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As
comemorações dos descobrimentos na mídia
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por Eneida Leal Cunha Entre janeiro de 98 e dezembro de 2000, o Projeto Reconfigurações de Imaginários e Reconstruções de Identidades fez o acompanhamento sistemático das repercussões das comemorações dos descobrimentos na imprensa brasileira e portuguesa, a partir de veículos pré-selecionados [1]. Foram colecionadas as matérias jornalísticas que abordassem não apenas os eventos comemorativos e seus desdobramentos, mas a incidência, nos veículos midiáticos, de um elenco de questões articuladas à problemática contemporânea dos Estados Nação e da "identidade nacional". Especialmente, interessavam ao projeto as relações pretéritas e presentes entre Brasil e Portugal; as tensões político-culturais entre esses Estados Nacionais e a ordem transnacional contemporânea; as tensões internas atuais entre as pedagógicas narrativas da nacionalidade (os discursos da unidade e da homogeneidade nacional) e as emergentes interpelações performáticas de segmentos ou grupos que reivindicam a 'diferença cultural', o direito à voz e à auto-representação; os delineamentos e os impasses de uma comunidade política e cultural "Lusófona". O mapeamento desses materiais resultou num vasto acervo documental, capaz de informar tanto ao atual projeto de investigação quanto a pesquisadores e projetos futuros sobre o "estado da arte" dos debates sobre a questão da nacionalidade, no Brasil e em Portugal, bem como sobre a emergência crescente de discursos e perspectivas político-culturais que se confrontam com as narrativas instituídas da nacionalidade. Em relação ao Brasil, o acompanhamento das repercussões das comemorações dos 500 anos e do debate atual sobre a nacionalidade trouxeram à tona uma peculiar versão contemporânea daquele "plebiscito diário" (considerado por Renan, dois séculos atrás, indispensável à constituição de uma Nação). Por um lado, expôs-se o vigor da narrativa nacional pedagogicamente construída pelo Estado Nação moderno e reiterada pelas "comemorações oficiais"- a qual, no Brasil, pode ser sinteticamente resumida em dois eixos: a reafirmação da harmoniosa diversidade cultural do país, ou da sempre bem hierarquizada tríade racial que compõe a nacionalidade, e a reiteração da juventude do país aos 500 anos, que autoriza a permanente promessa de superação no futuro, na maturidade ou no porvir, das deficiências, desigualdades, separações e discriminações que de fato e historicamente separam o que a narrativa da nacionalidade deve reunir, produzindo aquele efeito de unidade necessário: "o povo brasileiro". Por outro lado, no âmbito da mídia impressa, pôde-se flagrar também a repercussão dos discursos e eventos que, paradoxalmente estimulados pelas comemorações, foram produzidos pelos que permanecem nos espaços limiares da sociedade nacional, os quais interpelam política e culturalmente a Nação enquanto comunidade ou imaginário instituído e na sua efetividade política e social. Os segmentos que isolada ou articuladamente, a exemplo do movimento "Brasil: Outros 500", manifestaram-se no contexto comemorativo propugnando pela diferença étnica e reivindicando direitos de cidadania, especialmente os afro-descendentes brasileiros e grupos indígenas, rasuram a unidade ou a homogeneidade construída, além de pleitearem uma outra versão, menos unívoca, da história brasileira e um outro pacto, menos excludente, de convivência social, favorecendo análises que problematizam sistematicamente a construção moderna da nacionalidade. A cobertura jornalística colecionada expõe ainda, numa outra vertente de análise, os modos diferenciados como as comemorações repercutiram nas regiões observadas. No Rio de Janeiro e na Bahia parte significativa das matérias publicadas atesta como, nas economias regionais que têm o turismo como horizonte de recuperação ou desenvolvimento, a campanha comemorativa dos 500 anos foi transformada em eficaz estratégia para a captação de recursos federais e para o incremento do turismo interno - como bem explicitam os respectivos slogans: "Rio, o coração do Brasil bate aqui" e "Bahia, o Brasil nasceu aqui". Essa cobertura minuciosa e interessada nas comemorações oficiais contrasta com o que se pode observar nos registros da passagem dos 500 na Folha de S. Paulo. Menos eufórico e freqüentemente crítico ao aspecto festivo das comemorações, o veículo da imprensa paulista desenvolveu com certa sistematicidade duas linhas de materiais jornalísticos: de um lado, a cobertura e amplificação do debate sobre a questão da nacionalidade cultural; de outro, a focalização de impasses sociais, políticos e culturais da nação instituída, a exemplo dos efeitos perversos das discriminações dos negros ou negro-mestiços e dos registros freqüentes da atual situação dos povos indígenas. Entretanto, é fértil observar como nesse espaço jornalístico - e em outros análogos -, expôs-se com freqüência a postura "ilustrada" dominante na intelectualidade brasileira, auto-investida na tarefa de atualizar e, pedagogicamente, distribuir diagnósticos e prognósticos atuais para a nacionalidade. Com bem menos sistematicidade, o Projeto Reconfigurações registrou e avaliou também a campanha comemorativa dos 500 anos empreendida pela mídia televisiva, notadamente pela Rede Globo de Televisão, que funcionou, entre 1999 e 2000, como uma espécie de "braço secular" da Comissão Nacional para as Comemorações dos V Séculos do Descobrimento do Brasil, criada pelo Governo Federal em 1996. Ao eleger como mote da sua campanha comemorativa (Brasil 500 anos), a Educação, a rede nacional deixou patente as intensas articulações entre sistemas de comunicação, sistema de escolarização formal e Estado moderno, que são imprescindíveis à distribuição social da nacionalidade. Levadas à televisão, ou submetidas à lógica própria desse eficaz veículo de comunicação de massas, por um lado, as imagens oficiais da brasilidade muitas vezes foram compelidas a uma complexa negociação com a diversidade das expectativas e das modulações do pertencimento e das auto-imagens grupais e regionais, resultando em algumas sintomáticas flexibilizações de estereótipos firmados. Mas, por outro lado, inevitavelmente, estiveram subordinadas a injunções mercadológicas intensas, especialmente as da indústria cultural. Na campanha televisiva ainda pôde-se constatar, como fruto das comemorações, mas em íntima conexão com contingências político-econômicas contemporâneas, a "presentificação" de Portugal, até então restrito, para amplos setores da recepção brasileira, a uma existência pretérita e fantasmática. Artistas, personalidades e cenários portugueses entraram nas telas - e conseqüentemente no cotidiano doméstico brasileiro - com uma freqüência antes impensável, fazendo com que a ascendência portuguesa ou a familiaridade lusa funcionassem com uma espécie de contraponto providencial, no contexto do ambíguo racismo brasileiro, para a proliferação de imagens que expuseram a mestiçagem ou a afro-descendência, impostas principalmente pelos valores musicais eleitos como emblemáticos da nacionalidade. Finalmente, a avaliação das comemorações na mídia televisiva - cuja dimensão decorre, entre outros itens, da extrema importância da comunicação audiovisual num país com as características do Brasil -, faz ressaltar o relevo do binômio "consumidores e cidadãos", ainda que precário, instável e desequilibrado entre nós, na produção contemporânea da nacionalidade. Inicialmente apresentando-se como um tópico próprio às agendas institucionais e de governo, as comemorações dos "V Séculos do Descobrimento do Brasil" ou dos "500 anos do Brasil" podem ser lidas na cobertura midiática como a arena de uma intensa "batalha simbólica", que, de forma paradoxal, tornou ostensivas as tensões, separações, desequilíbrios, contradições, fissuras e conflitos de interesses que, por sua própria razão de existência - a celebração da nacionalidade -,propunha-se a, de alguma forma, neutralizar. Notas: [1] No Brasil, Veja, Isto É, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil (RJ) e, a partir de 1999, A Tarde (BA); em Portugal, o jornal diário Público e o periódico quinzenal Jornal de Letras e Artes. Eneida Leal Cunha é professora do departamento de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia e é pesquisadora do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) |
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Atualizado em 10/04/2001 |
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