Mudança Climática e Energias
Renováveis
André Santos Pereira
A Revolução Industrial marca, de forma muito clara,
o início de um processo de transformações progressivas
que vêm ocorrendo em diversas áreas da humanidade,
sobretudo na economia, na sociedade, na tecnologia e no meio ambiente.
As causas e consequências da mudança global do clima
estão fortemente ligadas a estes quatro aspectos, e sua análise
nos permite compreender melhor esta afirmação.
O advento do tear a vapor, que marca o começo da Revolução
Industrial, representa também o início de um aumento
acelerado do consumo de combustíveis fósseis. O carvão
mineral tornava-se então o principal combustível das
novas máquinas a vapor, cuja utilização cresceria
de forma vertiginosa ao longo do século XIX. Posteriormente,
a utilização de derivados do petróleo como
fonte energética para iluminação através
da sua combustão em lampiões, seguindo-se a isto uma
ampliação fenomenal do uso de derivados de petróleo
e do gás natural em motores de combustão, cujas finalidades
foram se diversificando à medida em que o processo de industrialização
seguia seu curso, explicam a explosão no consumo de combustíveis
fósseis desencadeada pela Revolução Industrial.
Os combustíveis fósseis são formados pela
decomposição de matéria orgânica através
de um processo que leva milhares e milhares de anos e, por este
motivo, não são renováveis ao longo da escala
de tempo humana, ainda que ao longo de uma escala de tempo geológica
esses combustíveis continuem a ser formados pela natureza.
O carvão mineral, os derivados do petróleo (tais como
a gasolina, óleo diesel, óleo combustível,
o GLP - ou gás de cozinha -, entre outros) e ainda, o gás
natural, são os combustíveis fósseis mais utilizados
e mais conhecidos.
O aumento do controle e do uso, por parte do Homem, da energia
contida nesses combustíveis fósseis, abundantes e
baratos, foi determinante para as transformações econômicas,
sociais, tecnológicas - e infelizmente ambientais - que vêm
ocorrendo desde então.
Dentre as conseqüências ambientais do processo de industrialização
e do inerente e progressivo consumo de combustíveis fósseis
- leia-se energia -, destaca-se o aumento da contaminação
do ar por gases e material particulado, provenientes justamente
da queima destes combustíveis, gerando uma série de
impactos locais sobre a saúde humana. Outros gases causam
impactos em regiões diferentes dos pontos a partir dos quais
são emitidos, como é o caso da chuva ácida.
A mudança global do clima é um outro problema ambiental,
porém bastante mais complexo e que traz consequências
possivelmente catastróficas. Este problema vem sendo causado
pela intensificação do efeito estufa que, por sua
vez, está relacionada ao aumento da concentração,
na atmosfera da Terra, de gases que possuem características
específicas. Estes gases permitem a entrada da luz solar,
mas impedem que parte do calor no qual a luz se transforma volte
para o espaço. Este processo de aprisionamento do calor é
análogo ao que ocorre em uma estufa - daí o nome atribuído
a esse fenômeno e também aos gases que possuem essa
propriedade de aprisionamento parcial de calor, chamados de gases
de efeito estufa (GEE), dentre os quais destaca-se o dióxido
de carbono (CO2).
É importante notar que o dióxido de carbono, bem
como os outros GEE em geral (vapor d'água, por exemplo),
não causam, em absoluto, nenhum dano à saúde
e não "sujam" o meio ambiente. Seria incorreto
classificar estes gases como poluentes -, já que os mesmos
não possuem as duas características básicas
de um poluente segundo a definição tradicional do
termo (idéia de dano à saúde e/ou sujeira).
Todavia, novas definições de poluição,
mais técnicas e abrangentes, fizeram-se necessárias
e surgiram ao longo da última década, fazendo com
que os gases de efeito estufa fossem classificados como poluentes.
Essas novas definições, porém, são
muito pouco usuais e o cidadão comum não tem, em geral,
acesso às mesmas. Mais do que simplificar a comunicação,
a classificação dos gases de efeito estufa como poluentes
confunde o público leigo, induzindo-o a pensar erroneamente
que esses gases causam danos à saúde e/ou que têm
efeito local, o que não é verdade. Por este motivo,
recomenda-se que o termo emissão de gases de efeito estufa
seja utilizado em substituição à poluição,
sobretudo fora do meio especializado.
Cabe lembrar que o efeito estufa existe na Terra independentemente
da ação do homem. É importante que este fenômeno
não seja visto como um problema: sem o efeito estufa, o sol
não conseguiria aquecer a Terra o suficiente para que ela
fosse habitável. A temperatura média do planeta estaria
em torno de 17º C negativos, cerca de 32º C inferior à
temperatura média atual. Portanto o problema não é
o efeito estufa, mas sim sua intensificação.
É importante notar também que o aumento das emissões
e das concentrações atmosféricas de CO2, ocorrido
a partir da RI, está nitidamente relacionado ao aumento do
consumo dos combustíveis fósseis. Por sua vez, o aumento
da presença do CO2 e de outros GEE, medidos pela sua concentração,
é o responsável pela intensificação
do efeito estufa e pelo aumento do calor aprisionado na atmosfera.
Este calor adicional ou, dito de outra forma, este delta de energia
térmica, tem uma influência determinante sobre o funcionamento
do clima do planeta, já que essa energia é a responsável
pela circulação dos ventos e dos oceanos, pela evaporação
e pela precipitação.
Sendo assim, por meio desse processo, o Homem vem interferindo
no funcionamento do sistema climático. Isto é o que
afirma de forma categórica o Painel Intergovernamental sobre
Mudança Climática, ou simplesmente IPCC - do inglês
Intergovernmental Panel on Climate Change, formado por milhares
de cientistas do mundo, inclusive do Brasil. Dentre as consequências
desta interferência do Homem sobre o clima da Terra, destacam-se
o aumento da temperatura média do planeta, a elevação
do nível dos oceanos, o derretimento das geleiras e das calotas
polares, perda de biodiversidade, aumento da incidência de
doenças transmissíveis por mosquitos e outros vetores
(malária, febre amarela, dengue e esquistossomose por exemplo),
mudanças no regime de chuvas, intensificação
de fenômenos extremos (tais como secas, inundações,
furacões e tempestades tropicais), desertificação,
perda de áreas agriculturáveis, acirramento dos problemas
relacionados ao abastecimento de água doce, aumento de fluxos
migratórios, entre outras.
A mudança climática coloca em questão os padrões
de produção e consumo hoje vigentes, já que,
como foi visto, suas causas estão ligadas sobretudo à
queima/consumo de combustíveis fósseis, principal
fonte primária da energia e força motriz da economia
global. Atualmente fala-se muito em descarbonizar a matriz energética
mundial, isto é, em aumentar a participação
das energias renováveis em detrimento dos combustíveis
fósseis. Isto seria uma condição necessária
mas não suficiente para a atenuação da mudança
do clima, que depende também de outras mudanças na
infra-estrutura, na tecnologia e na economia.
Algumas fontes renováveis de energia, como a solar e a eólica
por exemplo, não geram a emissão de GEE. Ora, a maioria
destes contém o elemento carbono em sua composição,
e por este motivo o termo descarbonizar vem sendo utilizado com
este novo significado. Cabe ainda mencionar a energia hidrelétrica,
outra fonte renovável, cujas emissões de GEE atualmente
são consideradas inexistentes pelo IPCC. No entanto, é
importante citar estudos coordenados pela COPPE/UFRJ que revelam
a existência de emissões de GEE, principalmente o CO2
e o metano (CH4), nos reservatórios das grandes usinas hidrelétricas.
A despeito da complexidade do assunto e da incompletude da pesquisa,
é possível afirmar que uma unidade de energia gerada
em usinas hidrelétricas contém menor quantidade de
GEE do que uma unidade de energia gerada em usinas termelétricas
com combustíveis fósseis e, por este motivo, do ponto
de vista de mudança do clima, as usinas hidrelétricas,
principalmente as de pequena escala, são bem vindas.
Outras fontes renováveis geram, contudo, a emissão
de GEE, como por exemplo o álcool etílico e do biodiesel
(produzido a partir de oleaginosas, gordura animal ou até
mesmo de óleo vegetal usado). Os processos de queima destes
combustíveis geram CO2. No entanto, este CO2 faz parte de
um ciclo renovável, ou seja, é retirado da atmosfera
através da fotossíntese e fixado temporariamente na
biomassa a partir do qual são produzidos os combustíveis
(cana-de-açúcar, soja, etc.), até que estes
sejam queimados novamente, formando-se com isto um ciclo. Este ciclo
renovável é infinitamente mais curto do que o ciclo
dos combustíveis fósseis.
É fundamental termos a exata noção da complexidade
da descarbonização da matriz energética mundial.
Esta é uma questão intrincada, já que não
é possível prescindirmos de energia - e muita - e
as fontes fósseis atualmente representam cerca de 80% da
energia primária consumida no mundo, em que pese o crescimento
recente das fontes renováveis. A energia fóssil, além
da principal força motriz do sistema econômico mundial,
também influencia de forma significativa a quantidade e o
tipo dos bens produzidos na economia mundial, e a redução
no uso de combustíveis fósseis depende de mudanças
radicais, incluindo novas tecnologias e realocações
econômicas no setor industrial e de transportes. Esta redução
exigirá, por exemplo, que determinadas empresas - como empresas
de geração de energia termelétrica a carvão,
para citar uma - ou realizem uma mudança no núcleo
dos seus negócios, ou sofram uma perda significativa de mercado.
Isto tem gerado uma forte resistência por parte de algumas
dessas empresas, muitas do quais possuem enorme peso econômico
e político no cenário internacional.
A análise histórica da Convenção das
Nações Unidas sobre Mudança do Clima revela
muito bem este conflito de interesses. Esta Convenção,
que na verdade é apenas uma carta de princípios e
objetivos, prevê em seu texto a continuidade do processo de
negociação em torno dos meios pelos quais seus objetivos
- sobretudo a estabilização da concentração
de GEE na atmosfera - devem ser atingidos.
O Protocolo de Quioto, que foi adotado em dezembro de 1997 na cidade
japonesa de mesmo nome pelos países que assinaram a Convenção,
é um instrumento jurídico que representa justamente
a continuidade do processo de negociação. O Protocolo
de Quioto necessitava ainda de uma série de regulamentos
complementares, o que foi concluído em Marraqueche no final
de 2001. O alcance dos objetivos da Convenção, que
também são do Protocolo, depende, dentre outros fatores,
da descarbonização da matriz energética mundial
- e isto em maior ou menor escala, dependendo dos cenários
futuros de crescimento econômico, populacional e das mudanças
tecnológicas.
O Protocolo representa uma diretriz na direção dessa
descarbonização, ainda que não de forma explícita.
Primeiro, estabelece metas quantitativas para reduzir as emissões
de GEE, porém exclusivamente para as Partes da Convenção
listadas no chamado Anexo I. Neste Anexo I, encontram-se listadas
as economias industrializadas e as repúblicas da extinta
União Soviética. Esta separação é
feita porque a Convenção reconhece que esses países
são os maiores responsáveis pelo problema e devem
tomar a iniciativa para combatê-lo, em consonância com
o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas,
adotado em seu texto. De fato, estudos cientificamente consistentes
revelam que a responsabilidade dos países em desenvolvimento
(Não-Anexo I) é, em termos de contribuição
para o aumento da temperatura média do planeta, ainda é
muito pequena em relação aos países desenvolvidos
(parte significativa do Anexo I), e permanecerá inferior
até o final deste século.
As metas quantitativas para redução de emissão
de GEE impostas pelo Protocolo são modestas do ponto de vista
ambiental, pois contribuem muito pouco para a redução
das emissões globais de GEE. Apesar disto, o cumprimento
dessas metas não é de forma alguma tarefa simples.
Sendo assim, para conferir alguma flexibilidade aos países
do Anexo I, de forma que pudessem atingir suas metas mais facilmente,
o Protocolo estabeleceu 3 mecanismos de mercado, dentre os quais
o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), o único que envolve
diretamente países em desenvolvimento. As metas de redução
do Protocolo, conjugadas aos mecanismos de mercado, tendem a gerar
um custo de oportunidade para a geração de energia
baseada em combustíveis fósseis, fomentando o uso
de energias renováveis. A grosso modo, o Protocolo induziria
a uma mudança do preço relativo entre fontes de energia
fósseis e renováveis.
Ainda que absolutamente inaceitável, por se tratar de uma
decisão unilateral tomada em um processo voluntário
de negociação multilateral, existente desde 1990,
é de fácil entendimento o anúncio feito em
março de 2001, pelo presidente George W. Bush, de que os
EUA estavam abandonando o Protocolo de Quioto. O posicionamento
da administração norte-americana era uma nítida
reação, por parte da indústria de combustíveis
fósseis, face à iminente perda de market share,
o que, como vimos, tende a acontecer no caso do Protocolo entrar
em vigor. Ora, esta indústria está muito bem representada
pela atual administração da maior potência econômica
e militar do planeta!
A mudança climática exemplifica muito bem a intrincada
relação entre economia, energia, tecnologia, sociedade
e seus impactos sobre o meio ambiente. Por vários motivos,
a mudança climática é um dos problemas ambientais
mais graves do século: ela intensifica e é intensificada
por outros problemas ambientais locais e regionais, o combate às
suas causas é extremamente complexo, envolvendo intrincadas
questões políticas e econômicas, além
de possuir um caráter inercial - ou seja, as causas permanecem
atuando por décadas mesmo depois de eliminadas. Ademais,
suas consequências são possivelmente catastróficas
e muitas delas irreversíveis.
A saída dos EUA do Protocolo de Quioto representa um retrocesso
significativo em um caminho longo e árduo, que a humanidade
tem que percorrer na direção de uma matriz energética
mundial baseada, em sua maior parte, nas fontes renováveis
de energia. Isto é condição necessária,
ainda que não suficiente, para atenuar este grave problema
e para que o bem-estar das gerações futuras não
seja seriamente comprometido.
André Santos Pereira é Doutorando do Programa
de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ. O autor agradece
ao Prof. Roberto Schaeffer pela oportunidade de escrever este artigo.
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