Quem será beneficiado pelos créditos
de carbono?
Recursos naturais preservados podem, em breve, ser sinônimo
de dinheiro e, quem sabe, da aplicação prática
do conceito de desenvolvimento sustentado. Países que não
têm que diminuir suas emissões de dióxido de
carbono (CO2), segundo normas preliminares (ainda não
ratificadas) estabelecidas pela Conferência das Partes, realizada
na cidade de Quioto, no Japão, em 1997, podem desenvolver
projetos com o objetivo de emitir as chamadas CERs (Reduções
Certificadas de Emissões, tradução da sigla
em inglês). Os CERs são derivativos financeiros, ou
créditos, interessantes às empresas dos países
que devem, obrigatoriamente, reduzir as emissões de CO2,
o mais nocivo de todos os gases de efeito estufa. No entanto, mais
do que entender esse processo, é preciso também compreender
o que pode estar implícito na onda do crédito de carbono,
o qual muitos teimam em chamar de commodity.
Para entender a estrutura básica desse processo, basta voltar
à década de 80, quando estudos científicos
passaram a levantar suspeitas de que a temperatura média
do planeta estaria aumentando. A partir dessas suspeitas, o Programa
das Nações Unidas Para o Meio Ambiente (Pnuma) e a
Organização Metereológica Mundial criaram o
IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas,
sigla em inglês). Foram as conclusões dos estudos do
IPCC sobre mudanças climáticas que deram apoio científico
à Framework Convention on Climate Changes (Convenção-Quadro
das Nações Unidas Sobre a Mudança do Clima),
a qual foi assinada por cerca de 175 países, durante a Rio
92. Com o surgimento dessa Convenção, também
conhecida como FCCC, seus países signatários passaram
a reunir-se periodicamente para discutir e tentar solucionar o aumento
da temperatura da Terra.
Concluindo que a principal causa das mudanças climáticas
pelas quais passa o planeta é o aumento da concentração
de gases que provocam o efeito estufa, a Conferência das Partes
chegou à proposta do Protocolo de Quioto. É nesse
Protocolo que os países em desenvolvimento, e que mantêm,
ao menos relativamente, preservados os seus recursos naturais, podem
passar a se inspirar para desenvolver projetos visando sustentabilidade
social e ambiental. Isso porque, a essência do Protocolo determina
que quem polui deve assumir financeiramente as conseqüências
disso. Assim, quem mais poluiu desde a Revolução Industrial
(os países que hoje são chamados desenvolvidos) deverá
pagar pelos prejuízos causados ao ambiente, ou compensar
essa falta investindo, por exemplo, na recuperação
e manutenção de áreas verdes, cuja maior parte
ainda está nos países pobres.
Seqüestro do Carbono
Considerando a incalculável quantidade de dióxido
de carbono já emitida por esses países no decorrer
das décadas, é simples imaginar que a conta do prejuízo
é bastante alta. Assim, para amenizar o seu pagamento, o
Protocolo de Quioto disseminou a idéia do Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL) e das CERs. O objetivo do MDL é a busca de alternativas
de tecnologias limpas (não-poluidoras) para, por exemplo,
a geração de energia, reduzindo as emissões
de CO2 na atmosfera. Há também os projetos voltados
para a área florestal, que devem ajudar a diminuir o CO2
presente na atmosfera pela absorção feita pela vegetação
através da fotossíntese. É o que se chama de
"seqüestro do carbono".
Para entender o que significam o MDL e as CERs é preciso
ter clara a divisão existente entre os países, e que
ficou estabelecida no Protocolo de Quioto. Eles estão divididos
em dois grupos: os que precisam reduzir suas emissões de
poluentes e aqueles que não estão obrigados a tais
reduções. O Brasil, assim como outros países
em desenvolvimento que não precisam diminuir suas emissões
de dióxido de carbono, pode vender essa redução
através dos créditos de carbono conseguidos com as
CERs.
As transações internacionais ao redor dos créditos
de carbono já estão acontecendo. No início
de julho, a Holanda enviou um representante do seu Ministério
do Ambiente e Desenvolvimento Urbano para negociar créditos
de carbono com governo e empresários brasileiros. A Holanda
é um dos 39 países que estão obrigados pelo
Protocolo de Quioto a reduzir, de 2008 a 2012, emissões de
dióxido de carbono e outras substâncias nocivas a um
índice 5,2% menor do que o índice global registrado
em 1990. A iniciativa holandesa pode render 250 milhões de
euros, que serão destinados à redução
de 200 milhões de toneladas de carbono. É certo que
os países que têm tomado a dianteira nessas transações
financeiras internacionais estão em vantagem sobre os demais.
Os preços da tonelada de carbono ainda não foram fixados
pelo mercado.
Perigo
Até agora tudo parece estar em pleno acordo com as regras
do capitalismo, porém há, ainda, muitas perguntas
sem respostas. Quem são os donos, os avalistas e os auditores
dos créditos de carbono? Quem será beneficiado pelos
créditos? Esse modelo irá beneficiar o meio ambiente
e as camadas mais pobres da população ou os empresários
e donos do poder político e econômico dos países
mais ricos?
Para a economista Amyra El Khalili, presidente da ONG CTA (Consultant,
Trader and Adviser), o que existe hoje é, na verdade, uma
grande confusão entre os conceitos de commodity ambiental
e crédito de carbono. Segundo ela, um conceito nada tem a
ver com o outro, e o cerne da confusão pode estar na junção
das palavras "commodity" e "ambiental". A tradução
ao pé da letra do termo commodity é: mercadoria, aquilo
que é vendido para a obtenção de lucro, ou,
ainda, aquilo que é comprado e vendido numa bolsa de mercadoria.
"Uma commodity visa o lucro imediato, portanto é algo
contrário ao meio ambiente, mais precisamente a sua conservação",
explica a economista. "O carbono não é uma commodity
porque as suas emissões têm de ser reduzidas. Se fosse
uma commodity, o carbono teria de visar o lucro e, para tanto, sua
emissão deveria ser incentivada. Quanto mais toneladas de
carbono fossem emitidas, maior seria o seu preço de mercado".
Por essas razões, o tal seqüestro de carbono tem de
ser entendido como um processo e não como uma commodity.
Khalili explica que unir as palavras commodity e ambiental não
é tarefa fácil. "Os beneficiários, que
são os países em desenvolvimento, têm de estar
no topo da discussão. Só vamos conseguir fazer uma
commodity ambiental quando se resolver o problema da exclusão
social existente principalmente nos países pobres",
avalia a economista. Para ela, o proprietário da commodity
ambiental tem de ser a comunidade, o povo, a nação,
e deve visar o "lucro social", a criação
de um ambiente sustentado e equilibrado entre necessidades humanas
e conservação de recursos naturais.
Os produtos que resultam de projetos para a conservação
de recursos naturais (como a madeira), e cujo público beneficiado
é a própria comunidade responsável pelo seu
manejo, pode ser considerado uma commodity ambiental. Ela também
pode ser financeira quando beneficia um grupo de empresários
ou uma empresa. Porém, Khalili enfatiza que a ambiental deve
estar sempre na base de sustentação da estrutura da
commodity financeira. "O mundo todo já tomou o rumo
da degradação seguindo este sistema. Há exclusão
social e fome por toda a parte. Há fraudes e corrupção
nas maiores empresas do mundo. Se o mercado financeiro internacional
está falido, porque devemos continuar acreditando neste modelo?"
Até agora, o que se tem feito com relação
à comercialização de créditos de carbono
é o inverso disso. Os créditos são títulos
que podem favorecer empresários especuladores do mercado
financeiro de países pobres ou ricos. Os excluídos
correm o risco de ficar de fora desse processo. "Nossos recursos
naturais não podem ser comercializados como créditos
de carbono. É preciso esclarecer quem vai ser responsável
pelo controle desse mercado. A sociedade e a mídia precisam
participar desse debate, e exigir que as commodities ambientais
não tomem o rumo da simples repetição e perpetuação
de um modelo econômico e financeiro falido, no qual o bem
maior é o dinheiro e não a qualidade de vida",
conclui a economista.
(SN)
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