Quando o setor produtivo faz C&T
Ademerval
Garcia
A produção
de ciência e tecnologia no Brasil atual é ainda muito
pequena, embora, em algumas áreas, o país venha alcançando
destaque. O que acontece conosco é que, diferentemente de
outros países atuantes em C&T, a grande maioria de nosso
quadro de pesquisadores está nas universidades e institutos
de pesquisa, e não diretamente ligados ao setor privado.
Esta realidade reflete o desinteresse de nosso empresariado em desenvolver
pesquisas dentro de suas próprias fábricas, ora optando
pela compra de pacotes tecnológicos internacionais ou simplesmente
deixando de investir. Esse desinteresse decorre, principalmente,
da dificuldade de diálogo entre o setor produtivo e a universidade,
e mais ainda da permanente instabilidade de nossa economia, o que
desencoraja inovações a não ser em produtos
e serviços onde as margens ofereçam garantia contra
as constantes turbulências.
O setor
citrícola nacional, mesmo fazendo parte de um setor primário
onde teoricamente a pesquisa de ponta não seria primordial,
é uma das áreas mais atuantes em pesquisas e tecnologia.
Maior produtor de citros e suco de laranja do mundo, exportando
quase a totalidade do suco de laranja que produz para os exigentes
mercados da Europa, Estados Unidos e Japão, entre outros,
o setor investe na geração de tecnologia de logística
de transporte, conservação e movimentação
de produto congelado, transporte a granel em navios especialmente
desenvolvidos - o único país do mundo a dispor desses
navios-tanque - controle de qualidade e rastreamento a partir do
copo na mão do consumidor até a semente na mão
do viveirista. Investindo fortemente na proteção do
parque citrícola, também o maior do mundo, com 700
mil hectares e quase 200 milhões de árvores, de onde
deriva sua matéria prima, a indústria de suco de laranja
tem plena consciência de que a proteção a esse
parque não pode mais depender exclusivamente de aplicação
de produtos agroquímicos, os quais, hoje muito mais 'limpos'
do que no passado, constituem, não obstante, séria
ameaça ao meio ambiente e a água cada vez mais escassa.
Não bastasse o fato de São Paulo ser o maior produtor
mundial de citros e também maior exportador de suco de laranja,
sexto item da pauta de exportação nacional, a economia
gerada pelo setor é de R$ 7 bilhões/ano. O desenvolvimento
de pacotes tecnológicos que garantam maior controle ou eliminação
de qualquer praga ou doença que ataque os pomares é
fator primordial para a manutenção e crescimento dessa
cultura, uma vez ser esta uma questão prioritária
para a garantia da competitividade do negócio.
Para
assegurar a continuidade desse crescimento econômico foi preciso
criar um novo modelo onde todo o setor fosse beneficiado, já
que o problema é comum. Surgiu daí um formato próprio
de produção e estímulo à pesquisa científica.
O Fundecitrus - Fundo de Defesa da Citricultura - atua como um interlocutor,
fazendo a interface entre o setor produtivo, as agências de
financiamento e as instituições e universidades. Nosso
papel é de articulador, uma vez que identificamos a necessidade
de desenvolver determinada pesquisa em benefício da produção,
centramos o foco no problema, buscamos junto às universidades
e institutos de pesquisas os melhores especialistas mundiais no
assunto em questão, e atuamos junto às agências
de fomento para a obtenção de verba além de
também financiar alguns projetos. Essa articulação
só é possível em função do trabalho
realizado pelo nosso corpo próprio de pesquisadores, que
atua desde a identificação do foco e dos atores responsáveis
por todo o processo, até a condução e a coordenação
do pacote tecnológico a ser gerado.
Um
exemplo bastante conhecido dessa nossa maneira própria ou
política de produção de ciência e tecnologia
é o estudo do genoma da Xylella fastidiosa, bactéria
causadora da
CVC - Clorose Variegada dos Citros ou amarelinho em nossos pomares,
que provocou só neste ano um prejuízo ao setor de
R$ 650 milhões. Os sintomas do amarelinho provocam o entupimento
dos vasos do xylema e, conseqüentemente, a morte econômica
das laranjeiras, devido à redução drástica
no tamanho do fruto. Em 1997, quando a Fapesp - Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo decidiu
investir na área da genômica, havia vários microorganismos
candidatos, se é que podemos chamá-los assim, para
participarem da escolha. Coube ao Fundecitrus o papel de ajudar
a provar a importância da opção pelo seqüenciamento
do genoma da Xylella. Um dos requisitos para aprovação
era que o problema tivesse importância sócio-econômica.
Esse foi fácil provar já que é inquestionável
a importância do setor, e a incidência da doença
na ocasião era de 34%, número bastante expressivo.
Outro ponto, foi mostrar que era possível seqüenciar
a bactéria já que seu genoma tinha o tamanho adequado.
Aí surgiram alguns questionamentos. Essas dúvidas
foram causadas pela própria falta de informação
que havia sobre a bactéria. Para saná-las, nossa instituição
convidou dois dos maiores estudiosos da Xylella no mundo, os pesquisadores
Joseph M. Bovê e Monique Garnier , do Institut National de
La Recherche Agronomique (INRA) da França, para uma estada
no Brasil. A palavra desses especialistas foi crucial para a escolha
da bactéria para estudo. Além disso, a Fapesp convidou
o Fundecitrus para ser seu parceiro no projeto.
Em
dezembro de 1997, teve início o seqüenciamento da Xylella
fastidiosa. O mapeamento da bactéria causadora do amarelinho
foi realizado por uma rede de 200 pesquisadores e é um estudo
essencialmente brasileiro. Também foi viabilizado um projeto
inédito com a formação da rede Onsa - Organização
para o Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos,
uma malha virtual criada pela Fapesp que reuniu pesquisadores de
35 laboratórios de diferentes universidades e institutos
de pesquisa paulistas. A rede Onsa, além de fazer com que
a pesquisa fosse possível, não exigiu nenhum investimento
em infra-estrutura nem em corpo administrativo, mais uma peculiaridade
do projeto.
A Fapesp
foi a instituição responsável pela alavancagem
do estudo que colocou o país na dianteira da pesquisa genômica
na área agrícola, investindo US$ 15 milhões.
O Fundecitrus foi o ator responsável pela facilitação
do projeto além de parceiro financeiro da Fapesp, patrocinando
cerca de US$ 500 mil. A aplicação prática desse
estudo é de médio a longo prazo, mas os resultados
preliminares já são bastante animadores. Por outro
lado, várias informações geradas por outras
pesquisas com o amarelinho, resultaram no aperfeiçoamento
das técnicas de manejo. A produção de mudas
sadias, o controle químico das cigarrinhas (inseto transmissor
da doença), e a poda na base do ramo afetado ou eliminação
da planta com sintomas graves, faz com que a incidência da
doença seja reduzida drasticamente. Quem ganha com isso é
o citricultor, que vê seu pomar menos afetado pela doença.
Um
outro exemplo de resultado dessa articulação científica
para a geração de tecnologia é o trabalho realizado
pelo Fundecitrus objetivando o controle do bicho furão, mais
uma praga que aflige nossa citricultura. O bicho furão é
uma mariposa que deposita seus ovos nos frutos, especialmente maduros,
provocando seu apodrecimento e queda. Além de tornar a fruta
imprestável, essa larva compromete a qualidade do suco. Nos
anos 90, essa praga começou a se alastrar pelos nossos pomares,
provocando um prejuízo de aproximadamente US$ 30 milhões/ano.
Não se conhecia nada sobre essa mariposa e para combatê-la
o produtor pulverizava aleatoriamente os seus pomares. Identificado
o problema, nossa instituição passou a atuar.
Em
1997, a pesquisa foi encomendada ao professor Dr. José Roberto
Postali Parra, especialista em biologia de inseto da Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). Durante 2 anos, o professor
Parra trabalhou para identificar os hábitos do bicho furão.
Uma de suas descobertas foi que a mariposa só se movimentava
à noite, o que mostrou a ineficiência e o desperdício
da pulverização com produtos químicos durante
o dia. Também foi desenvolvida uma dieta artificial para
a praga como forma de monitoramento. Já em 1999, outro cientista
foi acionado, dessa vez o professor Evaldo Vilella, da Universidade
Federal de Viçosa (UFV), especialista em desenvolver feromônio
sexual (substância química produzida pelas fêmeas
que atrai os machos para o acasalamento). Sob a orientação
desses dois cientistas, um dos doutores da equipe do professor Evaldo
ficou com a tarefa de descobrir e sintetizar a molécula do
feromônio. Foi escolhido o laboratório da Fuji, no
Japão, o mais bem equipado para o desenvolvimento da sintetização,
e para lá seguiu o nosso doutor. Esse trabalho foi realizado
em tempo recorde, sendo concluído em apenas 6 meses. O resultado
foi a produção de uma pastilha que contém o
feromônio sexual do bicho furão utilizado para o controle
dessa praga. O monitoramento é feito através do registro
do número de machos adultos coletados e, a partir desse número,
é indicado o momento exato da aplicação de
inseticidas.
Durante
o ano 2000 foram realizados testes em campo para assegurar a qualidade
do produto. Provada sua eficácia, o passo seguinte foi viabilizar
a sua comercialização. Outro parceiro foi procurado,
dessa vez a Coopercitrus (Cooperativa dos Cafeicultores e Citricultores
de São Paulo). Achamos que a cooperativa, por ser uma prestadora
de serviços ao produtor, seria a ponte ideal para comercializar
o kit do feromônio sexual do bicho furão sem intenção
de lucro. Acertada a parceria, em 2001 passamos para a fase de registro
e ajuste do produto. Sua liberação pelo Ministério
da Saúde aconteceu no final de agosto, e agora a Coopercitrus
já está importando a pastilha do Japão para
disponibilizá-la ao produtor ainda neste mês. Pacote
concluído, fica para nossa instituição e os
pesquisadores envolvidos o papel de treinar os agrônomos da
cooperativa para o uso adequado do produto, disseminar a informação
para o produtor, e a satisfação de viabilizar para
o setor citrícola o controle de mais uma praga através
do desenvolvimento de um pacote tecnológico. Nesse exemplo
do bicho furão o Fundecitrus financiou todo o projeto que
totalizou US$ 200 mil, valor quase que irrisório quando consideramos
a importância do problema e dos resultados obtidos.
O que
pretendemos mostrar com esses exemplos é a viabilidade de
parceria entre os vários agentes na produção
da pesquisa científica, seja ela realizada ou financiada
pelo setor produtivo. Basta identificar o foco do problema, buscar
os parceiros adequados, determinar atribuições específicas
e obter o financiamento necessário. É uma rede de
pessoas interessadas no mesmo projeto que deve ser montada. Para
isso, consideramos primordial a participação do setor
privado como coordenador da pesquisa. Achamos que esse nosso modelo
de produção científica vem contribuindo enormemente
para a manutenção e crescimento do parque citrícola
nacional, e que outros setores poderiam unir esforços da
mesma forma. Já está na hora do empresariado brasileiro
acreditar na realização de ciência e tecnologia
dentro do seu próprio quintal. Só assim deixaremos
de ser exclusivamente acadêmicos para implementarmos pesquisas
mais aplicadas, concorrendo de igual para igual nesse mercado globalizado.
Concluindo,
é preciso ficar atento para o fato de que a ciência
e a tecnologia devem agora ser vistos, desenvolvidos e empregados
não apenas na inovação tecnológica para
atender aos consumidores cada vez mais exigentes, mas para aumentar
a competitividade num mundo onde as commodities sofrem constante
desvalorização, onde o protecionismo se exacerba caba
vez mais, e onde os consumidores e seus governos pretendem consumir
produtos politicamente corretos que protejam o ser humano e o meio
ambiente. É uma nova forma de ver a C&T, não apenas
como ferramenta para ampliação dos negócios
mas também para a simples manutenção do mesmo.
Ademerval Garcia é presidente da Abecitrus - Associação
Brasileira dos Exportadores de Cítricos e do Fundecitrus
- Fundo de Defesa da Citricultura.
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