A
globalização da língua
Aldo
Rebelo
"Claro
que por trás disto há certas coisas. No fundo,
"teen" não é qualquer adolescente.
Fica compreendido mais ou menos que ele é o adolescente
que freqüenta shoppings, só estuda e não
necessita trabalhar e, talvez, até compreenda inglês.
Adolescentes, em português, seriam os pobres. Então,
por trás da importação de palavras,
há também um mecanismo de exclusão
social, o analfabeto em inglês. Que, aliás,
é a grande maioria dos brasileiros. Este não
sabe o que é "delivery", "home bank",
"net bank", "smoked ham", "marrowbone",
"sauce garlic", "parmesan cheese", "blue
cheese", "active strips", "milk bar"
etc."
(Ernani Porto)
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O projeto
de lei que apresentei na Câmara dos Deputados dispõe
sobre a promoção, a proteção, a defesa
e o uso da Língua Portuguesa. A proposta recebeu o apoio
de simples cidadãos que amam seu idioma e querem defendê-lo
da saraivada de estrangeirismos que deformam a língua e truncam
a comunicação do povo. Em Brasília, um deputado
ligado aos lojistas do Distrito Federal disse-me que o batismo de
lojas com nomes em inglês faz com que trabalhadores mais simples
como entregadores chamem as lojas pelas cores de que são
pintadas (azul, rosa, cinza) por não se arriscarem a pronunciar
os estrangeirismos com que os proprietários denominam seus
negócios. Mas o projeto também recebeu o apoio de
professores, lingüistas (não os neoliberais, evidentemente),
jornalistas, advogados e patriotas em geral.
É
verdade que a iniciativa foi alvo de críticas. Algumas resultantes
de conflitos ideológicos e políticos com o autor e
o conteúdo da proposta. Naturais, portanto. Outras ressalvas
têm origem no desconhecimento do projeto e apóiam-se
nas supostas lacunas indicadas pelo senso comum.
A alma
do projeto vive no seu artigo 2º. Ele incumbe o Poder Público,
com a colaboração da comunidade, no intuito de promover,
proteger, e defender a Língua Portuguesa, do seguinte:
I
- melhorar as condições de ensino e de aprendizagem
da Língua Portuguesa em todos os graus, níveis e modalidades
da educação nacional;
II - incentivar o estudo e a pesquisa sobre os modos normativos
e populares de expressão oral e escrita do povo brasileiro;
III - realizar campanhas e certames educativos sobre o uso da Língua
Portuguesa, destinados a estudantes, professores e cidadãos
em geral;
IV - incentivar a difusão do idioma português,
dentro e fora do País;
V - fomentar a participação do Brasil na Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa;
VI - atualizar, com base em parecer da Academia Brasileira
de Letras, as normas do Formulário Ortográfico, com
vistas ao aportuguesamento e à inclusão de vocábulos
de origem estrangeira no Vocabulário Ortográfico da
Língua Portuguesa.
Acrescenta
ainda no mesmo Artigo:
§
1° . Os meios de comunicação de massa e as
instituições de ensino deverão, na forma desta
lei, participar ativamente da realização prática
dos objetivos listados nos incisos anteriores.
Mesmo
quando trata no artigo 3º da obrigatoriedade do uso da Língua
Portuguesa o projeto faz as cuidadosas ressalvas em que ele não
se aplica:
I
- a situações que decorram da livre manifestação
do pensamento e da livre expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação,
nos termos dos incisos IV e IX do art. 5° da Constituição
Federal;
II - a situações que decorram de força
legal ou de interesse nacional;
III - a comunicações e informações
destinadas a estrangeiros, no Brasil ou no exterior;
IV - a membros das comunidades indígenas nacionais;
V - ao ensino e à aprendizagem das línguas
estrangeiras;
VI - a palavras e expressões em língua estrangeira
consagradas pelo uso, registradas no Vocabulário Ortográfico
da Língua Portuguesa;
VII - a palavras e expressões em língua estrangeira
que decorram de razão social, marca ou patente legalmente
constituída.
Idioma
e resistência
Associar
tal projeto a qualquer parentesco com as medidas propostas pelo
nazismo ou pelo franquismo é manifestação de
profunda ignorância histórica, ou pior, interesse em
dar cobertura ideológica à ofensiva econômica,
comercial, financeira, militar, diplomática, cultural e lingüística
do império que tem como idioma e ativo estratégico
o inglês. Não seria mais ético reconhecer que
longe de semelhança com a tentativa de imposição
franquista do idioma de Castela aos demais povos de Espanha, o nosso
projeto estaria na verdade muito mais próximo da resistência
de catalães, galegos e bascos em defesa de suas línguas?
John
Naisbitt, festejado consultor de Cambridge, em seu Paradoxo Global,
dedica um capítulo inteiro à questão do idioma,
demonstrando como ao mesmo tempo em que o inglês torna-se
instrumento de dominação econômica e cultural
sobre o planeta, povos e nações adotam a defesa do
idioma como instrumento de resistência contra a globalização
asfixiante e empobrecedora. Vale a pena transcrever o trecho no
qual ele fala da Islândia:
"Alguns
vão bastante longe na defesa de seu idioma. Ninguém
vai mais longe do que o povo da Islândia. Todo islandês
fala o inglês como segundo idioma e a maioria também
fala outros idiomas. Contudo, eles protegem ferrenhamente a pureza
do idioma islandês. Caso surja uma palavra nova, como software
ou nanossegundo, um comitê decide que palavras e sons
islandeses devem ser reunidos para representar o objeto novo ou
a idéia nova. Inexistem sons não-islandeses no idioma
desse povo cujo número atinge apenas 250 mil pessoas. É
digno de menção que a Islândia possui, também,
o mais antigo governo democrático (parlamentarista) do mundo
e a taxa de alfabetização mais elevada." Eis
aí um caso elogiado por Naisbitt que deixaria nossos neoliberais
da língua completamente alvoroçados.
Em
qualquer idioma, as palavras nascem, morrem, mudam de sentido, reúnem-se
e separam-se em locuções, são substituídas,
cortadas, ampliadas. A língua acompanha a economia, a ciência,
a organização da sociedade, os costumes, a política,
os movimentos sociais, as revoluções. A Revolução
Francesa forjou termos como jacobino e restaurante entre outros.
As transformações que impôs ao mundo foram acompanhadas
pelas palavras que lhes deram existência.
O vernáculo
deve estar receptivo, portanto, às inovações,
descobertas, invenções e mudanças que transformam
o mundo. Com o português não poderia ser diferente.
Só os que acreditam na insensatez anticientífica num
mundo imutável poderiam defender um idioma castiço,
imune às alterações que aumentam o patrimônio
léxico. Como o mundo e todas as coisas, os idiomas estão
em permanente mudança.
E só
atentar no passado para perceber que da presença muçulmana
na antiga Lusitânia, herdamos centenas de palavras, como arroz,
açúcar, azeite, alfândega, almirante, refém
e oxalá. Segundo alguns, também a preposição
"até". Dos germânicos, em especial suevos
e visigodos, recebemos guerra, espiar, roubar, estaca, ganso, luva,
trégua, e, mais recentemente, balcão, blindar, bordar
- assim como numerosos nomes de pessoas e lugares, a exemplo de
Fernando, Rodrigo, Álvaro, Gonçalo, Guimarães
e muitos outros. Poderíamos acrescentar a essa lista milhares
de vocábulos que aproveitamos do francês, inglês,
italiano, chinês, entre outros.
A
presença índia e africana
Já
no Brasil o português impôs-se como ferramenta de conquista
da coroa lusitana. O padre José de Anchieta, que aqui chegou
em 1554, tanto sabia disso que providenciou um idioma para a comunicação
com os nativos. Sua famosa obra leva o título de A arte da
gramática da língua mais usada na costa do Brasil.
A realização profunda e duradoura de Anchieta e seus
companheiros jesuítas, justiça seja feita, pode ser
testemunhada até hoje, como tive ocasião de comprovar
recentemente em viagem a fronteira do Brasil com a Venezuela, pelo
uso dessa língua geral até os dias atuais por indígenas
brasileiros e por caboclos da Amazônia. A chamada língua
boa, ou nheengatu em tupi, sobrevive até hoje mesmo tendo
sido proibida em 1757 pelo Marquês de Pombal. Estrategista
refinado, o marquês percebera que superado o Tratado de Tordesilhas
e vigorando o de Madri que ampliou os domínios do império
luso para o Oeste e para o Norte, o melhor a fazer seria transformar
a língua em arma geopolítica para consolidar a presença
portuguesa em rivalidade com a espanhola. Pombal proibiu o ensino
da língua geral e expulsou os jesuítas seus criadores.
Nem
por ocasião das jornadas de independência, alentada
por movimentos nativistas, os patriotas tentaram fixar uma "língua
brasileira". Alguns rebeldes de 1817 chegaram a substituir
a farinha de trigo pela de mandioca, e o vinho do porto pela cachaça
nos brindes que faziam à revolução. Outros
trocaram os sobrenomes portugueses pelos indígenas Araripe,
Tupinambá e tantos outros que até hoje batizam inúmeras
famílias brasileiras, mas sem pretender mudar o título
do idioma nacional.
É
verdade que da presença índia e africana resultou
um português modificado na pronúncia e no léxico.
Por meio da língua geral, o tupi transmitiu ao português
numerosas palavras, ainda hoje correntes - abacaxi, arapuca, caipira,
caraíba, guariba, jacaré, cambembe -, além
de nomear quase toda a fauna. Algumas são músicas
para os ouvidos, como o verbo cutucar e o substantivo sambaqui que
designa os sítios arqueológicos do litoral. Os escravos
contribuíram com palavras e expressões como batuque,
caçula, cafuné, fulo, maxixe, mocambo, moleque, samba
e, para não esquecermos da escravidão e das lutas
dos negros, sabalangá, senzala e quilombo. São palavras
amenas, suaves de agradar o céu da boca. "No Brasil
fala-se português com açúcar", disse Eça
de Queiroz. Ou "com sal", prefere Lygia Fagundes Telles.
Defender
o idioma não é imunizá-lo dos empréstimos
e incorporações necessárias a sua renovação.
Mas é, ao mesmo tempo, cuidar de sua permanência e
continuidade. A língua portuguesa padece atualmente do excesso
de estrangeirismos e do relaxamento das normas para inclusão
de palavras e expressões no vocabulário nacional.
O artigo 13º da Constituição anuncia que a Língua
Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa
do Brasil. Temo sinceramente que a qualquer hora incluam-no no rol
dos artigos a serem reformados a exemplo do que já aconteceu
com aqueles que cuidavam dos direitos sociais dos trabalhadores,
da defesa do patrimônio público e da economia nacional.
É hora de abandonar o protesto silencioso e erguer o movimento
nacional para exaltação e defesa do idioma. A língua
do país é o português, e não fosse um
dever cívico defendê-la é um prazer proteger
um dos mais belos idiomas da humanidade.
Aldo
Rebelo é jornalista, deputado federal por São
Paulo (PCdoB) e autor do Projeto de Lei 1676/99. Correio eletrônico:
dep.aldorebelo@camara.gov.br
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