Ataques
de tubarão na costa do estado de Pernambuco
Fábio
Hazin
Desde
setembro de 1992 a novembro de 2002, praticamente 10 anos, 38 ataques
de tubarão ocorreram nas praias da região metropolitana
do Recife, o último em 14 de novembro de 2002, sendo 25 a
surfistas (3 fatais) e 13 a banhistas (10 fatais), em um trecho
de menos de 20 km de praia (entre o Paiva e o Pina), onde praticamente
nenhum ataque havia sido registrado anteriormente. A partir de janeiro
de 1995, o governo do estado decidiu proibir o surfe na área
de risco, compreendida entre o Porto de Suape e o Porto de Recife,
baixando um novo decreto em 1999. O tamanho dos tubarões
envolvidos nos ataques variou de 1 a 3 m, aproximadamente, tendo
sido confirmados como espécie agressora o tubarão
tigre, Galeocerdo cuvier, em um caso, e o cabeça-chata,
Carcharhinus leucas, em pelo menos seis outros casos.
O Laboratório
de Oceanografia Pesqueira- LOP, do Departamento de Pesca, da Universidade
Federal Rural de Pernambuco, localizada em Recife, tem conduzido
uma pesquisa intensiva sobre os tubarões na área,
desde 1994, incluindo distribuição, abundância,
reprodução, hábitos alimentares, e também
as possíveis causas do aumento na incidência de ataques.
As seguintes espécies de tubarão foram capturadas,
com espinhel, na costa pernambucana, durante o período da
referida pesquisa:
Carcharhinus
acronotus - tubarão flamengo
Carcharhinus limbatus - tubarão galha preta
Carcharhinus leucas - tubarão cabeça-chata
Carcharhinus porosus - tubarão azeiteiro
Carcharhinus plumbeus - tubarão sucuri
Ginglymostoma cirratum - tubarão lixa
Rhizoprionodon lalandii - tubarão rabo seco
Rhizoprionodon porosous - tubarão rabo fino
Galeocerdo cuvier - tubarão tigre
Sphyrna lewini - tubarão martelo
Durante
o período de 14 a 18 de novembro de 1995, o LOP, com o apoio
da Facepe promoveu um workshop internacional sobre ataques de tubarão
em Recife, o Shark Attack Workshop, do qual participaram
diversos cientistas nacionais e estrangeiros, de países como
a Austrália, Estados Unidos e África do Sul. Nessa
ocasião, os resultados das pesquisas foram avaliados, tendo
sido considerados os seguintes fatores como prováveis responsáveis
pelo aumento no número de ataques:
a)
Elevação do número de surfistas e banhistas
na região.
b) A presença de pesca de arrasto de camarão, com
rejeito, próximo às praias da área afetada.
c) A topografia submarina da região, caracterizada por um
canal adjacente à praia.
d) Mudanças climáticas que têm influenciado
os regimes de vento e precipitação nos anos recentes
(ventos do sul mais fortes e muito menos chuva, durante o período
dos ataques, particularmente em 1994).
E,
por fim, o principal fator:
e)
A construção do Porto de Suape ao sul de Recife, resultando
em um grave impacto ambiental e um acentuado aumento no tráfego
marítimo.
Parece
haver uma correlação altamente significativa entre
o número de navios no porto e a ocorrência de ataques
(qui-quadrado, P<0,001). Durante os 36 meses, antes do primeiro
decreto de proibição, entre janeiro de 1992 e dezembro
de 1994, quando 18 dos 38 ataques aconteceram, o número mensal
de navios no porto foi menor do que 25 em doze meses (nenhum ataque
aconteceu naqueles meses), variou entre 25 e 30 em 14 meses (quando
4 ataques aconteceram) e foi maior do que 30 em apenas 10 meses
(quando 14 ataques aconteceram). Todos os ataques ocorreram durante
dias de ventos sul e sudeste forte, quando as correntes oceânicas
do sul para o norte (Porto de Suape -> Recife) também
se intensificam. Ao que tudo indica, os navios parecem exercer uma
ação atrativa para os tubarões, aumentando
a probabilidade dos mesmos de se aproximarem da praia.
Os
tubarões reconhecidamente costumam seguir grandes embarcações
e navios, atraídos pelos restos de alimento e dejetos lançados
por estes ao mar ou mesmo pelo som emitido pelo motor e pela hélice
(Schultz, 1975; Baldridge, 1974). Esse comportamento explica em
parte a rapidez e ferocidade com que costumam ocorrer os ataques
de tubarão em casos de naufrágio ou a cetáceos
arpoados (Costeau e Costeau, 1970).
Algumas
espécies de tubarão, como o tubarão tigre,
um dos prováveis agressores no presente caso, possuem um
hábito alimentar bastante oportunista engolindo praticamente
tudo que encontra. Os mais variados objetos já foram encontrados
em estômagos de tubarões dessa espécie, desde
placas de carro a garrafas e sacos plásticos (Wetherbee,
1991). O tubarão cabeça-chata, por sua vez, é
um animal bastante agressivo que costuma atacar grandes presas,
inclusive outros tubarões, como aliás, constatado
também no presente trabalho. Em quase um quarto dos ataques
a seres humanos registrados no Shark Attack File (SAF) há
indicações do lançamento de lixo e dejetos
em áreas próximas, indicando claramente que os tubarões
são atraídos e/ou excitados pela presença dos
mesmos (Baldridge, 1974).
Dentre
os itens estranhos encontrados nos estômagos de tubarões
examinados no presente trabalho incluem-se 1 abacaxi inteiro, 1
repolho, 1 batata inglesa, 1 cebola, l casca de laranja, 1 lata
de cerveja vazia e 1 estopa de pano ainda suja de óleo. Os
itens antropogênicos mais comuns são as caixas de papelão
e sacos plásticos utilizados na embalagem das iscas empregadas
pelos barcos de pesca (Hazin et al., 1994). Dois exemplares capturados
encontravam-se inclusive laçados por fitas de arquear usadas
no fechamento das caixas.
Finalmente,
áreas portuárias são tradicionalmente consideradas
zonas potencialmente perigosas em função da maior
abundância de tubarões, provavelmente atraídos
pelo lixo que os navios comumente despejam no mar (Coppleson, 1982).
Esses resultados parecem indicar, portanto, que a presença
de navios pode exercer uma influência direta no comportamento
dos tubarões. Os navios costumam trafegar em áreas
distantes da costa, próximas ao talude continental, ande
habitam espécies e indivíduos de maior porte, os quais
podem ser atraídos pelas grandes embarcações
para áreas mais rasas, quando as mesmas entram em áreas
portuárias, como no caso do Porto de Suape.
Um
outro fator de grande importância foi o impacto ecológico
causado pela construção do Porto de Suape, incluindo
a destruição de vastas áreas de manguezal,
aterros e até mesmo o desvio do curso de dois rios, o Ipojuca
e o Merepe. Como essa área era relativamente virgem, era
provavelmente freqüentada por fêmeas do tubarão
cabeça-chata como área de parto, já que é
comum o hábito nesta espécie de parir os seus filhotes
em regiões estuarinas. A partir da degradação
ambiental verificada, é provável que um número
maior de fêmeas dessa espécie tenha passado a se deslocar
para o estuário mais próximo, o do rio Jaboatão,
localizado ao norte, o qual desemboca exatamente nas praias da região
metropolitana do Recife, onde ocorreram todos os ataques, ou seja,
Paiva, Candeias, Piedade, Boa Viagem e Pina. A captura de fêmeas
prenhes de cabeça-chata, com seus filhotes a termo, no estuário
do Jaboatão parece confirmar esta hipótese.
Ataques
de tubarão não são um problema recente. Existem
desde que o primeiro homem resolveu banhar-se nas águas do
mar, habitat e território dos tubarões. Ainda não
se sabe ao certo porque tubarões atacam. Acredita-se que
na maior parte das vezes os ataques ocorram por engano, isto é,
o tubarão ataca o ser humano por confundi-lo com uma presa
regular do seu hábito alimentar (Myrberg e Nelson, 1991).
É por esse motivo que na maioria dos casos os tubarões
soltam suas vítimas após o ataque, afastando-se da
área. Tanto assim que as mortes ocorrem quase sempre por
hemorragia e não por serem as vítimas devoradas (Chovan
e Crump, 1990). Não é incomum, inclusive, o tubarão
decepar um membro para regurgitá-lo em seguida. Ataques podem
ainda acontecer pelos tubarões sentirem-se ameaçados
pela presença humana ou ainda em defesa de seus territórios
(Springer e Gold, 1989).
A exemplo
do que tem acontecido nas praias do Recife, os surfistas são
comumente as vítimas mais freqüentes dos tubarões
(Cappleson, 1982). Isso ocorre em função de várias
características peculiares à prática deste
esporte, tais como:
- Os
surfistas passam a maior parte do tempo sobre as pranchas, somente
com as pernas balançando dentro d'água, o que para
o tubarão pode se assemelhar aos movimentos de um peixe em
dificuldades, debatendo-se na superfície. Em quase todos
os casos de ataques registrados nas praias da RMR, a região
atingida foram os membros inferiores ou superiores.
- Os surfistas permanecem um tempo na água bem superior ao
que os banhistas normalmente passam.
- Os surfistas usam pranchas e vestimentas com cores fortes e contrastantes,
as quais reconhecidamente atraem os tubarões.
- A prática do surfe ocorre necessariamente na zona de arrebentação
onde a profundidade é geralmente maior que na área
freqüentada pelos banhistas. Além disso, essa é
normalmente uma zona de correntes e ondas fortes, o que força
o tubarão a decisões e movimentos rápidos,
dificultando assim a identificação de uma presa em
potencial.
- A prática do surfe ocorre, por princípio, nos períodos
de maré cheia, quando a aproximação dos tubarões
é propiciada.
O fato
de que a maioria dos ataques atingiram os membros inferiores e superiores
parece confirmar que os mesmos provavelmente tenham se dado em função
do animal confundir as pernas ou braços da vítima
com uma presa regular de sua dieta alimentar. Os tubarões
definitivamente não se alimentam de seres humanos, preferindo
principalmente pequenos peixes e, em menor escala, moluscos e crustáceos,
conforme evidenciado pelo estudo do hábito alimentar.
A aparente
tendência dos ataques concentrarem-se nas fases de lua nova
e cheia, quando ocorreram 80% dos ataques, está provavelmente
associada ao fato de que nessas fases lunares a amplitude das marés
é máxima, favorecendo, portanto, não apenas
condições mais propícias para a prática
do surfe, como também uma maior aproximação
de tubarões de maior porte. Além disso, as ondas maiores
ocorrem comumente nos períodos de maré alta, o que
no caso das marés de sizígia (luas nova e cheia) acontece
em torno de 4:00h e 16:00h, ou seja, ao nascer do sol e ao cair
da tarde, períodos em que a maioria dos tubarões de
maior agressividade encontram-se também mais ativos (Randall,
1967), em contraposição ao que ocorre nas luas de
quarto crescente e minguante, quando a maré alta se dá
por volta das 10:00h e 22:00h.
De
forma análoga, a menor incidência de ataques no período
de abril a junho pode decorrer de ser este um período sem
férias escolares e de maior intensidade de chuvas, o que
certamente resulta em uma redução significativa de
banhistas e surfistas na orla marítima. Além disso,
este é o período de ventos mais fracos, desfavorecendo
assim a formação de ondas propícias à
prática do surfe. Um outro aspecto é que os ventos
de sul e sudeste tornam-se bem mais freqüentes e mais fortes
a partir de julho, intensificando as correntes no sentido Suape
Þ Recife, como citado acima. Isso explicaria a maior incidência
de ataques entre julho e setembro. Além disso, as fêmeas
de cabeça chata parecem se aproximar com mais freqüência
dos estuários para parir os filhotes, ao fim do período
chuvoso o que no estado de Pernambuco coincide exatamente com o
mês de julho. Se somarmos os fatores acima é fácil
concluir que a combinação de uma lua nova ou cheia,
no período de julho a setembro, coincidindo com um final
de semana, fazem com que as chances de ocorrência de um ataque
sejam máximas.
Conforme
comentado, a análise dos casos de ataque não deixa
nenhuma dúvida de que os mesmos não foram causados
por um único tubarão. Eles indicam, entretanto, que
em alguns casos seqüenciados e com grande proximidade de data,
um único animal possa, de fato, haver sido responsável.
O padrão parece seguir o modelo mais comum em casos de ataques
sucessivos (Coppleson, 1982) em que animais isolados, ao que parece,
permaneceriam em uma determinada área por breves períodos
de tempo, afastando-se da mesma após uma curta série
de ataques. A hipótese de que os ataques tenham sido provocados
por indivíduos isolados parece encontrar respaldo nos baixos
índices de abundância observados, em verdade até
5 vezes inferiores aos obtidos em prospecções anteriores
(Sudene, 1983). Definitivamente, portanto, a costa do estado de
Pernambuco não encontra-se infestada por tubarões,
não podendo-se conseqüentemente atribuir a elevação
dramática do número de ataques a uma superabundância
de tubarões. A captura esporádica do tubarão
tigre, Galeocerdo cuvier, e do cabeça-chata, Carcharhinus
leucas, contudo, confirmam a ocorrência dessas espécies
altamente agressivas na área prospectada, corroborando as
mesmas como principais suspeitas nos casos de ataques e fornecendo
evidência adicional de que indivíduos isolados teriam
sido responsáveis pelos incidentes ocorridos.
A configuração
topográfica do trecho Boa Viagem-Piedade pode ser considerada
ainda como mais um fator agravante no problema dos ataques. A presença
de um banco de areia mais raso, com profundidades entre 1 e 3 m,
a cerca de 1,000 m da costa, estendendo-se desde o Pina até
os arrecifes de Candeias, precedido por um canal mais profundo,
com profundidades entre 5 e 8 m, adjacente à praia, confere
a esse trecho do litoral uma condição altamente propícia
à ocorrência de ataques. Zonas de canal em áreas
de mar aberto são normalmente consideradas como de alta periculosidade,
onde banhistas e surfistas devem ter sempre grande cautela (Schultz,
1975; Coppleson, 1982). A existência de uma população
relativamente grande de raias nessa faixa do litoral, pertencentes
a 10 espécies diferentes, mas, principalmente à raia
pintada, Aetobatus narinari, e à raia lixa, Dasyatis
guttata, constatada pela presente pesquisa, poderia não
apenas contribuir para atraí-los como também favorecer
uma estadia mais longa dos mesmos nesse local. Além disso,
as ondas se formam exatamente na borda do canal, em função
da redução na profundidade, sendo esse exatamente
o local onde os surfistas permanecem a maior parte do tempo esperando
a formação das melhores ondas.
Fábio
Hazin é professor do Departamento de Pesca da Universidade
Federal Rural de Pernambuco - UFRPE / PE.
|