O
Itinerário da Pesquisa no Brasil
Evando
Mirra de Paula e Silva
Durante
a recente reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC) em Salvador, além dos eventos da
rica e variada programação geral, foram apresentados
4757 trabalhos científicos, dos quais 1112 na 8ª Jornada
Nacional de Iniciação Científica. Quem visitou
o local em que os pôsteres eram apresentados, cerca de 950
a cada dia, pôde receber diretamente o impacto de mais uma
amostra da vitalidade com que a pesquisa científica permeia
hoje a vida de nossas instituições de ensino e pesquisa.
Quando
nos lembramos de que o essencial das comunicações
científicas e tecnológicas se dá hoje nos encontros
organizados pelas 59 Sociedades Científicas associadas à
SBPC ou por entidades como Associação Brasileira das
Instituições de Pesquisa Tecnológica (Abipti)
ou da Associação Nacional de Entidades Promotoras
de Empreendimentos de Tecnologias Avançadas (Anprotec), voltadas
para a pesquisa tecnológica, é forçoso reconhecer
que uma imensa transformação cultural ocorreu - e
continua ocorrendo - no que diz respeito à produção
de conhecimento em nosso País. Para tomarmos apenas dois
exemplos do momento, bastaria lembrar que a reunião anual
da Federação de Sociedades de Biologia Experimental
(FeSBE), agregando sete sociedades de Biologia Experimental, recebeu
no final de agosto último cerca de 3500 participantes, envolvidos
em 26 cursos, 39 conferências, 67 simpósios e mais
de 2500 painéis da pesquisa biomédica. Para o encontro
anual de uma única associação, a Associação
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em
Administração (ANPAD), que reúne os Programas
de Pós-Graduação em Administração,
a ser realizado em meados deste mês (setembro), foram propostos
1385 trabalhos científicos.
Todos
os indicadores que examinarmos - como publicações
nas revistas indexadas, livros editados, demandas de financiamento
encaminhadas às Agências - apontarão para a
mesma direção, mostrando que apesar dos obstáculos
e das dificuldades recorrentes, e, embora estejamos ainda distantes
do que queremos e devemos fazer, é inegável que a
cultura da pesquisa se instala de forma abrangente e resoluta no
cenário do País.
Sabemos
o quanto essas conquistas são recentes e quão invisíveis
permanecem ainda para amplos segmentos da sociedade brasileira.
E sabemos também que a gênese e a evolução
desse quadro são provavelmente ainda mais desconhecidas.
O fato é que o Brasil tem uma história rica no seu
percurso em busca da construção do empreendimento
científico, embora seus primórdios datem apenas do
século XIX.
De
fato, as primeiras incursões na prática científica
associam-se à vinda da família real para o Brasil
quando da ocupação de Portugal pelas tropas de Napoleão.
Com a instalação da corte no Rio de Janeiro eram também
criadas as primeiras instituições que abrigariam o
investimento metódico em pesquisa, processo iniciado já
em 1808, com o Real Horto, que se transformaria mais tarde no Jardim
Botânico. A Academia de Guardas-Marinha, mais tarde Academia
Naval; a Escola Central, academia militar que formaria a primeira
escola de Engenharia do Brasil; o Colégio Médico-Cirúrgico
da Bahia e a instituição congênere do Rio de
Janeiro, bem como o Museu Real, futuro Museu Nacional, e as Escolas
de Direito em Recife e São Paulo representaram o surgimento
formal da Educação Superior no País.
O pensamento
científico trafegaria também pelo País pelas
correntes de ilustres naturalistas europeus, aqui desembarcados
a partir de 1816, como Saint-Hilaire, Darwin, Humboldt, von Martius
e Lund. Quase à mesma época, brasileiros educados
na Europa dariam início às expedições
científicas nacionais, como Martim Francisco e José
Bonifácio de Andrada e Silva que, a partir de 1819, percorreram
o interior de São Paulo em trabalhos de pesquisa geológica.
Em
torno de 1850, criou-se na Bahia a chamada Escola Tropicalista Baiana,
movimento baseado na Escola de Medicina e que teve a extraordinária
capacidade de, ao mesmo tempo, trabalhar sobre uma questão
de grande impacto, com a detecção da febre amarela,
e desenvolver trabalho científico naquele campo. No caminho,
criou a literatura científica brasileira com a Gazeta Médica
da Bahia, veículo dos trabalhos científicos do grupo.
A pesquisa biomédica teria ainda marcos importantes em seguida,
com a criação de Institutos como o Butantã
e o Soroterápico de Manguinhos. O desenvolvimento do soro
antiofídico em São Paulo e as antológicas campanhas
de saneamento no Rio de Janeiro, incluindo a emblemática
"guerra da varíola", em 1904, marcaram os primeiros
sucessos científicos brasileiros de repercussão internacional.
Manguinhos,
hoje Fiocruz, já introduzia então a prática
de treinar seus pesquisadores nos grandes laboratórios europeus,
ao mesmo tempo em que organizava missões sanitárias
ao interior do Brasil. Num desses trabalhos de campo, Carlos Chagas
faria a primeira descoberta no País de uma nova doença
e, numa proeza científica absolutamente extraordinária,
desenvolveu entre 1907 e 1909 um trabalho completo para sua caracterização
e análise, junto à abordagem de seus aspectos clínicos.
A medicina sanitarista abria assim um caminho fecundo que se ramificaria
em todo um espectro de pesquisa biomédica no País.
Ao
mesmo tempo iniciava-se também em outras áreas o trabalho
precursor de introdução de estratégias e métodos
científicos. A crônica do itinerário dos grandes
pioneiros seria longa e não cabe aqui. Mas alguns dos filamentos
dessa malha deveriam ser lembrados, a título de exemplo do
percurso que viria a permitir a constituição do quadro
e das possibilidades científicas atuais do Brasil
De
certa forma, o desenvolvimento de ciência, tecnologia e educação
superior nas primeiras décadas do século XX pode ser
visto como resultante da interação de duas tendências
principais, uma, voltada para a aplicação de princípios
científicos em vista de resultados em curto prazo; a outra,
mais acadêmica, centrada no papel cultural da produção
científica e da educação universitária.
A primeira tendência materializou-se em diversos centros e
institutos de pesquisa voltados principalmente para a Agricultura,
Biologia Aplicada, Medicina Tropical, Geologia e Engenharia. A vertente
acadêmica surgiria freqüentemente como atividade quase
clandestina dentro daquelas instituições de pesquisa
aplicada e só mais tarde viria a iniciar sua institucionalização
com as primeiras universidades brasileiras no final dos anos 20
e na década de 1930.
Embora raramente contasse com um clima acolhedor e espaço
intelectual favorável, a nucleação da cultura
científica teve início mesmo assim e conduziu à
formação dos primeiros grupos de pesquisadores em
sintonia com as tendências científicas contemporâneas.
Foi assim, por exemplo, no Instituto Nacional de Tecnologia no Rio
de Janeiro, onde a par de suas realizações técnicas,
como o primeiro projeto bem sucedido do uso do álcool dos
motores de combustão, ainda nos anos 30, começou a
ser feita pesquisa de vanguarda em ciências físicas
com os trabalhos de Bernard Gross em raios cósmicos. Na Faculdade
Nacional de Filosofia, Joaquim da Costa Ribeiro realizaria, pouco
depois, trabalho de repercussão internacional com a descoberta
do Efeito Termodielétrico.
A criação
da USP em 1934 permitiria a vinda da Europa de lideranças
científicas importantes, que nucleariam aqui atividades de
pesquisa em diversos campos. Para a Física, teve papel especial
a vinda de Gleb Wataghin e Giuseppe Occhialini, não só
pela formação de cientistas talentosos como Mario
Schenberg e Marcelo Damy, mas porque se iniciou também com
eles o percurso do jovem César Lattes, que o conduziria a
ter papel determinante na descoberta do méson p. A descoberta
teve grande impacto internacional e valeria ao inglês Cecil
Powell, figura de maior prestígio de seu grupo, o Premio
Nobel da Física em 1950.
Atividades e sucessos dessa natureza, dentre outros, tornaram possível
a criação do CNPq em 1951, primeira Agência
de fomento à pesquisa entre nós. Esse evento foi um
divisor de águas. Começava ali a construção
dos espaços e das estratégias institucionais para
que a prática científica viesse finalmente a se instalar
coletivamente no País. Agregando-se à Academia Brasileira
de Ciências e à SBPC, que a precederam, a nova instituição
anunciava também o surgimento das novas estruturas de apoio
que se seguiriam, como a CAPES, a FINEP, a FAPESP e as Fundações
estaduais que se inspiraram em seu modelo.
O esforço
sustentado, ao longo desses cinqüenta anos, mudou o perfil
do empreendimento científico brasileiro. Da atividade solitária
dos primeiros visionários, do trabalho obstinado dos primeiros
grupos que abriram os espaços em terreno hostil ou indiferente,
até a apropriação coletiva da produção
de conhecimento no cotidiano de nossas instituições
de ensino e pesquisa, a diferença não é apenas
de grau, mas de natureza. Trata-se de um outro universo, com outras
características, outras dinâmicas, com outros problemas,
certamente, mas também com outras possibilidades.
O Brasil
conta hoje com uma comunidade de cerca de duzentas mil pessoas rotineiramente
envolvidas com a prática da pesquisa científica e
tecnológica, organizadas em doze mil grupos, desenvolvendo
mais de 40.000 linhas de investigação e vinculadas
a cerca de 230 instituições de ensino e pesquisa.
A produção científica e a capacidade de formação
de pesquisadores dessa comunidade colocam hoje o País entre
as dezessete nações que mais contribuem para o acervo
universal de conhecimento de qualidade e entre as doze nações
de maior capacidade na formação de doutores. A recente
avaliação dos 2.357 cursos de pós-graduação
realizada pela CAPES confirma também o nível de competência
aqui alcançado no processo de qualificação.
Estamos,
portanto, muito distantes de um momento como aquele em que Anísio
Teixeira, em seu depoimento de maio de 1968 no Congresso Nacional,
lamentava a inexistência da pesquisa em nossas instituições
de ensino superior. Ao sustentar a necessidade imperiosa de que
viesse a se institucionalizar entre nós a investigação
científica, dizia ele que nossas instituições
só se transformariam em verdadeiras universidades quando,
por meio da pesquisa, passassem a participar da produção
da cultura que ensinam. Hoje, elas já o fazem. Estamos não
apenas muito distantes daquele momento, mas em um outro mundo.
O momento
em que nos encontramos é, assim, um momento rico em realizações
e em novas possibilidades. Em que pesem as insuficiências
endêmicas e as dificuldades recorrentes, que demandam de nós
a persistência obstinada na busca de soluções
adequadas para a sustentação e o crescimento do empreendimento
científico no País, a direção manifesta
nesse empreendimento é positiva e encorajadora.
Os
desafios que agora se colocam para a sua consolidação
e o prosseguimento dessa história envolvem necessariamente
maior aproximação com toda a sociedade brasileira
e a busca da inserção definitiva de ciência
e tecnologia na Agenda concreta do País, com suas contribuições
na geração de bens e serviços e na solução
dos grandes problemas nacionais.
Evando
Mirra de Paula e Silva é Presidente do CNPq
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