Livro
Verde pode ampliar conceito de política científica
Ulisses Capozoli
Política
científica é uma dessas expressões com interpretação
restrita que, no Brasil, acabou consagrada com um sentido amplo.
Aqui, política científica quase sempre significou
um apoio restrito a determinadas áreas, como aconteceu com
a informática em relação à reserva de
mercado, em meados dos anos 80. A olho nu, o que se observou, neste
caso, foi um contrabando intenso de computadores de qualidade duvidosa,
a custos elevados e sem um suporte minimamente desejável
em infraestrutura, o que retardou e dificultou a disseminação
dos serviços.
Mecânica
de precisão, química fina e novos materiais também
foram objeto de preocupações rotuladas de estratégicas
nos anos 80 sem que se tenha visualizado resultados mais promissores
desse esforço concentrado. Ao menos em termos de bem-estar
social. É possível, e quase certo, que segmentos produtivos
tenham se beneficiado destas políticas. Mas os resultados,
mais uma vez, ficaram distantes dos interesses do conjunto da sociedade.
Houve
uma época, entre os anos 60 e os 80, que as preocupações
se fixaram em órbita, sob a forma de um programa espacial
que prometia desenvolver satélites, veículos lançadores
e bases de lançamento, com transferência de tecnologia
para a indústria nacional, criação de empregos
e progressos em termos de bem-estar social.
O programa
espacial brasileiro nasceu sob o governo de Jânio Quadros
e ao final de exatos 40 anos não tem muito a comemorar. O
foguete lançador ainda não levantou vôo, os
satélites de comunicação, com cronogramas remanejados
para 2005, não foram além dos planos e a base de lançamentos,
no Maranhão, perdeu parte do significado que teria durante
a Guerra Fria. Há um esforço mal disfarçado
para alugar suas instalações a empresas norte-americanas
como forma de manter atualizados recursos humanos e instalações.
Ainda
agora, sobrevive o desejo de se enviar um astronauta ao espaço
num investimento que, considerando-se uma participação
simbólica na construção da Estação
Espacial Internacional, exige recursos em torno de US$ 200 milhões.
Enquanto isso, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),
o órgão mais próximo das atividades espaciais
no Brasil, não contrata pesquisadores desde meados dos anos
90 e, em conseqüência de uma política salarial
desestimulante, perdeu a maior parte de seus talentos. Vale a pena
acrescentar que ninguém sabe dizer, com um mínimo
de precisão, quanto se investiu no programa espacial ao longo
destas quatro décadas.
Na
década de 70, sob o comando dos generais, a opção
mais significativa, em termos de política científica,
envolveu o acordo nuclear com a Alemanha para a montagem das usinas
nucleares. Nem os mais pessimistas teriam ousado pensar que o século
20 terminaria antes e uma crise nacional de energia precederia a
conclusão das três usinas. Mas foi o que aconteceu
Tanto
o programa espacial como o nuclear traduziram a mesma preocupação
com o desenvolvimento militar. Particularmente o desejo de desenvolver
a bomba atômica e, pelo terror nuclear, ampliar a influência
geopolítica brasileira especialmente no cone sul do continente
O brigadeiro
Hugo Piva, inteligência brilhante e interlocutor cativante,
negociador de armas com Saddam Hussein, nunca negou a possibilidade
de que mísseis, desenvolvidos a partir de um foguete lançador
de satélites, pudessem transportar ogivas nucleares em vez
de instrumentação científica. Por isso mesmo,
um dos poucos atos significativos da administração
Collor de Mello foi o simbolismo da pá de cal que desativou,
ao menos oficialmente, o poço de provas nucleares escavado
no granito da Serra do Cachimbo.
Pode-se
argumentar que isto não é política científica,
posição que indica uma crítica mais exigente.
Mas, desde a decisão de se criar o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, o CNPq, há 50 anos,
é este arremedo de política científica que
tem prevalecido.
Certamente
não é dispensável reafirmar, especialmente
num momento em que as universidades federais estão entregues
à própria sorte, com o risco de se desatualizarem
pela ausência de um projeto de reformulação
amplo e profundo, que a decisão de se criar o CNPq lastreou
a investigação científica no Brasil. Especialmente
pela formação de recursos humanos, em cursos de pós-graduação.
E este foi um resultado que demandou meio século de trabalho.
Foi por essa via que o Brasil chegou à décima-sétima
posição como produtor mundial de ciência, uma
posição ainda afastada de sua condição
de décima potência econômica internacional.
Mas
de que adianta produzir mais de cinco mil doutores/ano se não
há espaço, sob a forma de empregos, dentro e fora
das universidades, para essas inteligências? As alternativas
adotadas até agora, em boa parte dos casos, restringe-se
a bolsas, mas bolsas não são empregos, não
oferecerem a estabilidade emocional mínima para se lançar
com determinação ao trabalho, mesmo para os espíritos
mais franciscanos.
Mario
Bunge, historiador e filósofo da ciência argentino,
num de seus muitos escritos, Ciência e Desenvolvimento,
indaga se é possível fazer pesquisa básica
em um país subdesenvolvido, levanta a relação
ciência/ sociedade e entre outras preocupações,
demonstra a relação entre ciência e problemas
nacionais, indagando se ciência é um luxo ou necessidade.
Bunge
coloca, assim, a questão de um ponto de vista epistemológico,
o que significa dizer que, de uma abordagem histórica, com
raras exceções, como foi o da fundação
do CNPq, a política científica no Brasil se ressente
de uma definição em termos de filosofia de ciência.
Uma justificativa clara em termos do que se quer com a produção
científica.
A
cartilha neoliberal, precedida do que Francis Fukuyama chamou de
"fim da história", prega o lucro como o maior bem.
Assim, a ciência foi desviada de seu curso natural, ao menos
segundo os padrões estabelecidos por Francis Bacon, para
participar de um novo padrão histórico de acumulação
de riquezas e de poder. O conhecimento científico, neste
momento, está na base do que os economistas chamam de desemprego
estrutural. O aparato científico-tecnológico contribuiu
de forma significativa para substituir homens por máquinas
reeditando de alguma maneira o que ocorreu no início da Revolução
Industrial. A diferença é que, até agora, não
surgiu um novo Lorde Byron para dizer que as máquinas estão
destruindo os homens.
Para
recolocar a discussão em termos produtivos, e neste caso
o Brasil está mais para a regra que para a exceção,
certamente é necessária uma nova abordagem. Por tudo
isso, o chamado Livro Verde, recentemente lançado pelo Ministério
da Ciência e Tecnologia pode ser uma oportunidade de transformação.
O projeto não é nenhuma garantia de que isso vá
ocorrer. Mas garantias não existem e esta é uma oportunidade
que deve ser aproveitada. Num primeiro encontro com as sociedades
científicas, na sede da SBPC, no mês passado, o projeto
recebeu críticas duras, diretas e, na maior parte dos casos,
procedentes. Mas isto tudo pode ser perfeitamente um bom começo.
O Brasil é um país de dimensões continentais
e sua população é parte de sua riqueza enquanto
mercado de consumo interno. As transformações necessárias
e inadiáveis de que o País necessita, no entanto,
não têm como acontecer na ausência de uma política
científica capaz de abranger um horizonte de tempo futuro
de, no mínimo, uma década. Não somos, como
mostra Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do
Brasil, uma Nação habituada a investigar o passado
e por isso mesmo não desenvolvemos habilidades suficientes
para prospectar o futuro. Há duas semanas o presidente da
república, retomou o tema das exportações sob
a forma de "exportar ou morrer". É uma reedicão
do "exportar é o que importa" dos governos militares
da década de 70. Mas nem exportar, nem tirar alimento da
terra, cuidar da saúde e da educação da população,
manter a riqueza da biodiversidade e assegurar uma esperança
de futuro prescinde de uma política científica. Não
no sentido restrito, que tem se manifestado até agora. Mas
no significado amplo: de estratégia e visão de futuro.
Ulisses
Capozoli, jornalista especializado em divulgação científica
é historiador da ciência e presidente da Associação
Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)
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