O Brasil em português de Portugal: a cobertura dos 500 anos na mídia impressa portuguesa
   
 
Outros Quinhentos: Carlos Vogt
Projeto Resgate reencontra a História

500 anos impulsiona memória arquitetônica

Cultura como patrimônio histórico

Ritual dos 500 anos também é objeto de pesquisa

Objetos contam a história do Brasil
Outros 500 quer construir um novo país

Índios ainda lutam por direitos básicos

Pataxós lutam pelo Monte Pascoal
Interesse por mapas históricos cresceu com os 500 anos

Nau Capitânia, o símbolo que não navegou

Piada de brasileiro:
Paulo Miceli

A História e os interesses da nação:
Ulisses Capozoli

Dois projetos audiovisuais, duas formas de refletir:
Andrea Molfetta

As comemorações na mídia:
Eneida Leal Cunha

Na mídia portuguesa, alguma crítica, muito ufanismo:
Igor Machado
O Brasil em português de Portugal:
Jesiel de Oliveira Filho

Histórias & Personagens:
Zélio Alves Pinto

Poema
 

por Jesiel de Oliveira Filho

Se fosse o caso de se procurar uma palavra que, a despeito dos inevitáveis reducionismos, pretendesse resumir num único qualificativo o espírito que presidiu à cobertura realizada pelo jornal Público das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, a que me ocorre é: "escaldada". Como o famoso gato em relação à água fria. A voz lusitana expressa nas matérias e reportagens do Público - jornal que desempenha um importante papel na sociedade daquele país como formador de uma opinião que se revê e se projeta como bem-pensante, contemporânea e esclarecida - refletia o tom de cautelosa agressividade adotado por quem enfrentou duro vexame e não queria repetir a dose. Escaldou-os, aos portugueses "públicos", o pesado fogo-de-barragem disparado pela crítica historiográfica, de proveniência acadêmica sobretudo indiana, contra as comemorações da Primeira Viagem às Índias, em 1998, denunciando de documento na mão as violências e arbitrariedades cometidas pelo Capitão-Mor D. Vasco e seus sucessores nas terras do Oriente. Escaldava-os o diplomático desprezo a que a política externa brasileira votou a ex-metrópole colonial, desde que o globalizado Governo de Fernando Henrique Cardoso fez a sua opção preferencial pelos ricos do planeta. Escaldava-os para além do ofendimento a impossibilidade de relativizar a cruel memória do escravismo, diligente e lucrativamente praticado durante a tal "construção do Brasil", o que ficou patenteado até pela historiografia menos isenta. Enfim: era água quente demais a entornar o caldo das comemorações do descobrimento.

Nada disso justifica o discurso esquivo, e por vezes cinicamente ressentido, que serviu de manto para aquilo que o antropólogo português Miguel Vale de Almeida denominou de "obsessão identitária com a 'gesta' do passado" ["Comemorar o Futuro". Público, 22/04/2000]. Mas, seria mesmo no passado em que estaria focada a obsessão? Funcionando como uma espécie de fantasia defensiva contra a escaldante factualidade, esse discurso obstruiu a possibilidade de um autêntico diálogo crítico com a memória colonial, sustentando um faz-de-conta cuja cena imaginária deslocava a conflituosidade dessa memória re-emergente pela estranha lógica de uma onipresença do presente: "A história não se escreve a preto e branco. Não tem apenas heróis e vilões. E seguramente que não a podemos analisar apenas de acordo com os padrões éticos de hoje - senão falarmos de evolução e progresso ao longo do fluir dos séculos não faria sentido". As palavras de abertura do editorial de José Manuel Fernandes ["Sem Complexos". Público, 22/04/2000] traem os dilemas da fantasia defensiva: "evolução" e "progresso" são valores emblemáticos do nosso tempo. No entanto, é em nome desse valores que uma suposta processualidade da história é convertida em estratégia de apagamento daquilo que é inconveniente na memória: é porque hoje vemos a tudo, ao "fluir dos séculos", como "evolução e progresso", que podemos deixar de ver o ontem. Os valores do presente condicionam a comunicação com o passado - a sua própria inteligibilidade. Seguramente, é só assim que as coisas fazem sentido...

Seria igualmente redutor resumir toda a cobertura do Brasil quincentenário realizada pelo Público à confusa memória de seu principal editorialista. Se a imagem genérica de nosso país transmitida pelo noticiário cotidiano concentrou-se em temas como a corrupção e a violência institucionalizadas, além do fatal - e tão pouco digno de ser lembrado, hoje em dia... - futebol, tratavam-se mesmo das imagens que, desgraçadamente, temos o duvidoso privilégio de exportar para a imprensa do mundo inteiro, e que não são menos recorrentes nas páginas dos jornais brasileiros. Em meio a isso, o Público não deixou de destacar o incipiente intercâmbio cultural deflagrado pelo processo comemorativo, em particular no campo artístico, assim como a maior parte das reportagens dedicadas aos eventos acadêmicos deu voz, com razoável equanimidade, à opinião dos especialistas brasileiros sobre os tais 500 anos e sobre as posições adotadas pela sociedade portuguesa em relação à polêmica efeméride. Por sua vez, seria ingenuidade não notar a persistência dos diversos estereótipos que permeavam as abordagens do Brasil e dos brasileiros - muito embora, para quem atentamente as lesse, marcadas por aquela ambivalência característica do confronto com a "'alteridade' que é ao mesmo tempo um objeto de desejo e escárnio, uma articulação da diferença contida dentro da fantasia da origem e da identidade", conforme assinala Homi Bhabha [cf. "A Outra Questão". In O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p.106] - esse atento observador das escaldantes sutilezas dos "encontros de culturas".

Poderia e deveria ser diferente, mas ainda está por vir o futuro em que comemoraremos algo assim. De imediato, somente a imprevisível dinâmica dos variados sistemas de intercâmbio, das trocas diretas e indiretas que se impõem, para o bem e para o mal, a partir da efetiva dissolução de fronteiras que compõe o nosso tempo, somente a vivência dessa movedicidade que parece mesmo sui generis possibilitará um outro tempo - tempo dos encontros mais inesperados com os mais velhos conhecidos. Tempo de novos rubores.

Jesiel de Oliveira filho é bacharel em Letras e pesquisador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI)

   
           
     

Esta reportagem tem
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,
11, 12, 13, 14, 15, 16, 17
, 18, 19
documentos
Bibliografia | Créditos

   
     
   
     

 

   
     

Atualizado em 10/04/2001

   
     

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2001
SBPC/Labjor
Brasil