Maria Helena de Moura Neves
O temo norma tem duas significações básicas,
quando o campo é o da linguagem.
Na primeira, entende-se norma como a modalidade lingüística
"normal", "comum". Em princípio essa
modalidade seria estabelecida pela freqüência de uso,
e, se se contempla, realmente, o uso lingüístico, essa
visão, sem fazer valoração, reparte a noção
de norma por estratos sociais (variação de uso diastrática),
por períodos de tempo (variação de uso diacrônica)
por regiões (variação de uso diatópica).
A ressalva é que pode tratar-se de uma língua idealizada
como "normal", "comum", e, então, a noção
é de uma única modalidade, aquela concebida e tida
como usual, como "média dos falares", abstraindo-se,
por aí, a freqüência e a modalidade de uso.
Na segunda significação, o termo norma é
entendido como o uso regrado , como a modalidade "sabida"
por alguns, mas não por outros. Também neste caso,
se se contempla a real inserção de tal modalidade
"padrão" no uso lingüístico, a noção
de norma se reparte diastrática, diacrônica e diatopicamente,
entretanto com juízo de valor sobre as modalidades, em cada
zona de variação: umas são mais prestigiadas
que outras. De outro lado, se há uma - e apenas uma - modalidade
estabelecida como representação de um padrão
desejável, a concepção é ainda mais
arbitrária, e sempre se sustenta por autoridade.
Nas duas concepções insere-se a norma na sociedade.
Na primeira, o que está em questão é o uso,
e, então, a relação com a sociedade aponta
para a aglutinação social. Na segunda, trata-se de
bom-uso, e a relação com a sociedade aponta
para a discriminação, criando-se, por aí, estigmas
e exclusões. É crucial a diferença.
No domínio interno da organização lingüística,
outras noções se oferecem a reflexão - por
exemplo, a pureza, a vernaculidade, ou mesmo, o logicismo, na língua
- mas qualquer uma dessas noções só se liga
a norma prescritivista por via de uma relação com
parâmetros sociais, aí incluída a autoridade
de usuários considerados os sábios da língua
(especificamente, os gramáticos). Com efeito, não
haveria qualidades internas ao sistema da língua capazes
de responder pela fidelidade do uso lingüístico a padrões
considerados puros ou elevados (purismo), ou pela fidelidade da
organização da língua à organização
do pensamento (logicismo).
Na compreensão da necessária relação
entre propriedades lingüísticas e parâmetros sociais
fica implicado que ela se faz em duas direções: na
direção da língua para a realidade social e
na direção desta para a língua. Assim, de um
lado, é possível entender-se que a língua (especialmente
se tida como monolítica) pode sustentar a identidade de uma
sociedade e frear sua fragmentação, mas, por outro
lado, pode-se entender que a diversidade social há de configurar
uma língua não monolítica, a serviço
da diversidade, sem se estabelecer uma relação necessária
com fragmentação. Já observei, em um artigo,
que, afinal, já em 1935 Firth desmanchava o mito da existência
de uma língua monolítica e homogênea.
Foi à escola, como espaço institucional privilegiado
de parametrização social, que tradicionalmente se
confiou o papel de guardiã da norma regrada e valorizada,
daquele bom-uso que tem o poder de qualificar o usuário para
a obtenção de passaportes sociais, e, portanto, para
o trânsito ascendente nos diversos estratos. Foi por aí
que se perpetuou, na educação escolar, aquele esquema
medieval de associação de modelo de uso com autoridade
e com urbanidade, ligando-se sempre bom-uso lingüístico
a fixidez de parâmetros, e corrupção lingüística
a alteração e mudança.
Obviamente o bom-uso se fixou na modalidade escrita, entendendo-se
a linguagem falada como território que, por menor, podia
abrigar todas as tolerâncias e "transgressões",
como se língua falada não tivesse norma, quase como
se não tivesse gramática. Criou-se, na escola, um
tal abismo entre as duas modalidades que, no fundo, instituiu-se
que a fala (em princípio, a modalidade do aluno) é
imperfeita por natureza, e que língua escrita (em princípio,
a modalidade do professor) é a meta a ser atingida, como
se não houvesse modalidade-padrão também na
fala e como se o conhecimento de um padrão prestigiado, na
língua falada, não fosse também desejável.
A marcada imprecisão que se observa no equacionamento das
relações entre fala e escrita nas escolas talvez possa
ser apontada como um dos maiores fatores dos maus resultados do
ensino de língua materna, tanto no que se refere ao desempenho
eficiente quanto no que se refere à adequação
da linguagem aos padrões socialmente valorizados. Ignora-se
a diferente natureza das duas modalidades, ignorância que
parte da diferença básica entre a co-autoria que caracteriza
a produção falada típica - a conversação
- e a responsabilidade pessoal e individual do texto escrito. Obviamente,
essa é a primeira fonte da menor pressão prescritivista
sobre a língua falada: tal pressão se liga, fortemente,
às características propriamente lingüísticas
da produção escrita, e não se dá apenas
por motivação social, embora esta seja obviamente
relevante, especialmente porque o texto escrito tem perenidade,
o que o deixa sob constante observação.
Ora, não há como não ver que, na produção
escrita, diferentemente do que ocorre na produção
oral, ficam muito evidentes as marcas - e a ausência de marcas
- de concordância, de regência, de flexão, etc.,
e, assim, ficam testemunhadas as quebras sintáticas, Numa
conversação, que é uma construção
coparticipativa, a completude sintática nem é esperada,
e, muitas vezes, nem mesmo é desejável, já
que repetições, digressões, inserções,
correções e, mesmo, hesitações, que,
em princípio, truncariam, atropelariam e subverteriam orações,
constituem valiosos recursos para encadeamento temático da
seqüência, para relevo de segmentos, afinal, para condução
do fluxo de informação. Além disso, o texto
escrito traz, ao menos virtualmente, um fechamento semântico
que vem na direção do autor para o leitor, configurado
pela intenção do produtor do texto, por mais que este
tenha a consciência ¾ e a esperança ¾
de que o leitor seja o construtor final do sentido daquilo que ele
"diz", e, por aí, "interaja" com ele,
seja o seu "interlocutor", para que a finalidade maior
da criação do texto se cumpra.
Apesar de a língua escrita ser o território em que
mais se evidencia a obediência, ou não, a modelos prestigiados
de uso, pode-se afirmar que em qualquer modalidade de língua
se constituem normas que emergem naturalmente da média dos
usos nas diferentes situações. A mesma teoria que
mostrou que variação e mudança são propriedades
constitutivas da linguagem, e que, portanto, existem diferentes
e legítimos modos de uso da língua em diferentes lugares,
em diferentes tempos e em diferentes situações, mostra,
também, que a funcionalidade desses diferentes usos, e, portanto,
a sua adequação, inclui a existência de normas,
inclusive de uma norma-padrão, socioculturalmente definida
e valorizada.
A grande questão ainda mal compreendida, e não apenas
na visão leiga, é o estabelecimento da fonte de legitimação
do prestígio de determinados padrões, isto é,
a fixação de quais sejam as razões pelas quais
uma determinada construção é, ou não,
abonada pelas lições normativas.
Assim, por exemplo, muitas vezes se aponta como modelar um uso
porque ele é corrente em escritores "clássicos"
da língua, correndo-se o risco de propor lições
que ignoram o princípio básico de variabilidade e
evolução das línguas. Na verdade, esse modo
de estabelecimento de padrões é insustentável.
Observe-se que as obras prescritivistas atuais recomendam a regência
indireta para o verbo obedecer (com complemento iniciado
pela preposição a), que não é,
entretanto, a regência usada por clássicos (não
se esqueça que Vieira escreveu "Quem ama obedecerá
e guardará meus preceitos" e que Vieira e Euclides da
Cunha escreveram "obedecê-los").
Outras vezes, sem apelar para a autoridade da antigüidade
(uetustas), considera-se prestigiado um uso porque ele ocorre
em alguns grandes escritores (urbanitas), reconhecendo-se,
aparentemente, o princípio básico de variabilidade
das línguas, mas ainda permanecendo-se no erro de vencer
essa ignorância apenas quanto à variabilidade no tempo.
De qualquer modo, haverá, ainda, a enfrentar a dificuldade
de estabelecer as exatas fronteiras de "legitimidade"
e prestígio, já que se encontrarão outros bons
escritores que não adotam os mesmos parâmetros.
O simples reconhecimento dessa dificuldade - e a conseqüente
relativização do valor propriamente lingüístico
de uma norma prescritivista - já seria um grande avanço,
e a própria proposição da norma de prestígio
já se formularia mais como uma orientação para
adequação sociocultural de uso do que como uma receita
de "legitimidade" e de "pureza" lingüística
de determinadas construções. Essas construções,
na verdade, em geral se erigiram em modelo porque socioculturalmente
representam o uso de uma elite intelectual do momento, e não
porque são as "legítimas" e "puras"
construções da língua portuguesa, qualidades
difíceis de verificar, na quase totalidade dos casos. Não
esqueçamos que, dentro de (centenas de) anos, com certeza
não serão as mesmas as prescrições,
e que, por exemplo, uma preposição que hoje se diz
ser exigida no complemento de um verbo, sob pena de cometimento
de pecado mortal, pode ser o diabo da vez dentro de algum tempo!
Ou vice-versa.