A
Mata Atlântica e o aquecimento global
Carlos
Alfredo Joly
A Mata Atlântica
As formações florestais do Brasil podem ser divididas
em dois grupos básicos - as formações amazônicas
e as formações atlânticas. Estas, ao longo do
tempo geológico, deram origem a Mata Atlântica sensu
lato. As evidências acumuladas nos últimos anos
permitem aceitarmos, hoje, que a Mata Atlântica sensu lato
é constituída por um conjunto de formações
vegetais arbóreas - como a Floresta Ombrófila Densa,
a Floresta Ombrófila Aberta, a Floresta Ombrófila
Mista, a Floresta Estacional Semidecidual, a Floresta Estacional
Decidual e os Manguezais - e não arbóreas como a vegetação
de Duna e de Campos de Altitude (Joly et al 1999; Oliveira Filho
& Fontes 2000). Vide mapas no endereço www.sosmatatlantica.org.br.
As
formações florestais da costa Atlântica, especialmente
as da Serra do Mar, estão entre as mais antigas do Brasil,
pois sua origem remonta ao período Cretáceo. As famílias
de parte das espécies arbóreas que recobrem estas
escarpas cristalinas a milhões de anos são tão
antigas que Martius, em sua extraordinária Flora Brasiliensis,
as considera gondwanicas. O mesmo não se aplica às
plantas herbáceas e, muito menos, às epífitas,
cujo processo de especiação é muito mais recente.
Qualquer
que seja o grupo taxonômico considerado, a estimativa do número
de espécies na Mata Atlântica está entre os
maiores do planeta. Aproximadamente, temos 250 espécies de
mamíferos; 1.023 de aves; 197 de répteis; 340 de anfíbios;
350 de peixes e 20.000 de plantas vasculares. Não é
possível determinarmos o número de espécies
de invertebrados e microrganismos que ocorrem no bioma. Estima-se
que pelo menos 40% das espécies de Mata Atlântica são
endêmicas, isto é, ali ocorrem exclusivamente.
Estas três características - 93% da área originalmente
ocupada já ter sido devastada; a riqueza de espécies;
e o alto grau de endemismos - caracterizam a Mata Atlântica
como um hotsptot (Miers et al 2000; http://www.conservation.org.br/hotspots/index.htm).
A
pressão antrópica
A Mata Atlântica está tão fortemente vinculada
com a história do Brasil, que até o nome do país
tem como origem uma espécie arbórea endêmica
desta formação, o pau-brasil (Caesalpinea echinata
Lam. - Leguminosae/Caesalpinoideae). A exploração
do pau-brasil foi o primeiro de uma série de ciclos econômicos
- como o ciclo da cana-de-açúcar, o ciclo da mineração
e o ciclo do café - que, ao longo de 500 anos, reduziram
os 1.300.000 km2 de Mata Atlântica aos cerca de 100.000 km2
que restam hoje.
Além
de representarem apenas 7% da área originalmente ocupada,
os remanescentes de Mata Atlântica encontram-se altamente
fragmentados e sob uma forte pressão antrópica, pois
120 milhões de brasileiros vivem na região. Considerando
o conjunto de Unidades de Conservação federais, estaduais
e municipais hoje existente, apenas 1% das áreas que ainda
conservam a vegetação nativa está protegido.
Diversos
autores (Salis et al 1995; Torres et al 1997; Scudeller 2002) têm
demonstrado que a distribuição de espécies
arbóreas de Mata Atlântica está diretamente
correlacionada com características climáticas, especialmente
a temperatura e a precipitação. No estado de São
Paulo, por exemplo, nas áreas mais elevadas e, consequentemente,
mais frias como Atibaia e Japi, a família Myrtaceae substitui
a família Leguminosae em termos de importância. A mudança
na composição florística dessas matas resulta
em uma significativa alteração estrutural, as árvores
são mais baixas e com caules, geralmente, de um diâmetro
menor.
Mudanças
climáticas afetam portanto não só o limite
de biomas, mas também a distribuição de espécies
dentro destes. As flutuações climáticas do
Quaternário levaram a retração e expansão
dos principais biomas brasileiros. Nos períodos mais frios
e secos, que tiveram seu último pico a 18.000 anos atrás,
a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica ficaram restritas
às áreas hoje conhecidas como refúgios (Brown
Jr & Ab'Saber 1979), enquanto que os Cerrados e a Caatinga se
expandiram cobrindo boa parte do território nacional.
"A
presença de espécies tipicamente amazônicas
nas formações atlânticas do sul da Bahia e norte
do Espírito Santo, por um lado, e a presença de espécies
típicas da bacia dos rios Paraná e Uruguai, nas formações
atlânticas da região Sul (Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná) e no sul do Estado de São Paulo,
por outro, sugerem que a Mata Atlântica passou por processos
de expansão e retração em função,
principalmente de variações climáticas"
(Joly et al 1990). Recentemente, Forni-Martins & Martins (2000)
apresentaram evidências citológicas sugerindo conexões
entre a vegetação arbórea da Mata Atlântica
e a dos Cerrados.
Indiscutivelmente
o clima do planeta Terra oscilou significativamente nos últimos
65 milhões de anos. Estas flutuações incluem
processos lentos (numa escala de 105 a 107
anos) de aquecimento ou de resfriamento impulsionados pela tectônica
de placas, processos graduais, quase cíclicos, derivados
de alterações orbitais (numa escala de 104
a 106 anos), em alguns raros casos alterações
abruptas com transições na escala de 103
anos.
Este
padrão de flutuações alterou-se, significativamente,
desde a revolução industrial do século XIX,
quando a Terra entrou em um processo de aquecimento em função
do crescente acúmulo de gases, especialmente CO2,
na atmosfera do planeta. Desde 1979, quando ocorreu a primeira Conferência
Internacional sobre o Clima, pesquisas em todos os pontos do planeta
confirmam que a Terra está num processo de aquecimento. Este
processo, que vem sendo monitorado pelo Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel
on Climate Change - IPCC) desde
1988, está provocando mudanças climáticas em
uma velocidade sem precedentes, a temperatura média da Terra
já subiu, pelo menos 0,5° C no último século
e diversos cenários sugerem que deverá subir mais
2 ou 3° C até o fim deste século.
Junto
com o aumento da temperatura temos, pelo menos para a região
da Mata Atlântica, a previsão de uma diminuição
significativa nos índices pluviométricos. Ou seja,
dentro de 100 anos a área ocupada hoje pela Mata Atlântica
será mais quente e mais seca.
Consequências
das mudanças climáticas
A pergunta que fazemos é: haverá tempo para uma redistribuição
espacial das espécies de Mata Atlântica? Seremos capazes
de definir hoje onde criar Unidades de Conservação
e corredores migratórios, para assegurar que dentro de 100
anos as áreas ocupadas por remanescentes de Mata Atlântica
estejam protegidas e conectadas? O que vai acontecer com as espécies
hoje restritas às regiões mais frias, como as identificadas
por Salis et al (1995) para o estado de São Paulo?
No
âmbito do Programa BIOTA/FAPESP
estão sendo desenvolvidas ferramentas de modelagem preditiva
da distribuição de espécies (http://splink.cria.org.br).
Estas ferramentas analisam as condições específicas
(temperatura, precipitação, tipo de solo, tipo de
formação vegetal, etc...) dos pontos onde uma determinada
espécie foi observada e registrada. Com estes dados, através
de algoritmos genéticos (os dois mais utilizados são
o GARP e o Biocline), o sistema determina o "nicho" da
espécie. Com base nesta análise o sistema projeta
outros pontos onde, potencialmente, a espécie também
deve ocorrer. Este tipo de modelagem permitirá também
prever as conseqüências do aquecimento global na distribuição
de espécies. Isto é, poderemos utilizar a previsão
das novas temperaturas médias previstas nos diversos cenários
para responder não só a pergunta sobre o que vai acontecer
com as espécies hoje restritas às áreas mais
frias, mas como as alterações nos índices pluviométricos
afetarão todo o complexo de ecossistemas que hoje constituem
a Mata Atlântica sensu lato.
Apesar
do significativo aumento de pesquisadores(as) e projetos de pesquisa
nos diversos ecossistemas que constituem este grande complexo genericamente
denominado Mata Atlântica, há uma grande carência
de informações em áreas básicas para
o aperfeiçoamento dessas ferramentas de modelagem. Apesar
de, em alguns casos, termos informações altamente
sofisticadas sobre uma determinada espécie (Aidar et al 2002),
para podermos prever, com maior precisão, as conseqüências
das mudanças climáticas em curso seria necessário
compreendermos melhor as relações entre biodiversidade
e a estrutura e funcionamento dos ecossistemas.
É preciso desenvolver sistemas de monitoramento com espécies
de diversos grupos taxonômicos (plantas, animais & microrganismos)
para ajudar a detectar mudanças em padrões e determinar
a capacidade de dispersão e/ou migração de
espécies em uma paisagem já altamente fragmentada.
Estas informações são de fundamental importância
para determinarmos políticas que assegurem a conservação
e o uso sustentável da biodiversidade tanto imediatamente
como no futuro, quando o clima for mais quente e seco.
Paralelamente, é preciso gerar uma base de dados climáticos
locais que possibilitem o aperfeiçoamento dos modelos de
mudanças climáticas em uma escala regional. Pois os
modelos hoje existentes são extrapolações grosseiras
de estimativas globais que não possuem o detalhamento necessário
para uma análise mais refinada.
Carlos
Alfredo Joly (cjoly@unicamp.br),
biólogo, é professor do Departamento de Botânica
do IB/UNICAMP e Coordenador do Programa BIOTA/FAPESP (www.biota.org.br).
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