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Dois
projetos audio-visuais, duas formas de refletir sobre os 500 Anos
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Andrea Molfetta Em função das comemorações dos 500 anos da colonização da América desenvolveram-se vários projetos audiovisuais no formato de vídeo. Em particular, interessa-me neste artigo comparar as características de dois deles: um promovido por uma instituição não-governamental nacional e, o outro, por uma instituição governamental estrangeira. O primeiro deles foi o Projeto Fronteiras, desenvolvido pelo Itaú Cultural em 1998. O segundo, o Projeto Diários de Viagem, organizado pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros da França entre 1985 e 1995. No Projeto Fronteiras, cinco vídeo-artistas brasileiros foram convidados a percorrer os respectivos cinco pontos dos nossos limites geográficos. O propósito foi desenvolver o que Ricardo Ribenboim, superintendente do Itaú Cultural, chamou de "ação prospectiva": a instituição promovendo ações e oferecendo os recursos para a produção de trabalhos que possibilitem a reunião do campo intelectual em torno de um assunto. Neste caso, a reflexão sobre a identidade brasileira com motivo dos 500 anos da colonização do Brasil. O resultado foi uma coleção de vídeos que, longe de abordar esta questão na forma do documentário clássico, trouxe uma reflexão a respeito das difusas fronteiras geográficas e humanas do nosso país, assim como sobre as próprias fronteiras estilísticas do gênero documentário. As obras mostram o caráter abstrato desta dupla questão fronteiriça. Fazem da identidade nacional algo líquido, aberto, sem limites claros entre o brasileiro e o sul-americano. Fazem do documentário moderno uma fronteira porosa e vaga entre o registro observacional e a intervenção poética do autor sobre sua realidade. Os cinco vídeos produzidos possuem um forte traço experimental, fazendo com que a reflexão sobre nossa identidade comporte, ao mesmo tempo, uma argumentação explícita e assertiva, assim como visões singulares, anedóticas, poéticas e até ficcionais sobre o tema. Um dos vídeos do Projeto Fronteiras foi Chuí - Chuy, Lecy e Humberto nos Campos Neutrais, de Sandra Kogut (SP, 8min, 1998,Betacam/DVCam/Super 8). A obra de Kogut permite compreender a fronteira como um lugar de sonho, onde o fantástico revela-se infiltrado em imagens corriqueiras das ruas de ambos os lados do limite. A questão da identidade nacional aparece incrustada na história privada de um casal, a história de um amor conflituado pela linha divisória entre o Uruguay e o Brasil. Em São Gabriel da Cachoeira - San Felipe, de Carlos Nader (SP, 1998,7min, Betacam/DVCam) relata-se uma viagem com o poeta Waly Salomão até a Cabeça do Cachorro, região onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia, mas ninguém parece se importar com isso, já que a fronteira se encontra numa região alagada, onde é impossível trazer limites. Pode-se concluir a partir destas narrativas que a proposta nacional tem um objetivo centrado e definido, reunindo efetivamente a reflexão criativa e intelectual em torno deste assunto, focalizado pontualmente na nossa geografia. Nos termos de Rimbemboin, o projeto "(...)é um programa que busca se aproximar do mercado e da sociedade, para a organização e estruturação do setor audiovisual no Brasil, especificamente o do documentário. Ao mesmo tempo, acredita estar dando um passo para que o gênero se desenvolva e também para que obras artísticas e culturais brasileiras possam melhor se inserir no circuito nacional e internacional de produção e difusão." O Projeto Diários de Viagem apoiou-se numa ação cultural já iniciada pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros da França, o Festival Franco-Latino-americano de Vídeo-arte, que desenvolveu o contato entre os realizadores e animadores culturais da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile e França. Ao longo de dez edições deste evento, 21 artistas premiados (franceses e sul-americanos) receberam o convite para realizar um diário de viagem sobre suas vivências do outro lado do Atlântico. Assim, os diários franceses relatam experiências vividas no nosso continente, e os diários sul-americanos, a de viajar para Paris e tomar contato com um grande centro de experimentação com novas tecnologias, o Centre International de Creátion-Vídeo "Pierre Schäeffer". Neste caso, o cruzamento simétrico e racional das experiências promoveu um conjunto extremamente heterogêneo de trabalhos, todos ancorados na intenção de reeditar, o talvez, mais praticado dos gêneros na época da conquista: a crônica contida nos diários de viagem literários dos primeiros viajantes. Assim, a proposta européia foi definida a partir do estado das pesquisas acadêmicas na França, especificamente em relação à influência das novas tecnologias da comunicação nas formas narrativas mais tradicionais. O evento, de cunho comemorativo dos 500 anos de descobrimento da América, serviu somente como ponto de partida para este conjunto que, ao todo, situa-se muito distante da reflexão sobre a questão da nossa identidade e as conseqüências da colonização. O resultado deste projeto, foram duas linhas de produção bastante diferenciadas. Os diários sul-americanos na França (13 ao todo) apresentam, em geral, a visão do sujeito viajante encerrado dentro da esfera da sua subjetividade, dando lugar a relatos íntimos, de cunho formal e abstrato. Está presente neles certo deslumbramento diante da variedade de recursos para a distorção eletrônica e digital das imagens e sons, fazendo um uso nem sempre controlado destes recursos, o que, na maioria dos casos, descaracterizou os traços autorais e dos trabalhos. Nos termos de Bill Nichols, são filmes que pertencem a uma modalidade reflexiva do documentário, caracterizada pela obstrução do acesso ao mundo devida à consciência meta-lingüística e desconstrutiva da própria linguagem poética. Estes vídeos inscrevem-se na tradição do cinema experimental e do cinema documentarista mais moderno, fazendo da produção videográfica sul-americana sua continuação histórica. Em troca disso, os diários franceses oferecem uma visão do sujeito extremamente relacionada com o contexto, onde o próprio dispositivo da câmara é utilizado como ferramenta para a troca e a interação. Dá a impressão de que os estrangeiros sentiram-se "como em casa". Os realizadores franceses falam diante da câmara (em francês), conversam com os colegas sul-americanos (que se esforçam para falar o francês), com as pessoas da rua, e a grande maioria deles se valem do recurso da entrevista ou do depoimento para construir um relato assertivo sobre a experiência de um europeu na América Latina. O uso dos efeitos eletrônicos e digitais é controlado (é notável o aprofundamento no uso de somente um recurso em cada diário) e dirigido especificamente a algumas questões da enunciação, como a construção do quadro ou os efeitos de passagem entre um plano e outro. Dentro da taxonomia dos relatos documentários já citada, os vídeos franceses situam-se dentro da modalidade interativa documentária, inscrevendo-se na tradição do cinema-verdade francês da década de 50-60, que questiona o estatuto do gênero, sem por este motivo perder de vista uma indagação antropológica. Não há lugar para o "fascínio" pelos recursos das novas tecnologias da comunicação, simplesmente pelo fato de que possuem contato cotidiano com as mesmas. Este é outro ponto marcante da comparação: neste projeto, o conjunto da produção foi realizado e finalizado com recursos do centro acima citado, não viabilizando recursos para a produção no nosso território - os artistas sul-americanos foram convidados a finalizar seus trabalhos na França - e, sim, se interessando por estabelecer metas institucionais na distribuição e legitimação cultural do nosso contexto. A visão do sujeito auto-biográfico que os diários franceses transmitem é aquela segundo a qual o europeu se sente a vontade dentro do nosso contexto, usando o vídeo enquanto ferramenta de intercâmbio. Embora a agilidade da câmara e a democratização do recurso sejam duas das características mais marcantes que o formato eletrônico introduziu na mídia audiovisual, o artista da nossa região fez do vídeo um aparelho que por sobre todas as coisas revela a condição discursiva da sua mensagem, obstruindo a comunicação mais direta. Os diários sul-americanos não explicitam em nenhum momento alguma possível causa deste seu recuo - facilmente dedutível a partir da nossa experiência cultural periférica e dominada - , embora transpirem uma situação de isolamento e falta de troca de diálogos raramente presente em outros trabalhos dos mesmos realizadores. Trata-se de sua condição discriminada, que pouco contribuiu à reflexão sobre nós mesmos, e isto guarda uma relação direta com as condições e as características do projeto cultural dentro do qual estas obras foram encomendadas. O propósito de refletir sobre nossa identidade em função das comemorações dos 500 anos de colonização existiu somente na proposta brasileira do Projeto Fronteiras. A proposta francesa promoveu um falso intercâmbio, que de fato atuou como entre cruzamento simétrico de produtores, e não promoveu um contato efetivo. Os artistas de ambos continentes não trabalharam juntos, revelando que este projeto, longe de promover um intercâmbio cultural e tecnológico, funcionou como um verdadeiro esconde-esconde entre as duas margens - políticas - do Atlântico. A reflexão sobre as identidades nacionais e suas características humanas e geográficas após os 500 anos da colonização não foi o objetivo central do Projeto Diários de Viagens. A justificativa da ação do ministério francês apoiou-se no discurso da nossa necessidade de promoção cultural e tecnológica forâneas. Mais especificamente, os artistas trocaram informações tecnológicas dentro do centro de experimentação parisiense, mas não vivenciaram, em conjunto, uma experiência que envolvesse, tanto o caráter técnico, quanto poético do trabalho e, muito menos uma abordagem comparativa da produção destas duas regiões. Ficou claro, que as diretrizes do projeto francês dirigiram-se à continuação de uma relação de dependência tecnológica e, sobretudo, ao controle do sistema de distribuição e legitimação cultural da arte eletrônica local, baseando-se num discurso tecnocrático e globalizante que confunde, sem inocência, o novo com o bom. A diferença entre "descobrir" e "colonizar" é a mesma que está presente entre estes dois projetos culturais. Com descobrimento, fazem do nosso papel na história um lugar passivo. Com o termo "colonização", admitimos uma visão ativa do nosso papel histórico, no caso, o de ter enfrentado uma miscigenação e assumido seus resultados. Em síntese, o descobridor não admite na sua visão mais do que uma relação de troca paternalista. Por sorte ou, mais do que por sorte, por inteligência dos nossos agentes culturais, a promoção de projetos que indagam sobre nossa identidade só poderia dar certo quando promovida por nossas próprias instituições, conquistando a ação cultural do nosso território. Andrea Molfetta é professora e pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da USP |
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Atualizado em 10/04/2001 |
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