Aquecimento
Global
Isaac Epstein
"O
mínimo que é cientificamente necessário
para combater o aquecimento global excede
de muito o máximo que é politicamente viável"
Al Gore1
"Os Estudos da Ciência têm mostrado porque
a ciência e a tecnologia não conseguem
resolver sempre os problemas técnicos no domínio
público. Em particular, a velocidade do pro-
cesso de tomada de decisão política é mais
rápida do que a velocidade da formação do
consenso científico"
Collins,HM & Evans, R2
Até
cerca de cinqüenta anos atrás, havia uma crença,
mais ou menos generalizada, rubricada pelo empirismo lógico,
corrente epistemológica hegemônica na época,
que a arena apropriada para avaliar a veracidade das teorias científicas
nas ciências naturais era delimitada pelo chamado contexto
da justificação. Vale dizer que tanto os critérios
de verificação (Hempel) como os de falsificabilidade
(Popper) envolviam operações essencialmente internas
ao sistema da ciência.
Nesta
ótica, a validação das teorias era um processo
que não poderia sofrer nenhuma injunção social,
política, econômica ou de qualquer outra natureza,
fatores estes que se consideravam completamente irrelevantes na
retificação ou ratificação dessas teorias.
Estes e demais fatores pertenciam à jurisdição
do contexto da descoberta, externo ao julgamento epistemológico
das teorias científicas.
Essa
situação se modificou após a aparição
do texto de Kuhn3 no início da
década de 60 e, mais tarde, com a evolução
das disciplinas ligadas ao campo denominado de "Estudos Sociais
da Ciência"4. Atualmente
fala-se (ou se recusa a falar) na "guerra das ciências"5
, entre os "realistas" que ainda acreditam na objetividade
e independência dos fenômenos estudados pelas ciências
naturais e os "construtivistas"6
que acreditam na "construção" desses fenômenos,
isto é, a noção que o conhecimento científico
é uma criação humana realizada com os recursos
materiais e culturais, e não a revelação de
uma ordem natural e independente da ação humana. Entre
estes dois limites se situam vários contextos epistemológicos,
entre as quais o da Sociologia do Conhecimento Científico7.
De
qualquer modo, mesmo sem entrarmos nesta "guerra", pode-se
observar que quando as observações, experimentos e
teorias não são suficientes, ou são contraditórios,
abre-se um vazio ou um espaço que é preenchido por
fatores extra científicos para colocar um fechamento nos
debates.8
Isto
significa que quando existe um dissenso ou incerteza entre os próprios
cientistas num determinado setor, o espaço aberto pela subdeterminação
das teorias propostas abre um campo fértil para a intromissão
de fatores externos sejam eles políticos, econômicos,
sociais ou mesmo éticos. Isto se torna tanto mais evidente
quanto maior é o alcance e impacto econômico, social
e político do campo de fenômenos estudados. A pergunta
que importa fazer é então: "Como se tomam decisões
que devem supostamente ser baseadas em conhecimento científico
antes que haja um consenso científico?"9
Ora,
o exame de um fenômeno climático de alcance planetário
e de enorme importância para as gerações futuras
pode ilustrar o que foi dito acima.Trata-se do aquecimento global
do planeta causado por um aumento dos gases chamados "de estufa",
principalmente o C02, que bloqueiam a irradiação do
calor de volta, da Terra, para o espaço. O aquecimento global
é um fenômeno natural, mas cuja cota de exacerbação
antropogênica (emissões de gases produtos de combustíveis
fósseis, principalmente carvão e derivados de petróleo,
de indústrias, refinarias, motores etc.) tem sido amplamente
discutida. A previsibilidade e o grau do aquecimento global, inclusive
as suas conseqüências, envolvem questões complexas
sobre as quais os próprios especialistas ainda não
formaram um consenso. Esta complexidade imbrica questões
de ordem científica (previsões de mudanças
climáticas), econômica (custos dos prejuízos
e custos da prevenção destas mudanças) políticas
(pressões de lobies interessados e conseqüências
eleitorais das medidas econômicas propostas), éticas
(deve a geração atual pagar a conta do aquecimento
global para evitar suas conseqüências desastrosas para
as gerações futuras?). Para analisar a problemática
do aquecimento global realizaram-se várias conferências
internacionais10 e um acordo
foi proposto em 1997, o Protocolo de Quioto.
Em
termos objetivos as projeções obtidas por modelos
simulados pelos especialistas em comutadores prevêem um aumento
de temperatura média no planeta entre 1.40° C e 5.8°
C no final do século XXI11.
As conseqüências desastrosas deste aquecimento incluem,
em geral, um clima mais quente e mais úmido com mais enchentes12
em algumas áreas e secas crônicas em outras. O aquecimento
dos mares provocará um aumento do nível dos oceanos
e conseqüente inundação de certas áreas
litorâneas e a desaparição de certas geleiras.
A umidade e o calor provocarão um aumento do número
de insetos com o correlato aumento de algumas doenças por
eles transmitidas, como a malária. É prevista uma
redução das colheitas na maior parte das regiões
tropicais e subtropicais onde a comida já é escassa.
Como se isto não bastasse, haveria um decréscimo da
água disponível e, por outro lado, maior risco de
enchentes em determinados locais. Como resultado, as partes mais
pobres do globo serão as mais vulneráveis pela sua
escassa capacidade de Adaptação. Estas pelo menos
são algumas das conclusões do Terceiro Relatório
do IPCC13.
O Protocolo
de Quioto (1997) estipula que as emissões de poluentes causadores
de aquecimento global deverão começar a ser reduzidas
entre 2002 e 2012 em média 5.2% em relação
aos níveis de 199014.
Isto equivale a uma redução de 42% no nível
atual de emissões. Foi também aprovado o chamado Mecanismo
de Desenvolvimento Limpo, MDL, através do qual os países
que precisam reduzir suas emissões podem comprar direitos
dos países que têm créditos porque não
emitiram o que teriam direito. Para entrar em vigor o protocolo
precisa adquirir força legal, e para isto, precisa ser ratificado
por pelo menos 55 países. É, porém, exigido
que nesse grupo, estejam aquelas nações responsáveis
por, no mínimo, 55% das emissões de gases. Como os
Estados Unidos são responsáveis por cerca de mais
de 30% das emissões, a sua omissão em ratificá-lo
pode acarretar um bom atraso, uma vez que dos restantes 70% das
emissões, países responsáveis por 55% precisariam
ratificá-lo, isto é, praticamente a totalidade. Em
verdade, praticamente, os Estados Unidos pouco precisam para dispor
do poder de veto nesse protocolo.
A problemática
do aquecimento global "aquece" também vivas polêmicas
em torno de seus prováveis efeitos. Um pesquisador dinamarquês,
Lomborg, escreveu uma obra
com mais de mil páginas e milhares de notas em que faz uma
análise dos dados ambientais. Suas conclusões contrariam
as previsões usualmente mais pessimistas de seus colegas,
inclusive do IPCC. O livro de Lomborg causou uma enxurrada de críticas,
algumas dirigidas à sua própria competência16.
A polêmica no âmbito da pesquisa científica envolve
também enorme interesse econômico (o Instituto Americano
de Petróleo avalia o custo de cortar as emissões de
gases de acordo com o Protocolo de Quioto entre 200 a 300 bilhões
de dólares por ano), e conseqüente intervenção
de potentes lobis econômicos ligados às indústrias
poluidoras. O custo do corte das emissões, de outro lado,
aumentaria o preço de determinados produtos e certamente
influenciaria negativamente boa parte do eleitorado norte-americano.
Em verdade as equações custo-benefício da aprovação
do Protocolo de Quioto variam de país a país, mas
é inevitável que a carga maior deve cair sobre o país
que mais polui que são os Estados Unidos.
Voltamos
aqui ao ponto inicial deste pequeno texto, isto é que o tempo
da decisão política é muitas vezes mais escasso
que o tempo da decisão científica a partir do consenso.
No caso da problemática do aquecimento global isto ficou
óbvio na decisão do presidente Bush, o ano passado,
de não ratificar o protocolo de Quioto, e após 11
meses, propor um plano alternativo.17
Malgrado
a evidência científica a favor de providências
imediatas para reduzir a emissão de poluentes tenha sido
convincente para a maioria dos pesquisadores, algumas vozes influentes
exprimiram o ponto de vista contrário18.
É possível que pesquisas futuras, com simulações
climáticas feitas por computadores mais poderosos e a obtenção
de dados mais precisos, possam contribuir para o "fechamento"
da questão no registro científico. De algum modo,
parece que o "tempo" científico desta questão
ainda não maturou suficientemente.
Mas
o "tempo" político do Presidente Bush e seus partidários
"fecha" nas próximas eleições presidenciais
onde os lobis financiando a campanha, e o eleitor norte-americano
votando, decidem para quem vai o poder.
Aproveitando-se
de uma possível indeterminação científica
na problemática do aquecimento global e premido por circunstâncias
econômicas e políticas o presidente da mais potente
nação do planeta toma uma decisão que poderá
favorecer a economia de seu país em curto prazo mas que,
possivelmente, irá causar enorme prejuízo e sofrimento,
em escala planetária, às futuras gerações.
Isaac Epstein é engenheiro e pesquisador em filosofia,
comunicação e linguagem. É professor do Programa
de Pós-graudação em Comunicação
da Universidade Metodista de São Paulo.
Referências
Bibliográficas
1.
New York Review, 05/07/2001, p.38 [voltar]
2. Collins, H.M. & Evans, R. "The Third
Wave of Science Studies", in Social Studies of Science, SAGE,Pub
Londres, Vol. 32 n0 2 Abril 2002, p. 235/296 [voltar]
3. Kuhn, T.ª Estrutura das Revoluções
Científicas, S.Paulo, Perspectiva, 1978 [voltar]
4. Biagioli, M. (Ed) The Science Studies Reader,
Londres, Routledge, 1999[voltar]
5. Henry, J. "Calls for a ceasefire in the
science wars" in Nature, Vol. 395, Outubro 1998, p.557
Sokal, A & Bricmont, J. Impostures Intellectuelles, Psris, Ed.
Odile Jacob, 1999, p 186/188[voltar]
6. Gottfied,K. & Wilson,K,G. "Science as
a cultural construct" in Nature, V.386,10/04/97, p.545/547[voltar]
7. Bloor,D. & Henry, J. Scientific Knowledge,
Univ. of Chicago Press, 1996[voltar]
8. Collins,H.M. & Evans, R., Idem ,[voltar]
9. Ib. pag. 241 [voltar]
10. A Reunião Rio 92; Berlim, 1995;Quioto,
1997; Buenos Aires 1998; Haia, 2000; Boon, Julho 2001; Marrakesh,
Nov. 2001; a próxima de Johannesburg, Set.2002.[voltar]
11. Este intervalo já dá uma idéia
do grau de imprecisão e indeterminação destas
previsões[voltar]
12. Em verdade, as companhias de seguros já
começam a pensar em reajustar seus prêmios em relação
aos sinistros previstos, como inundações. (Cf. Pearce,
F. "Insurers count cost of global warming" in NewScientist,
17/Julho/2002, p.17[voltar]
13. McKibben, B. "Some Like it Hot" in
The New York Review, 5 Julho de 2001, p.35/38. O IPCC (Intergovernamental
Panel on Climate Change) é um grupo organizado sob os auspícios
das Nações Unidas com a finalidade de estudar as mudanças
de clima. A cada cinco anos representantes de cerca de 100 países
propõem o nome de seus melhores especialistas em climatologia.
Dos milhares de nomes sugeridos, a liderança do IPCC escolhe
algumas centenas para cada um de três grupos de trabalho.
Esta escolha é baseada nas publicações em revistas
científicas indexadas e a cada cientista é atribuída
a responsabilidade de resumir toda a literatura peneirada pela revisão
dos pares, de um determinado aspecto do problema. Mais cientistas
são convocados como revisores e críticos e no fim
deste ciclo de cinco anos, pelo menos 1.500 especialistas, incluindo
praticamente todo climatólogo do planeta esteve, de algum
modo, envolvido no processo. Os relatórios dos grupos são,
então, revistos novamente por especialistas selecionados
pelos países membros e, finalmente, condensados em sumários
técnicos novamente revistos em plenário para aprovação
de um documento final.[voltar]
14. Bolin, B. "The Quioto Negotiations on
Climate Change: Science Perspective" in Science, 16/01/1998,
p.330/331[voltar]
15.Lomborg, B. The Skeptical Environmenalist, Cambridge
Univ.Press, 2002 (www.lomborg
.org)[voltar]
16. Scientific American, Janeiro 2002, p.59/69[voltar]
17. Sotero, P. "Países repudiam plano
de Bush para Quioto, O Estado de S.Paulo, p. A9, 16 /02/2002 [voltar]
18. Lomborg, B. "Lutar contra o aquecimento
é jogar dinheiro fora", O Estado de S.Paulo, 21/08/2001,
p.A10[voltar]
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