Gestão
da aqüicultura em ambientes multi-usuários: estudo de
caso da maricultura na baía de Florianópolis, Santa
Catarina
Luis
Vinatea Arana
Apesar
da indiscutível importância que a pesca possui para
a segurança alimentar do planeta, subsiste o sério
problema do esgotamento dos estoques pesqueiros em nível
mundial. A crise global do setor pesqueiro tem afetado profundamente
a qualidade de vida dos povos ligados aos ambientes aquáticos
(marinhos e continentais), especificamente dos pescadores artesanais.
Entretanto, recentemente tem entrado em cena a aqüicultura,
graças a sua notável capacidade de produzir organismos
aquáticos em cativeiro, característica que faz com
que seja considerada uma alternativa viável para o setor
pesqueiro. Além de sua capacidade de gerar empregos diretos
e indiretos para comunidades de pescadores artesanais, ela produz
alimentos de alto teor protéico e tem gerado divisas para
os países que a praticam através do incremento das
exportações. De fato, para a realidade do litoral
catarinense, em conseqüência da falta de opções
de subsistência das comunidades pesqueiras, o cultivo de mexilhões
e ostras (maricultura) tornou-se, a partir de 1990, dominante em
Santa Catarina.
Se
por um lado parece indiscutível a importância da aqüicultura
para a segurança alimentar das regiões litorâneas
e para o futuro imediato das comunidades de pescadores artesanais,
por outro, vários autores têm apontado recentemente
uma série de problemas sócio-ambientais ocasionados
por práticas consideradas impactantes, em estreito paralelismo
com as tendências observadas no desenvolvimento da pesca e
da agricultura modernas. O presente artigo descreve o que foi feito,
em nível de pesquisa, para determinar a possível existência
de riscos de impacto sócio-ambiental, por parte da maricultura,
no ecossistema onde se encontra inserida, os obstáculos enfrentados
pela gestão da maricultura e os subsídios para uma
possível reorientação desta atividade e dos
recursos costeiros baseados no modelo de gestão patrimonial1.
Estes objetivos de pesquisa foram alcançados mediante a reconstituição
e avaliação da estrutura e da dinâmica dos modos
de apropriação2
e dos sistemas de gestão das atividades de maricultura e
dos recursos costeiros que vêm sendo instituídos na
baía de Florianópolis, Santa Catarina.
Por
meio de depoimentos foi observado que os próprios maricultores
e os técnicos, tanto da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) quanto da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão
Rural do Estado de Santa Catarina (Epagri), são a favor do
cultivo de moluscos. Entretanto, nos pescadores e nos moradores
da beira da praia subsistem simultaneamente atitudes tanto a favor
como contra a maricultura. Para o caso dos atores que se mostraram
favoráveis à maricultura, foi verificado que, por
trás dessa atitude, subjaziam as seguintes percepções:
a atividade é geradora de renda e emprego; importante alternativa
de vida para as comunidades de pescadores artesanais; elemento de
fixação dos pescadores nas suas comunidades, fator
de conservação de recursos pesqueiros e elemento estimulador
da biodiversidade marinha, por meio do incremento dos substratos
de fixação e conseqüente aumento da cadeia alimentar
de base (produtores e consumidores primários). Por detrás
dessas percepções foram encontrados valores tais como
sensibilidade social (solidariedade, família, direito ao
trabalho, liberdade econômica, compaixão pelo necessitado)
e ambiental (preservação, consciência do direito
de se usufruir de um ambiente sadio, em que se possa desfrutar livremente
de seus benefícios), produto talvez da presença de
uma consciência sócio-ambiental clara e o suficientemente
internalizada no pensamento coletivo desses atores.
Embora
gozando do estatuto de propriedade estatal, determinadas parcelas
da baía de Florianópolis têm sido apropriadas
de forma privada pela comunidade local, através do exercício
da maricultura. Desta forma, a propriedade privada (estruturas de
cultivos e moradias) convive com os recursos de livre acesso (estoques
pesqueiros) e com a propriedade considerada pública ou coletiva
(praias) e, ao mesmo tempo, estatal (baías e terrenos de
Marina). As regras de acesso e controle de acesso à baía,
no caso específico do cultivo de moluscos marinhos, são
determinadas por duas instituições: as associações
de maricultores e a Epagri, sendo esta última a representante
legal de certos órgãos federais (Ibama, SPU e MM).
Já a transferência dos direitos de acesso concentram-se
na pessoa do maricultor e na pessoa jurídica da associação
de maricultores a qual este pertence.
Como
parte da elucidação da dinâmica de gestão
e tomada de decisões, foi importante verificar os conflitos
existentes nos atores envolvidos com a atividade de maricultura
e o ecossistema costeiro. Na Tabela 1 encontramos um resumo dos
principais conflitos encontrados.
Tabela
1. Resumo dos principais conflitos encontrados no estudo de
caso. |
ATORES |
PRINCIPAIS
QUEIXAS |
TIPO
DE CONFLITO |
Pesca
artesanal vs. pesca industrial |
Os
pescadores artesanais queixam-se que a pesca industrial
depreda e sobre-explora os recursos pesqueiros. |
Contendas
armadas, litígios. |
Pescadores
artesanais vs. maricultores |
Os
pescadores queixam-se que a maricultura limita o acesso
ao mar, faz perigar a navegação e depreda os costões rochosos. |
Rivalidade,
discussões. |
Moradores
vs. maricultores |
Os
moradores queixam-se que a maricultura degrada a paisagem
por meio do lixo e da poluição visual. |
Discussões,
litígios. |
Maricultores
vs. técnicos |
Os
maricultores queixam-se da burocracia das instituições
públicas envolvidas na gestão da atividade. Os técnicos
queixam-se da teimosia dos maricultores e, em geral, da
sua índole (?). |
Discussões. |
|
Com
relação à gestão local da maricultura
e do ecossistema costeiro, foi encontrado que maricultores, pescadores
e moradores encontram-se representados por associações
legalmente constituídas. Estas associações
se encarregam de defender os interesses de cada um desses atores,
sendo que a maioria dos conflitos acima mencionados operam-se em
nível de grupos organizados. Além dessas associações,
temos as instituições públicas que participam
da gestão e da tomada de decisões, a saber: UFSC,
Epagri, FATMA3 e Ibama.
Já no referente à maricultura propriamente dita, encontramos
que o desenvolvimento da mesma encontra-se regulado pelo Departamento
de Pesca e Aqüicultura (DPA)4,
do Ministério da Agricultura e do Abastecimento (MAA). No
que tange ao desenvolvimento da maricultura, tanto no estado de
Santa Catarina quanto no Brasil, a presente análise coloca
em evidência a falta de uma melhor integração
da aqüicultura com os planos de gerenciamento costeiro nacional
e estadual. Este fato representa um obstáculo à gestão
de recursos naturais litorâneos, já que a Agenda 21
recomenda, prioritariamente: "Estabelecer um processo integrado
de definição de políticas e tomada de decisões,
com a inclusão de todos os setores envolvidos, com o objetivo
de promover compatibilidade e equilíbrio entre as diversas
utilizações dos ecossistemas costeiros."
Se
por um lado a maricultura é um importante elemento gerador
de emprego e renda para os pescadores artesanais, por outro, há
riscos que se tornam evidentes segundo o ponto de vista do ecodesenvolvimento.
O risco da atividade ser dominada por uma racionalidade preponderantemente
mercantilista está presente tanto nas macropolíticas
públicas que visam o desenvolvimento da atividade como nos
próprios maricultores. Caso seja incentivada essa tendência,
é pouco provável que o litoral catarinense não
fique comprometido com uma eventual corrida ao superinvestimento
e conseqüente superexploração dos recursos naturais
presentes. A ocorrência de conflitos sócio-ambientais,
em função da diversidade de percepções,
racionalidades e interesses de fato reforça o risco sócio-ambiental
constatado acima. Esses conflitos demonstram que não existe
consenso quanto aos diferentes modos de se usar o recurso natural
e de se obter dele benefícios. Em outras palavras, os sistemas
de gestão da maricultura e da baía de Florianópolis
são deficitários tanto no sentido social quanto ambiental.
Apesar dos riscos existentes, a pesquisa em questão evidenciou
a presença de potencialidades que, a exemplo daquilo que
ocorre em outros países, podem ser aproveitadas visando à
criação de um sistema de gestão integrado e
descentralizado. Uma estratégia de maricultura baseada no
ecodesenvolvimento deveria levar em conta a expansão e consolidação
da maricultura, a revitalização da pesca artesanal,
a proteção de recursos costeiros e o saneamento ambiental.
No que diz respeito à primeira estratégia, a observância
das recomendações estipuladas no Capítulo 17
da Agenda 21 e a adoção do "Código de
Aqüicultura Responsável" da FAO (FAO, 1997), tanto
em nível regional quanto nacional, deveriam ser consideradas
iniciativas prioritárias.
Nas
perspectivas de médio e longo prazos, torna-se necessário
um esforço de definição dos princípios
de aqüicultura sustentável e da criação
de uma legislação específica que regulamente
o exercício dessa atividade, e que, conseqüentemente,
torne possível sua correta incorporação ao
Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro. Igualmente, a busca de
expansão e consolidação da maricultura exige
um esforço de pesquisa interdisciplinar para se determinar
a capacidade de carga do ecossistema, para se capacitar pessoal
técnico especializado capaz de integrar os cultivos às
atividades de turismo e pesca existentes e, por último, para
se industrializar5 e conferir
maior valor comercial aos produtos obtidos através das atividades
de cultivo integrado. Por sua vez, a revitalização
da pesca artesanal deveria propor, necessariamente, o cumprimento
da legislação ambiental vigente e daquela que se refere
especificamente ao ordenamento pesqueiro em nível nacional6.
Respeitar os direitos dos pescadores artesanais e reconhecer a importância
de seus valores culturais pode significar a conservação
da sociodiversidade em regiões litorâneas. Capacitação,
financiamento e recuperação de estoques pesqueiros
são alternativas complementares que também se colocam
para o ressurgimento desse importante setor da atividade econômica.
No que tange à proteção dos recursos litorâneos,
a participação da sociedade civil organizada nas atividades
de manejo costeiro deve ser considerada essencial. A dimensão
de patrimonialidade do novo sistema de gestão pressupõe
a negociação eficiente dos interesses dos diferentes
atores envolvidos na utilização dos recursos. Conforme
o ressaltado acima, tanto para revitalizar a pesca artesanal quanto
para se proteger os recursos costeiros, através das recomendações
contidas no "Código de Pesca Responsável"
da FAO, deve-se partir da "ecologização"
das tecnologias pesqueiras por meio da incorporação
do conceito de resiliência ecológica como critério
básico de racionalidade7,
ao invés do conceito reducionista de capacidade máxima
sustentável de captura, o qual tem levado a maioria dos
estoques pesqueiros do mundo a serem seriamente depredados. A atividade
de maricultura exige um alto padrão de qualidade da água;
portanto, o saneamento ambiental da baía de Florianópolis
representa condição sine qua non para se viabilizar
as estratégias mencionadas. Para se consolidar essa meta,
a educação ambiental desempenha um papel preponderante,
haja vista que toda a população residente na orla
da baía de Florianópolis é, de alguma forma,
responsável pela qualidade ambiental desse ecossistema. Tanto
a maricultura quanto a pesca e o turismo poderiam beneficiar-se
com a instauração de um programa perpétuo de
monitoramento da qualidade da água da baía. Este programa
poderia aproveitar o trabalho de monitoramento que a FATMA está
realizando, ainda de forma incipiente, em prol da balneabilidade
das praias do litoral catarinense.
Essas
alternativas são perfeitamente viáveis segundo os
pontos de vista técnico e econômico, entretanto, segundo
o ponto de vista político da gestão dos recursos,
a situação é um pouco mais complexa. Como vimos,
o ecossistema costeiro em questão encontra-se influenciado
pela ação de uma grande multiplicidade de atores,
a saber: atores individuais (moradores, turistas, pescadores, maricultores,
navegantes etc.), atores coletivos (associações, colônias
de pescadores) e atores governamentais (prefeituras municipais,
secretarias estaduais, universidades, ministérios). Dessa
forma, o desafio do sistema de gestão aqui proposto é
fazer com que a baía de Florianópolis, que é
um ecossistema costeiro e, portanto, sujeito à variabilidade,
incerteza e irreversibilidade em decorrência das dinâmicas
de ordem natural e antrópica, seja usada sustentavelmente
por todos esses atores sociais, possuidores de diferentes valores,
racionalidades e interesses.
Luis
Vinatea Arana é professor adjunto do Depto. de Aqüicultura
da Universidade Federal de Santa Catarina.
Notas:
1.
Cuja finalidade é: viabilizar estratégias de solução
de problemas sócio-ambientais presentes e futuros, minimizar
a ocorrência de conflitos, sustentabilizar a maricultura e
as atividades econômicas presentes conservando simultaneamente
o ecossistema costeiro. [voltar]
2. O conceito de modos de apropriação
articula as seguintes dimensões: (1) as representações
ou percepções dos atores implicados na utilização
de recursos renováveis; (2) as modalidades de acesso e de
controle do acesso aos mesmos; (3) os usos atuais e potenciais;
(4) as modalidades de transferência de direitos de acesso;
e, finalmente, (5) as modalidades de repartição ou
partilha dos recursos, ou dos frutos de sua exploração.
[voltar]
3. Fundação do Meio Ambiente de Santa
Catarina. [voltar]
4. Hoje Secretaria de Pesca e Aqüicultura.
[voltar]
5. Em especial, a industrialização
difusa ou descentralizada, a qual cria oportunidades de emprego
e renda longe dos grandes centros urbanos. [voltar]
6. Programa REVIZEE do Ministério do Meio
Ambiente. [voltar]
7. Em que o "equilíbrio dinâmico"
do ecossistema, ao invés do "equilíbrio estático
linear", seja a característica principal a ser considerada,
tanto nas políticas de gestão quanto nas tecnologias
de manejo e de extração do pescado. [voltar]
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