A
polêmica sobre os "estrangeirismos"
e o papel dos lingüistas no Brasil
Kanavillil
Rajagopalan
A polêmica
instaurada já há algum tempo no Brasil acerca do uso/abuso
(dependendo de que lado da controvérsia se contempla o fenômeno)
dos assim-chamados "estrangeirismos" já se tornou
uma verdadeira cause-célèbre (com o perdão
da palavra, é claro!).
De
um lado dessa polêmica, um contingente impressionante de pessoas,
ao que parece em número crescente, reivindica uma tomada
de atitude firme e decidida diante da enxurrada de expressões
estrangeiras no português brasileiro e da facilidade e falta
de senso crítico com que elas são absorvidas pelo
uso corrente do idioma, quer na mídia, quer nos cartazes
e letreiros. Se depender do desejo desses defensores do idioma,
com certeza será dado um "basta", curto e sonoro,
ao processo em curso, visto que tal processo é tido como
nada mais nada menos que uma agressão a um valioso patrimônio
da nação. Nessa perspectiva, quem não se enquadrar
nessa nobre missão de zelar pelo bem público, será
enquadrado na forma de lei e punido de acordo com regras de comportamento
lingüístico pré-estabelecidas mediante legislação.
Proteger a língua nacional significa, afirmam eles, salvaguardar
a soberania nacional. E quando o assunto é esse, todo esforço
no sentido de responder à altura a possíveis ameaças
à soberania nacional é, sem sombra de dúvida,
válido. Dir-se-á que se trata de uma "razão
de Estado" que, convém lembrar, sobrepõe-se a
todos os demais direitos, estabelecidos por lei ou consagrados pela
tradição.
Do
outro lado dessa polêmica estamos nós, os lingüistas.
Não que, como lingüistas, isto é, profissionais
interessados em desvendar os mistérios da linguagem e pensar
sobre a melhor maneira de construir teorias sobre ela, já
não nos houvéssemos posicionado a respeito de questões
da ordem da política lingüística. Mas a verdade
é que a dimensão política envolvendo as línguas
nunca foi o nosso forte. Havíamos nos acostumado a nos esquivar
de questões como planejamento lingüístico. O
próprio termo soa, para muitos de nós, como algo que
sobrou do entulho autoritário que marcou outras épocas.
Faz parte da cartilha da nossa disciplina a idéia de que
as línguas obedecem às suas próprias leis.
Elas evoluem, se renovam, se ajustam a novas exigências de
comunicação e de contato com outros povos. Em relação
às línguas, portanto, o melhor a fazer deveria ser
deixá-las em paz. Mexer com o destino das línguas
revelar-se-ia tão perigoso quanto trabalhar com engenharia
genética- brincar de Deus, o Todo Poderoso, uma vez que nunca
se sabe como tudo vai terminar ou que surpresas desagradáveis
nos esperam pela frente.
O fato
é que a maioria de nós foi pega de calças curtas
pelos últimos acontecimentos. As diferentes tentativas de
estancar o avanço dos estrangeirismos, inclusive através
de projeto lei, surpreenderam-nos não só pela maneira
como foram feitas, à revelia dos nossos esforços científicos
sobre o assunto, mas também pela enorme repercussão
que tiveram na mídia, como também nas conversas dos
bares. Que os leigos costumam entreter idéias pouco científicas
a respeito da linguagem sempre foi matéria de qualquer curso
introdutório sobre a lingüística. O primeiro
passo, dizem esses manuais de lingüística, para adquirir
o espírito da moderna ciência da linguagem, é
justamente o de se desvencilhar das idéias preconcebidas
sobre a linguagem. Infelizmente, muitas dessas idéias escancaradamente
errôneas ou no mínimo discutíveis, como costumamos
ensinar em nossos cursos introdutórios, acabam se alojando
até mesmo no discurso acadêmico mais precavido e acabam
sendo preservadas para a posteridade na forma de preconceitos lingüísticos.
Muitos desses preconceitos, por sua vez, acabam encontrando respaldo
nas chamadas "gramáticas tradicionais"-assim denominadas
por não terem sido submetidas ao escrutínio rigoroso
dos métodos científicos da lingüística.
Afinal, não foi contra a tirania da gramática tradicional
que a Lingüística Moderna se insurgiu no começo
do século XX?
Perplexos
diante da volta e do recrudescimento de algumas dessas idéias
falsas ou ingênuas, aqueles entre nós mais preocupados
com o rumo dos acontecimentos, perguntam: O que saiu errado? Por
que motivo os ensinamentos da moderna ciência da linguagem
não estão tendo a devida repercussão na sociedade
civil? Por que razão a idéia-bastante elementar e
singela para nós-de que as línguas naturais evoluem
constantemente e, ao longo desse processo de evolução,
entram em contato com outras línguas, incorporam novas palavras
e expressões, e, longe de serem prejudicadas pela absorção
dos elementos estranhos, acabam na verdade se beneficiando e se
enriquecendo etc., não consegue sensibilizar aqueles que
insistem em legislar contra a própria natureza da linguagem?
Para
podermos fazer qualquer avaliação da maneira como
a polêmica tem evoluído até o momento, é
preciso, antes de qualquer outra coisa, reconhecer que o que presenciamos
hoje é um empate. Isto é, a discussão se encontra
simplesmente travada. Cada lado marcou sua posição
irredutível e não está disposto a ceder. O
que vem a ser pior, para quem vê a situação
do lado de fora da contenda (hipótese puramente imaginária,
já que os lingüistas e os leigos se complementam, esgotando
o universo do discurso), a polêmica se transformou em uma
conversa entre surdos, cada lado gritando cada vez mais, sem ter
o menor interesse em ouvir o que o outro lado tem a dizer, e sem
sequer acreditar que o outro lado esteja realmente interessado em
ouvir as suas razões.
A
pergunta com a qual gostaria de iniciar a minha discussão
do tema em pauta é: por que razão está se revelando
tão difícil, para não dizer impossível,
um diálogo entre as partes? A resposta instantânea
pode ser resumida numa só palavra: desconfiança. Pois
existe uma desconfiança mútua entre ambas as partes.
Já
vimos que a Lingüística se ergueu como ciência
a partir de um certo repúdio ao senso comum a respeito da
linguagem. O senso comum, diz a cartilha da disciplina, está
repleto de idéias mal pensadas e suscetíveis de fácil
falsificação. O saber científico nasce no momento
em que deixamos em suspense tudo o que o senso comum nos ensina
para que possamos contemplar o fenômeno a ser estudado sem
idéias preconcebidas.
Por
sua parte, o leigo (leia-se o não lingüista) não
consegue entender como um grupo de estudiosos, de credenciais inquestionáveis,
consegue colocar-se contrário a propostas que, no seu entender,
parecem tão evidentes e em perfeita sintonia com ... bem,
o senso comum. Mesmo disposto a dar-lhes todo o respeito que merecem,
o leigo vê os lingüistas como pessoas que investiram
tantos anos no estudo da linguagem e que, no entanto, tomam posições
tão difíceis de entender. Ou seja, no atual empate
entre o público leigo e os lingüistas, são estes
últimos que se acham cada vez mais isolados e vistos como
quem pouco ou nada têm para contribuir.
Para o lingüista, o leigo é demasiado ingênuo
e precisa ser devidamente instruído para pensar de forma
correta. Para o leigo, perplexo diante daquilo que parece pura insensatez
por parte do lingüista, é preciso procurar outras fontes
do saber quando o assunto é a língua nacional enquanto
patrimônio público.
É
fato que, com raríssimas exceções honrosas,
poucos entre nós lingüistas paramos para pensar que
as línguas, além de serem instrumentos de comunicação,
atributo distintivo do ser humano etc., também são
verdadeiras bandeiras políticas, atrás das quais se
reúnem povos e em nome das quais muitos se dispõem
a derramar o próprio sangue. Pois não será
o caso de levar em conta que muitas das nossas consagradas teorias
a respeito da linguagem estão despreparadas para o desafio
de refletir sobre a política lingüística, em
particular sobre o planejamento lingüístico de uma nação?
Com
o intuito de trazer mais subsídios para a discussão,
trago as seguintes considerações. Em primeiro lugar,
é preciso que nós lingüistas nos interessemos
cada vez mais pela dimensão política, sob pena de
permanecermos às margens das discussões em curso no
país. Se dentro dos arcabouços teóricos, com
os quais estamos habituados a trabalhar, não há espaço
para levantar questões relativas à política
lingüística, partamos em busca de novos caminhos. De
nada adianta reclamar que as propostas que vêm sendo oferecidas
por políticos ávidos em atender aos anseios do povo
(e, não infreqüentemente, canalizá-los em benefício
próprio) estão em desacordo com os ensinamentos da
ciência, se não perguntarmos primeiramente se a própria
ciência, no caso, se interessou pela questão política
em algum momento.
É preciso, em outras palavras, reconhecer que a questão
da política lingüística não pode ser tratada
como um simples adendo a teorias concebidas ao largo de qualquer
vínculo entre linguagem e política. É aí
que talvez tenha havido o nosso maior tropeço: o de tentar
achar uma ligação direta entre duas coisas tão
desvinculadas uma da outra. De um lado, está um corpo de
conhecimentos acumulado através de anos de estudo que, no
entanto, nunca teve espaço algum para refletir sobre as conotações
políticas que a linguagem carrega, principalmente para os
falantes dos diversos idiomas. Do outro lado, encontramos propostas
concretas no campo de planejamento lingüístico, inclusive
propostas da ordem da "engenharia lingüística",
com finalidade de intervir em determinadas realidades lingüísticas.
Por bem ou por mal, intervenções políticas
no rumo das línguas são mais comuns do que gostaríamos
que fossem. A história da humanidade está repleta
de casos de intervenção proposital no destino de determinadas
línguas, com objetivos diversos. De um lado há casos
como o do hebraico moderno, língua recuperada das poeiras
da história em nome da unificação de um povo
e do seu desejo de fundar uma nação própria,
e o do hindusthani, língua literalmente "inventada"
pelo líder indiano Mahathma Gandhi, ao pleitear que o hindi
e o urdu (línguas faladas majoritariamente pelos hindus e
muçulmanos respectivamente no sub-continente da Índia)
fossem considerados uma só língua. Do outro lado,
encontramos casos como o do alemão que, em diversos momentos
da sua história, sofreu tentativas de purificação
a partir do expurgo das palavras de origem latina, e o caso, bem
mais recente, do esforço do falecido líder Franjo
Tudjman, da Croácia, no sentido de introduzir sistematicamente
grande número de neologismos a fim de que, com o passar dos
tempos, a fala dos croatas se tornasse incompreensível para
os sérvios, vizinhos com os quais compartilhavam a mesma
pátria e o mesmo idioma até o início das hostilidades
entre os dois povos, parceiros da antiga Iugoslávia.
A moral
da história: independentemente do que se prevê em algumas
teorias sobre o funcionamento da linguagem e a propriedade ou não
de tentar intervir na evolução de diferentes línguas,
a política lingüística sempre imperou no mundo
inteiro, em diferentes momentos da sua história, e sempre
houve quem pleiteasse intervenções sistemáticas
a fim de "salvar" certas línguas dos possíveis
descaminhos. Mais ainda: como sempre acontece nesses casos, tais
intervenções são feitas, via de regra, ou com
propósitos nobres e justificáveis, como os de unir
povos ou de fazer a paz entre povos que não se entendem ou,
ao contrário, para semear o ódio entre povos e pescar
proveito político nessas águas turvas.
De
nada adianta bater na tecla de que falta uma boa dose de lingüística
nas discussões políticas a respeito da língua
portuguesa e seus rumos no Brasil. O que falta não é
lingüística, mas, sim, o reconhecimento de que com ou
sem nós, as coisas vão se desenrolando no cenário
político, e que a atitude mais sensata no atual quadro é
entrar na discussão nos termos em que ela está colocada,
com o objetivo de mostrar a todos as conseqüências políticas
que podem ter, a longo prazo, medidas apressadas tomadas hoje.
Finalizando:
o que se deve perguntar não é se faz sentido tentar
influenciar o destino de um povo, intervindo nas línguas
que efetivamente colaboram na construção da identidade
daquele povo. A pergunta que urgentemente precisamos fazer é:
que esforços podem ser empreendidos de imediato a fim de
trazer à baila os interesses ocultos e escusos que podem
eventualmente estar por trás das propostas políticas
e descortinar as conseqüências longínquas de adotarmos
esta ou aquela política no momento atual.
É
preciso, com urgência, encarar a dimensão política
da linguagem, sob pena de sermos ultrapassados pela marcha dos acontecimentos
ao nosso redor.
Kanavillil
Rajagopalan é lingüista e professor do Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp.
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