O
potencial farmacológico das toxinas marinhas
José
Freitas
Epígrafe:"Aparentemente
para cada fármaco conhecido,
existe um protótipo de uma substância natural
encontrada nos organismos" (Dohadwalla, Índia, 1985).
O mar
ainda guarda muitos segredos por serem descobertos, sendo um deles
as substâncias que seus organismos produzem ou armazenam adaptativamente
para serem utilizadas na comunicação, defesa, predação,
inibição do desenvolvimento de competidores, reprodução
ou simplesmente como produto de seu metabolismo. Além disto,
uma mesma substância que, por um lado, pode apresentar-se
como uma toxina, por outro, pode ser a esperança para o tratamento,
e possivelmente a cura, de determinadas doenças. Partindo-se
da constatação de que substâncias isoladas de
uma esponja marinha (Cryptotethya crypta), serviram de matéria
prima para a síntese do medicamento D-Arabinosilcitosina
ou ARA-C (Citarabina ou Aracytin da Upjohn Co.), que vem sendo empregado
há muitas décadas na quimioterapia da leucemia e o
conhecido medicamento AZT (3-azido-3-deoxitimidina), que inibe a
enzima viral transcriptase reversa e empregado para o tratamento
de aidéticos é um bom exemplo que nos leva a continuar
no campo de pesquisa de fármacos marinhos. Mais recentemente,
a substância latrunculina A, isolada de outra esponja é
comercializada pela empresa americana Molecular Probes, devido à
sua ação específica em despolimerizar microfilamentos
de actina, sendo assim, um potente instrumento para utilização
em laboratórios de bioquímica. O manoalida, um terpenóide
isolado da esponja Luffariela variabilis, que tivemos oportunidade
de investigar durante estágio no Marine Sciences Institute,
University of Califórnia, USA, foi tema de pesquisas e hoje
é comercializado pelas empresas americanas RBI/Sigma Chemical
CO, como um potente inibidor da liberação de Ca++
nas células e sabemos que 25 ug dessa substância custa
hoje US$812 .00. Esses fatos, aliados à grande biodiversidade
marinha, vem estimulando cada vez mais a prospecção
de drogas originárias em organismos marinhos.
O Departamento
de Fisiologia do Instituto de Biociências e o Centro de Biologia
Marinha da USP são instituições de ensino e
pesquisa com tradição no estudo de produtos naturais
bioativos marinhos com potencial uso medicinal e mantêm cooperações
com outras instituições nacionais e internacionais.
Possui pós-graduação (Mestrado e Doutorado)
em fisiologia, onde sou responsável pela disciplina "Produtos
Naturais de Organismos Marinhos: Farmacologia e Comunicação
Química". A equipe iniciou seus estudos na área
de farmacologia de produtos naturais já no início
da década de 70 e vem contando com projetos financiados pelo
CNPq e Fapesp. Com a recente criação do Centro de
Toxinologia Aplicada um dos Cepids da Fapesp, nosso grupo passou
a integrar e realizar trabalhos em parceria com outros grupos de
pesquisa do Instituto Butantan.
No
ano passado foi concluído um dos primeiros projetos temáticos
da Fapesp outorgado ao Centro de Biologia Marinha da USP, que se
intitulava "Recursos renováveis do litoral paulista:
esponjas (porífera) e tunicados (chordata)- taxonomia, química
e farmacologia". Esse projeto já forneceu subsídios
para o conhecimento de várias espécies novas de esponjas
e tunicados, bem como substâncias de estruturas inéditas
provenientes do Canal de São Sebastião, SP portadoras
de interessantes atividades farmacológicas. Cerca de 30 compostos
foram isolados e identificados quimicamente, sendo vários
inéditos. A continuação do screening
farmacológico proposto vem demonstrando que frações
obtidas no Instituto de Química da USP em São Carlos,
SP, pelo Dr. Roberto G.S. Berlinck, de diversas esponjas coletadas
pelo Dr. Eduardo Hajdu (Museu Nacional do Rio de Janeiro) no litoral
norte paulista, mostram potentes atividades citolíticas e
anti-mitóticas. Da espécie Amphimedon viridis,
foi isolado, um composto inédito, que, de acordo com os resultados
preliminares, é capaz de ligar-se a receptores de adenosina
e agir no plexo neural mioentérico e provocar excitação
dos movimentos peristálticos do intestino de mamíferos.
Com base na estrutura química e ação farmacológica,
essas xantinas parecem ser os primeiros antagonistas de receptores
de adenosina encontrados em organismos marinhos. Quanto à
atividade anti-mitótica em células de ouriço
do mar, um método de screening empregado para a detecção
de citotoxinas, os extratos que apresentaram atividade mais potente
foram os das esponjas: G. corticostyllifera e Mycale laxissima.
Dentre os extratos aquosos das esponjas testadas até o momento,
apenas 4 apresentaram atividade neurotóxica em nervos de
crustáceos, provocando despolarizações e disparos
expontâneos de potenciais de ação. O extrato
de G. corticostyllifera foi o mais ativo nessas preparações,
na concentração de 50-ug/100 microlitros. A neurotoxicidade
verificada na câmara de sucrose gap ilustra a não
recuperação do potencial de ação controle,
possivelmente por formação de poros na membrana dos
axônios, conduzindo a uma despolarização irreversível.
O trabalho de isolamento das substâncias anti-inflamatórias
do extrato hexânico da esponja Chondrilla nucula indica
que estas são de natureza lipídica.
Na
ascídia Phallusia nigra, a Dra. Letícia Costa
Lotufo, hoje professora e pesquisadora no Ceará, encontrou
um composto que induz contrações no intestino de mamíferos
com eficácia igual à histamina. Recentemente, a partir
da extrato da ascídia colonial Didemnum granulatum,
um composto novo, denominado granulatimida foi isolado e sintetizado
pelo Dr. Roberto G.S. Berlinck, da USP, e seus colaboradores canadenses.
Como demonstrado pelos pesquisadores, essa substância inibe
um passo importante do ciclo durante a divisão celular, o
que levou a criação de uma patente com vistas a utilização
na quimioterapia do câncer.
No
Brasil, principalmente os estudos biotecnológicos com substâncias
de organismos marinhos têm sido desenvolvidos por grupos de
pesquisa da Universidade de São Paulo e universidades do
Rio de Janeiro, somando-se a outros centros de pesquisa em outros
estados brasileiros, que também já iniciaram seus
trabalhos, trazendo à tona o conhecimento de uma enorme quantidade
de novos compostos e produtos naturais, sendo que alguns já
atingiram o comércio. Sabemos que diversos crustáceos
são fontes de quitina e quitosana, as quais já vêm
sendo industrializadas no Japão (Chitin/Chitosan R &
D Institute) e estão sendo também implementadas no
Parque Tecnológico (Padetec) da Universidade Federal do Ceará,
visando a sua utilização como produtos dietéticos,
de interesse nas indústrias alimentícias e como possíveis
medicamentos. Neste caso, a quitosana atua reduzindo altos níveis
de colesterol e ácidos biliares intestinais, desta forma,
prevenindo o câncer de cólon; acelerando a cicatrização
de ferimentos, quando utilizado na forma de membrana protetora;
como anticoagulante; e até foi indicado para o tratamento
de artrite e reumatismo.
No
molusco, Aplysia dactylomela, coletado no Ceará, foram
verificadas propriedades anti-bacterianas no fluído púrpura
que este animal libera em situações de defesa. Até
a cartilagem de tubarões, também tem sido estudada
e demonstrado apresentar atividade anti-inflamatória por
autores do Ceará.
Quanto
à saúde pública, é uma concepção
errônea achar que somente o monitoramento do nível
aceitável de coliformes fecais (bactérias) encontrados
nas águas e frutos do mar já constitui um parâmetro
suficiente para garantir segurança à população
que consome frutos do mar e se utiliza do banho de mar. De acordo
com o ecólogo Ramon Margalef, o conhecimento da presença
de toxinas nos organismos marinhos tem grande interesse médico-sanitário,
devendo-se proceder sempre à vigilância sanitária
para organismos tóxicos planctônicos nas águas
onde são cultivados animais para o consumo humano. Dessa
maneira, considerando a crescente utilização dos recursos
marinhos através das mariculturas e da pesca artesanal, a
monitoração dos frutos do mar, através de coletas,
bioensaios e análises químicas, necessita ser intensificado
no litoral brasileiro. Nos laboratórios do Centro de Biologia
Marinha da USP (CEBIMar-USP) e Instituto de Biociências da
USP (Departamento de Fisiologia), estudos de toxinas marinhas, iniciaram-se
já em meados da década de oitenta, constatando a existência
das mesmas no litoral de São Paulo, porém em quantidades
residuais, sem oferecer perigo aos consumidores de mariscos. Mesmo
assim, como em outros países, trabalhos de monitoração
ao longo dos anos têm continuado na USP, a fim de prevenir
possíveis casos de envenenamentos por frutos do mar, já
que os níveis dessas toxinas podem variar durante as estações
do ano e, em certos casos, incrementos nocivos à saúde
podem vir a ocorrer após vários anos.
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O
baiacu Sphoeroides spengleri é uma espécie
de peixe que apresenta altos teores de tetrodoxina, um composto
capaz de bloquear os canais de sódio de membranas excitáveis |
José
Carlos Freitas é professor do Centro de Biologia Marinha
do Instituto de Biociências da USP
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