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Brasil em português de Portugal: a cobertura dos 500 anos na mídia
impressa portuguesa
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por Jesiel de Oliveira Filho Se fosse o caso de se procurar uma palavra que, a despeito dos inevitáveis reducionismos, pretendesse resumir num único qualificativo o espírito que presidiu à cobertura realizada pelo jornal Público das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, a que me ocorre é: "escaldada". Como o famoso gato em relação à água fria. A voz lusitana expressa nas matérias e reportagens do Público - jornal que desempenha um importante papel na sociedade daquele país como formador de uma opinião que se revê e se projeta como bem-pensante, contemporânea e esclarecida - refletia o tom de cautelosa agressividade adotado por quem enfrentou duro vexame e não queria repetir a dose. Escaldou-os, aos portugueses "públicos", o pesado fogo-de-barragem disparado pela crítica historiográfica, de proveniência acadêmica sobretudo indiana, contra as comemorações da Primeira Viagem às Índias, em 1998, denunciando de documento na mão as violências e arbitrariedades cometidas pelo Capitão-Mor D. Vasco e seus sucessores nas terras do Oriente. Escaldava-os o diplomático desprezo a que a política externa brasileira votou a ex-metrópole colonial, desde que o globalizado Governo de Fernando Henrique Cardoso fez a sua opção preferencial pelos ricos do planeta. Escaldava-os para além do ofendimento a impossibilidade de relativizar a cruel memória do escravismo, diligente e lucrativamente praticado durante a tal "construção do Brasil", o que ficou patenteado até pela historiografia menos isenta. Enfim: era água quente demais a entornar o caldo das comemorações do descobrimento. Nada disso justifica o discurso esquivo, e por vezes cinicamente ressentido, que serviu de manto para aquilo que o antropólogo português Miguel Vale de Almeida denominou de "obsessão identitária com a 'gesta' do passado" ["Comemorar o Futuro". Público, 22/04/2000]. Mas, seria mesmo no passado em que estaria focada a obsessão? Funcionando como uma espécie de fantasia defensiva contra a escaldante factualidade, esse discurso obstruiu a possibilidade de um autêntico diálogo crítico com a memória colonial, sustentando um faz-de-conta cuja cena imaginária deslocava a conflituosidade dessa memória re-emergente pela estranha lógica de uma onipresença do presente: "A história não se escreve a preto e branco. Não tem apenas heróis e vilões. E seguramente que não a podemos analisar apenas de acordo com os padrões éticos de hoje - senão falarmos de evolução e progresso ao longo do fluir dos séculos não faria sentido". As palavras de abertura do editorial de José Manuel Fernandes ["Sem Complexos". Público, 22/04/2000] traem os dilemas da fantasia defensiva: "evolução" e "progresso" são valores emblemáticos do nosso tempo. No entanto, é em nome desse valores que uma suposta processualidade da história é convertida em estratégia de apagamento daquilo que é inconveniente na memória: é porque hoje vemos a tudo, ao "fluir dos séculos", como "evolução e progresso", que podemos deixar de ver o ontem. Os valores do presente condicionam a comunicação com o passado - a sua própria inteligibilidade. Seguramente, é só assim que as coisas fazem sentido... Seria igualmente redutor resumir toda a cobertura do Brasil quincentenário realizada pelo Público à confusa memória de seu principal editorialista. Se a imagem genérica de nosso país transmitida pelo noticiário cotidiano concentrou-se em temas como a corrupção e a violência institucionalizadas, além do fatal - e tão pouco digno de ser lembrado, hoje em dia... - futebol, tratavam-se mesmo das imagens que, desgraçadamente, temos o duvidoso privilégio de exportar para a imprensa do mundo inteiro, e que não são menos recorrentes nas páginas dos jornais brasileiros. Em meio a isso, o Público não deixou de destacar o incipiente intercâmbio cultural deflagrado pelo processo comemorativo, em particular no campo artístico, assim como a maior parte das reportagens dedicadas aos eventos acadêmicos deu voz, com razoável equanimidade, à opinião dos especialistas brasileiros sobre os tais 500 anos e sobre as posições adotadas pela sociedade portuguesa em relação à polêmica efeméride. Por sua vez, seria ingenuidade não notar a persistência dos diversos estereótipos que permeavam as abordagens do Brasil e dos brasileiros - muito embora, para quem atentamente as lesse, marcadas por aquela ambivalência característica do confronto com a "'alteridade' que é ao mesmo tempo um objeto de desejo e escárnio, uma articulação da diferença contida dentro da fantasia da origem e da identidade", conforme assinala Homi Bhabha [cf. "A Outra Questão". In O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p.106] - esse atento observador das escaldantes sutilezas dos "encontros de culturas". Poderia e deveria ser diferente, mas ainda está por vir o futuro em que comemoraremos algo assim. De imediato, somente a imprevisível dinâmica dos variados sistemas de intercâmbio, das trocas diretas e indiretas que se impõem, para o bem e para o mal, a partir da efetiva dissolução de fronteiras que compõe o nosso tempo, somente a vivência dessa movedicidade que parece mesmo sui generis possibilitará um outro tempo - tempo dos encontros mais inesperados com os mais velhos conhecidos. Tempo de novos rubores. Jesiel de Oliveira filho é bacharel em Letras e pesquisador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) |
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Atualizado em 10/04/2001 |
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