus cuidados para remeter a cáftens residentes em Buenos Aires.[6] Comerciantes marginais dedicados a vender e/ou administrar o prazer, Goldbery, Garzulo e Nudelman integravam redes internacionas que se dedicavam à exploração de mulheres, abastecendo um mercado em expansão contínua nos países em processo de modernização.[7] A exploração de mulheres nos negócios do sexo não era uma atividade nova pelos idos de 1900, mas havia adquirido uma nova caracterização a medida que o capitalismo e a expansão européia haviam redesenhado o mundo e a vida urbana, promovendo a internacionalização dos mercados, a especialização dos fazeres e a expansão dos prazeres. A mulher, transformada em simples mercadoria, tornou-se um dos produtos que a Europa exportou para os outros continentes, em um novo tráfico de escravos - o das brancas- tal qual ele ficou consagrado nas conferências e convenções internacionais na época realizadas. Esse tráfico desafiava valores tornados sagrados pela ordem capitalista, definindo os cáftens como um tipo especializado de vadio, ao mesmo tempo em que demonstrava o duplo padrão de moralidade que atingia homens e mulheres, transformando a prostituta em "mal necessário" ao bom funcionamento da sociedade. Forma específica de lenocínio, caracterizada pelo tráfico internacional, o caftismo inseriu-se na lógica da divisão de mercados que marcou a vitória da industrialização na Europa e a expansão da ordem capitalista pelo mundo. Neste sentido, como qualquer outro grande negócio desenvolvido na época, revestiu-se de características monopolistas e supranacionais, tecendo complexa rede de intercâmbio entre as Europas Oriental e Ocidental, e entre a Europa e a América. Nas cidades latino-americanas em processo de modernização, jovens prostitutas estrangeiras tornaram-se personagens de destaque no drama urbano, cristalizadas no imaginário popular como símbolos marginais do progresso e de um processo "civilizatório" de bastidores. Uma dessas jovens foi C. Gutteridge, cuja história de vida demonstra a violência que acompanhou o processo de desenraizamento e sujeição que afetou centenas e centenas de mulheres: - Inglesa de nascimento, C. Gutteridge chegou ao Rio de Janeiro no ano de 1907, com 17 anos, vinda de Londres e sem falar português. Segundo seu depoimento, em processo movido contra L. Schumkler, ela fora vendida a ré na cidade de Londres, em transação protagonizada pelo amante, de nome Levy, homem que a havia acolhido quando a mesma, ao fugir da casa dos pais, encontrou-se sozinha naquela cidade. A transação efetuada na casa do amante ela só veio a compreender plenamente no Rio de Janeiro, onde foi obrigada a se prostituir, desprovida de recursos e de documentos para a volta.[10] Segundo estatística policial elaborada em 1912, relativa a um dos distritos policiais da cidade do Rio de Janeiro onde era significativa a presença de estrangeiras, em um total de 94 casas toleradas havia 299 mulheres, das quais 160 eram estrangeiras. Nesse conjunto, 33 mulheres eram russas, 30 eram italianas, 20 eram espanholas, 16 eram francesas, 15 eram portuguesas, 10 eram inglesas, 9 eram alemãs, 7 eram austríacas, 4 eram argentinas, 4 eram turcas, 3 eram romenas, 2 eram polacas, 2 eram marroquinas e 1 era suíça. Esses números demonstravam a inserção da capital brasileira em um tráfico organizado que, irradiado a partir de Paris e de Odessa, espraiava-se pelo mundo, nesses totais acrescentando-se mulheres importadas graças à ação de cáftens independentes procedentes da Europa mediterrânea. Paris posicionava-se como o foco de irradiação das novas concepções do prazer para todo o mundo penetrado pela Europa. Na França fin-de-siècle várias organizações foram criadas com o objetivo de atender a uma demanda sempre crescente, quer no tocante ao abastecimento dos prostíbulos espalhados pelo mundo segundo do modelo das maisons de tolérance, quer quanto ao dos cabarés e similares que compunham o chamado "gênero alegre", introduzido no Brasil com a inauguração do Alcazar Lirique no Rio de Janeiro de 1859. Nesse processo de irradiação, Marselha tornou-se ponto de passagem obrigatória e ponto de partida para o além-mar. Lá funcionavam inúmeras agências destinadas a emitir contratos de trabalho fictícios com vistas às viagens internacionais. É digno de destaque, também, o envolvimento de empregados dos consulados com o tráfico, como demonstra o telegrama que se segue, enviado do Brasil: Telegrafe-se a Paris: Chefe de Polícia informa que V. Gentil seguiu dia 22 Europa trazer mulheres prostituição conseguindo aí facilidades embarque simulando-se artistas apresentando contratos, passagem ida e volta com apoio de um auxiliar Consulado Paris cujo nome não pude obter. Recomendo Vossencia agir como convier conjuntamente com Cônsul para descobritr qual auxiliar e evitar fato, comunicando-me tudo.[11] Enquanto as rotas ocidentais orientavam-se, principalmente, a partir da França, as rotas orientais tinham em Odessa seu ponto de convergência e irradiação. Nessa cidade reuniam-se "traficantes das regiões balcânicas e dos extremos ocidentais que dali dispersavam-se por inúmeros países"[12], agenciando mulheres comercializadas a partir das aldeias pobres da Europa centro-oriental, impactadas por um processo acelerado e brutal de desagregação da comunidade camponesa tradicional. No tocante à América, Buenos Aires posicionava-se como terceiro centro universal do tráfico, sendo, também, o mercado distribuidor de mulheres para a América do Sul. De lá provinha grande parte das jovens que abasteciam os mercados brasileiros, principalmente, a capital. A viagem Buenos Aires - Rio de Janeiro foi realizada por vários homens e mulheres envolvidos com o tráfico, demonstrando sua ampla circulação por todo o cone sul, incluindo, inclusive, muitos retornos. H. Lichtenstein, dentre outros, pode servir de exemplo desses deslocamentos: -Encadernador por profissão, Lichtenstein era russo e tinha 32 anos quando foi expulso do Brasil em 1910, com base nas declarações de uma meretriz de nome Marie, polonesa de nascimento. Segundo ela, conhecera Lichtenstein em sua aldeia natal, sendo por ele convencida a seguir viagem para Buenos Aires. Lá, entregou-se ao meretrício e, para fugir de Lichtenstein, partiu para o Rio de Janeiro. Logo depois, porém, descoberta pelo explorador, foi novamente a ele submetida, desta feita, na cidade do Rio de Janeiro.[13] Os processos de expulsão movidos a cáftens pelas autoridades brasileiras demonstram claramente as rotas e os pólos de irradiação do tráfico que movimentou homens, mulheres e amplos recursos, compondo os bastidores da imigração de massa que sustentou as modernidades imperial e republicana no Brasil. Tomada a amostra relativa a 161 processos relativos à cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, 59 deles foram movidos contra cáftens russos e poloneses, 33 contra franceses, 29 contra italianos, 22 contra portugueses e 18 contra espanhóis. Considerando-se que a imigração portuguesa era majoritária na capital brasileira, os números tornam-se significativos, indicando o peso das rotas que se deslocavam da Europa de leste, a mesma que hoje abastece o tráfico internacional ou, pelo menos, intra-europeu. Analisar a história da imigração, desta maneira, deve significar contemplar duas perspectivas. Em uma - a "vista de cima" - pressupõe considerar as políticas migratórias, os grandes fluxos, as grandes demandas por trabalhadores e os sucessos obtidos. Na outra - a "vista de baixo" - nos quais a pobreza joga um papel fundamental, implica destacar os fracassos tão próprios dos excluídos, bem como os silêncios dos bastidores. Nesta última, sem dúvida alguma, o tráfico de mulheres ocupa um lugar de destaque, a necessitar a atenção dos pesquisadores da imigração, tendo em vista que, recorrente, afronta os discursos civilizatórios e contesta, no ontem e no hoje, o progresso humano. [1] Reflexões baseadas a partir de viagens realizadas à República Tcheca em 1998 e à Varsóvia em 2000. [2] Sobre o tema, ver Lima Barreto. Vida e morte de J.Gonzaga de Sá. São Paulo, Brasiliense, 1956.p.105-6. [3] Sobre expulsão de estrangeiros, ver Lená M. de Menezes. Os indesejáveis. Rio de Janeiro: Eduerj, 1997. [4] BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. SPJ. Módulo 101, pacotilha IJJ7 134. [5] BRASIL. ARQUIVO NACIONAL SPJ. . Módulo 101, pacotilha IJJ7 151. [6] BRASIL. ARQUIVO NACIONAL, SPJ. Módulo 101, Pacotilha IJJ7 131. [7] Para aprofundar o assunto, ver, entre outros, Lená M. de Menezes. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1890-1930). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992. (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa 2); Margareth Rago. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo, Paz e Terra, 1991. [8] As primeiras conferências datam do final do século XIX, evoluindo para a idéia de uma Convenção internacional contra o Tráfico de Brancas. A Convenção de 1910 abrangeu um enorme leque de signatários, dentre os quais o Brasil e países dos extremos orientais, dando conta de que o fenômeno tornara-se realmente internacional no início do século XX/ Posteriormente, o Tratado de Versalhes viria, também, a contemplar a questão e a Liga das Nações encaminharia a realização de novas conferências e tratados. [9] BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. SPJ. Módulo 101, pacotilha IJJ7 176. [10] Sobre o tema, ver Louis Fiaux. Les maisons de tolérance: leur fermeture. Paris: Masson et Cie Éditeurs, 1896. [11] BRASIL. ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATI. Maço 303/3/7. Documentos da Polícia do DF. 1920-1930. Ofício de 23 de abril de 1921. Citado em Os indesejáveis . Op. cit. p. 167-168. [12] Lená Medeiros de Menezes. Os estrangeiros... Op.cit. p. 32. [13] BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. SPJ. Módulo 101, pacotilha IJJ7 154. [14] BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. SPJ. Módulo 101, pacotilha IJJ7 126 a IJJ7 179. Dra. Lená Medeiros de Menezes é professora titular de História Contemporânea da Universidade do Estado do Rio de Janeiro |
|||||
|
|||||
Atualizado em 10/12/2000 |
|||||
http://www.comciencia.br |