Inteligência, linguagem e mente humana
            Ulisses Capozoli
             Não sabemos quando apareceu a linguagem, o que não 
              chega a ser um desconforto especial. Como disse Loren Eiseley, num 
              de seus escritos mais surpreendentes, somos "órfãos 
              cósmicos" e, nessa condição, estamos desamparados 
              no mundo.
             Recorremos à ciência, como os antigos faziam com 
              os oráculos, em busca de pistas sobre a nossa própria 
              existência. E as respostas que obtemos, com freqüência 
              muito maior que a admitida por um certo pragmatismo, são 
              tão vagas e desconcertantes como as fornecidas pelos oráculos. 
              Assim, de alguma forma, caminhamos e permanecemos no mesmo lugar. 
              Nossa orfandade nos domina como a gravidade poderosa dos buracos 
              negros, capazes de engolir sóis inteiros sem regurgitar. 
              Ao menos por períodos imensuráveis para os padrões 
              humanos.
            Os astrônomos, manejando equações da linguagem, 
              referem-se ao "zoológico cósmico", ao tratarem 
              de "criaturas" como buracos negros, sorvedores de tudo 
              que se aproxima deles a uma distância definida por seu apetite 
              insaciável. Tudo quanto devoraram anteriormente, aumentando 
              seu corpanzil, só fez crescer a determinação 
              de ampliar seu raio de ação à espreita de novas 
              presas. Matéria, ou energia, para a voracidade dos buracos 
              negros, não faz diferença alguma.
            Os astrônomos só podem falar de um "zoológico 
              cósmico" e de suas criaturas exóticas pelo que 
              Wittgenstein chamou de "jogos de linguagem". Neste caso, 
              é possível falar de animais cósmicos com a 
              mesma naturalidade que se diz de Casa Verde. Não uma casa 
              verde em particular, mas um bairro, uma região ou uma cidade 
              com o nome de Casa Verde.
             Certamente que uma casa verde, em particular, pode estar na raiz 
              dessa qualificação. Mas, na maioria dos casos, ela 
              nem existe mais e suas marcas, como a história misteriosa 
              dos homens, está inteiramente apagada. Assim, a linguagem, 
              para prosseguir na metáfora dos jogos, é uma possibilidade. 
              Diferentes contextos produzem distintas formas. 
            Wittgenstein, filósofo da linguagem, como um Descartes moderno, 
              tentou precaver-se do erro transmitido pela linguagem com um enorme 
              esforço construído à base de proposições. 
              Talvez sua idéia mais conhecida, na base do seu Tractatus 
              Logico-Philosophicus seja "do que não se pode falar, 
              deve-se calar". Descartes preferiu a matemática, embora 
              o "cogito ergo sum" esteja associado à sua imagem 
              como a cabeleira rebelde à figura de Einstein e os olhos 
              escuros e melancólicos à fisionomia de Isaac Newton. 
              Do esforço de homens como Wittgenstein, Descartes, Einstein 
              e Newton depende o avanço da ciência, que o próprio 
              Einstein, mais de uma vez, avaliou como o tesouro mais precioso 
              da humanidade.
             Mas garantir-se contra o erro certamente é um esforço 
              destinado ao fracasso. Ainda assim, como Sísifo, condenado 
              a levar uma pedra até o cume da montanha, de onde ela rolaria 
              para a base, os homens não se cansam de tentar. É 
              parte da sina humana. Tentar o impossível, com o propósito 
              de fazer, da determinação, o resultado final.
             No erro pode estar o acerto, ao menos em termos de seleção 
              natural. O erro pode trazer a vantagem e a vantagem a sobrevivência. 
              A vida é uma incessante lapidação de formas, 
              com a diferença que, neste caso, os escultores, sóis 
              gigantescos que explodiram em épocas remotas, colisões 
              de mundos bilhões de vezes mais densos que o chumbo, interações 
              de galáxias como a fusão de bandos de aves em migração, 
              dispararam das profundezas do espaço-tempo seus dardos moduladores 
              de formas.
            Inteligência, linguagem e mente humana parecem tão 
              harmoniosamente ligados como os sóis dos interiores galáticos. 
              Não apenas seus campos gravitacionais se entrelaçam, 
              cada vez mais fracamente, dependendo do aumento da distância, 
              sem nunca se esgotar. Suas emissões, as luminosas, e as rajadas 
              de partículas, pedaços de átomos partidos, 
              também interagem num movimento incessante, como as ondas 
              do mar. Na verdade, as ondulações do mar se originam 
              no coração do Sol, resultado do esmagamentos atômico, 
              a fusão nuclear. Essa é a usina de força que 
              gera os ventos na Terra e os ventos são parte do complexo 
              mecanismo que agita o mar.
            Richard Leakey, antropólogo que, como seus pais Louis e 
              Mary Leakey fizeram, escarafuncha as planícies aluviais da 
              África, atrás dos primeiros humanos, escreveu em Origins, 
              aqui homenageado com o empréstimo do título de um 
              capítulo, que "a linguagem falada é, provavelmente, 
              o último passo e, com toda a certeza, o mais importante, 
              na evolução do cérebro humano".
            Uma das razões para se pensar assim, na interpretação 
              de Leakey, é que "a capacidade de comunicar-se verbalmente 
              eleva as possibilidades de educação infantil a novos 
              e férteis níveis, e é incomparável como 
              veículo para o desenvolvimento e transmissão da cultura".
            Como já disseram outros antropólogos, antes e depois 
              dos Leakey, a linguagem, a fabricação de ferramentas 
              e a organização social integram um complexo evolutivo 
              que deve ter moldado as formas especiais ao cérebro humano. 
              Eiseley, com a naturalidade que lhe deu uma longa e apaixonada observação 
              do mundo, tanto na arqueologia, como na antropologia, na história 
              natural e na história da ciência, certamente acrescentaria 
              que a visão estereoscópica e os dedos prênseis, 
              foram talhados pela seleção natural e a fonte original, 
              a casa de força desse mecanismo, pode permanecer oculta nas 
              profundezas do Universo.
            Não há nada de místico ou irracional numa 
              idéia como essa. A causa de estranhamento, para muitos, não 
              é outra coisa senão o caldo ralo do reducionismo, 
              este sim, uma armadilha perigosa para uma ciência criativa, 
              capaz de saciar a grande sede de conhecimento do homem.
            Ainda que a linguagem seja um elemento essencial na produção 
              do homem, e certamente uma consequência do pensar, por sua 
              natureza exclusivamente simbólica, ela está ausente 
              dos registros paleontológicos e arqueológicos. Ao 
              menos até 5 mil anos, quando, no que hoje é território 
              do Iraque, agricultores bem sucedidos inventaram a escrita.
             O impacto trazido pela escrita, a codificação em 
              barro da linguagem oral, separou a história da pré-história, 
              como os bólidos disparados do centro da Terra romperam a 
              crosta, formaram as placas tectônicas e desenharam os continentes 
              atuais. Certamente não é por acaso que, entre os sumérios, 
              prosperou não apenas a escrita, mas também as artes 
              divinatórias, a previsão do futuro. As margens do 
              Tigre e do Eufrates foram o berço onde nasceu a astrologia, 
              a proto-astronomia.
             A escrita permitiu que tivéssemos contato com Aristóteles, 
              Platão, Sócrates (pelas narrativas de Platão), 
              Heródoto e Sófocles, para fazer uma incursão 
              aleatória pelos tesouros do mundo antigo.
            Mas, sem a linguagem, a escrita não teria razão de 
              ser. Como o mundo não teria razão de ser na ausência 
              do homem. O mundo, tal como o conhecemos, é produto da interpretação 
              humana. Na ausência do homem, ele se desfaz enquanto sentido 
              de mundo, sustentado por uma interpretação que tem 
              como suporte simbólico a linguagem. Na ausência do 
              homem, há um abismo de significados.
            E não só a escrita não teria razão 
              de ser. Na ausência da linguagem, certamente não teríamos 
              como conservar nem mesmo o primeiro fogo que um homem desconhecido, 
              numa data ignorada, roubou de um incêndio natural. Ninguém 
              saberia dizer como esse fogo ancestral, pilhado de um incêndio, 
              foi conservado como uma tocha olímpica varando a noite dos 
              tempos. Ainda hoje, essa chama ancestral pode avivar fogueiras de 
              aborígenes ou, até recentemente, ter sobrevivido no 
              frio extremo da Sibéria.
            Se um arqueólogo pudesse demonstrar que o fogo que arde 
              ainda hoje numa aldeia africana é remanescente dessa primeira 
              chama, provocaria uma pequena comoção entre cientistas 
              e jornalistas. Mas, seguramente, não mais que isso. A linguagem 
              levou o homem longe demais e nesse longo percurso o desconhecido 
              dominou todas as cenas. Não há nada de novo sob o 
              Sol, mas tudo é novo sob o Sol. Quem enxergar contradição 
              neste par de opostos deveria obrigar-se a oferecer uma explicação 
              não contraditória para a natureza dupla da luz.
            A natureza do fogo, como a da linguagem, não permite que 
              se possa obter dele um registro fossilizado. O que os arqueólogos 
              encontram, com alguma freqüência, caso da Serra da Capivara, 
              no Sul do Piauí, ou em Monte Verde, no Sudeste do Chile, 
              são restos de fogueiras antigas. Mas esse é um outro 
              achado, onde o fogo se extinguiu ou de onde foi retirado. São 
              ocorrências próximas, o que não significa que 
              sejam a mesma coisa.
            Da mesma forma que o fogo, todo ele emanado de um fogo só, 
              que um dia acendeu o Universo ao manifestar-se com sua natureza 
              dupla de matéria/energia, a linguagem deve ter emanado de 
              uma fonte única: o primeiro homem. 
            O primeiro homem, para tomar de empréstimo uma imagem de 
              Bronowski, é evidentemente uma abstração, um 
              recurso de linguagem para referir-se ao inefável, àquilo 
              que não se pode, não por veto, mas por impossibilidade, 
              dizer.
            Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação 
              científica é historiador da ciência e presidente 
              da Associação Brasileira de Jornalismo científico 
              (ABJC).