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por
Igor José de Renó Machado
Ideologias Nacionalistas para Richard Fox
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Este conceito parte de uma visão da cultura nacional como algo
móvel e maleável, resultado de um constante processo de produção
cultural, constantemente moldado por indivíduos e grupos que se
confrontam política e economicamente. Ideologias
Nacionalistas são conjuntos de significados culturais produzidos
e reproduzidos por grupos que disputam a hegemonia da própria
representação da cultura nacional (o conceito de hegemonia é o
de Raymond Willians, 1977, Marxisme e Literature. London:Oxford
University Press). Essas representações vitoriosas são fruto dessa
disputa, às vezes negociada, às vezes imposta. Entretanto, a proeminência
de uma visão específica não significa que não esteja sujeita ao
jogo da história, de novas e velhas disputas. As Ideologias Nacionalistas
são um problema de prática histórica (Fox 1990: 2 a 13). No caso
do texto, ao referir-me à Lusofonia (ou neocolonialismo)
como uma Ideologia Nacionalista, quero afirmar que a visão hegemônica
da história e da cultura portuguesa continua se baseando em pressupostos
estado-novistas (salazaristas), que acentuam o nacionalismo exacerbado
através da memória das grandes conquistas, como afirma Fernando
Rosas no artigo que comento no texto. Mas, se essa é uma visão
hegemônica, não deixa de ter seus opositores, como também demonstro
ao longo do texto.
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Nesse texto
pretendo analisar como a cobertura da mídia portuguesa sobre as comemorações
dos 500 anos expressa uma visão sobre o Brasil ao mesmo tempo em que constrói
um discurso nacionalista, no sentido que Fox (veja ao lado) concede à
expressão. Os "500 anos" estavam presentes em todos os veículos de comunicação
portugueses e a cobertura tratou diretamente sobre as comemorações dos
descobrimentos no Brasil e também sobre o "Brasil" como tema genérico.
As reportagens, entrevistas, programas especiais, revelaram mais ou menos
a mesma coisa: que nas reflexões sobre os 500 anos não se falava sobre
o Brasil, mas sobre o papel de Portugal na sua construção e descoberta.
Não há interesse real em saber da vida cotidiana, da economia e política
do país, mas sim em exaltar o "gênio" português. Mesmo as reportagens
culturais de cadernos de viagem preocupam-se não com o Brasil, mas com
as heranças portuguesas no Brasil. Esboçarei a lógica neocolonial disfarçada
de "lusofonia" que percorria a maioria das reportagens.
O Público [1], por exemplo,
tratou dos 500 anos na seção de cultura, junto com reportagens culturais
sobre o Brasil, acentuando a herança portuguesa. Produziu, inclusive,
uma coluna diária chamada "personagens luso-brasileiras" composta, em
geral, por efemérides portugueses que passaram pelo Brasil, quase nunca
o contrário. As comemorações são uma questão de cultura portuguesa para
o Público, como para outros jornais. Únicas a figurar na seção
internacional do Público, as notícias de corrupção no Brasil pareciam
explicitar o desejo de distanciar o criador português das mazelas do país
criado, ressaltando apenas as grandes obras e heranças. O Diário de
Notícias, por sua vez, ignorava as comemorações como uma data brasileira,
apresentando uma série de reportagens comemorativas que acompanhavam uma
viagem para o Brasil de um navio português.
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"Brasil,
500 anos do melhor que demos ao mundo", diz o título
- Esta foto, capa de uma revista mensal sobre política portuguesa,
sintetiza exemplarmente representações e conceitos sobre o Brasil
a partir de uma ótica portuguesa: a imagem do Brasil como uma mulher
sexualmente desejável que é resultado da colonização portuguesa.
Uma leitura mais atenta é capaz de perceber que a imagem da Tiazinha
representa a masculinidade do conquistador europeu. Por outro lado,
a imagem também evidencia o complexo em relação à indústria cultural
brasileira, pois o fato é que a Tiazinha faz um enorme sucesso em
Portugal e, ao subordiná-la à invenção do Português, tenta-se também
superar (ou domesticar) o mal-estar causado pela influência da mídia
brasileira (mal-estar este evidente na charge exposta no início
do texto, que indica também o papel da sexualidade na caracterização
do brasileiro, afinal a palavra "carnaval" é quase sinônimo de "sexo").
Ao mesmo tempo que vangloria a masculinidade colonizadora, evidencia
a fragilidade de um colonizador culturalmente colonizado pela ex-colônia.
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Os impressos
deram destaque muito grande às comemorações oficiais, ainda mais que Jorge
Sampaio, presidente português, delas fez parte. Mas, com a presença de
Sampaio, os jornais ficaram indecisos entre as seções de "cultura", "sociedade"
ou "política". A SIC e RTP1 (canais portugueses de televisão) apresentaram
seus principais jornais diretamente de Porto Seguro durante as festas
oficiais. Da mesma forma que nos jornais, a ênfase era dada às comemorações
que, para a TV, eram celebrações dos feitos portugueses, daí a mesma profusão
de matérias sobre heranças portuguesas. Essencialmente, as comemorações
de um ponto de vista português sofreram de uma distorção de entendimento
básica: a crença de que brasileiros e portugueses estavam comemorando
a mesma coisa. Entretanto, portugueses celebravam a própria nacionalidade
portuguesa, os reflexos do grande império que foram, as coisas que fizeram,
etc. O governo brasileiro, ao contrário, comemorava o "aniversário" do
Brasil, marcado pela chegada de Cabral ao que seria no futuro o Brasil.
Assim, toda a crítica às comemorações que tinham um caráter de contestação
política interna no Brasil passou, na mídia portuguesa, por crítica a
Portugal. Claro, a crítica ao modelo de exploração econômica que portugueses
adotaram no Brasil sempre é vista como absurda, preocupados que estão
em comemorar a alma portuguesa. A crítica soava como falta de reconhecimento
pelo papel na construção do Brasil.
Assim, entende-se a importância que teve em Portugal a comemoração e como
ela foi feita no Brasil, ainda mais que o Presidente português esteve
presente. Ao mesmo tempo, em Dili, capital de Timor Leste, estava Guterres,
o primeiro-ministro português, numa missão diplomática "curiosamente"
coincidente com as comemorações brasileiras. Era uma autêntica festa lusófona
que se armava, entretanto, a recepção fria a Guterres em Timor e os protestos
nas comemorações dos 500 anos foram um banho de água fria no orgulho português.
Por isso, a mídia em geral deu grande destaque às comemorações e aos protestos,
tendendo a "etnicizar" este último. O protesto era de negros, índios e
do MST. O MST apareceu como mais uma categoria étnica, o que é interessante,
pois é como se pobreza fosse uma categoria desse tipo, como se a palavra
étnico fosse realmente um instrumento de poder (étnicos são os pobres).
Os jornais do dia 22, 23 e 24 de abril tiveram na capa o Brasil, entre
outros motivos, por Jorge Sampaio estar lá. O protesto dos índios foi
o grande choque, pois feriu a nostalgia do passado épico. Embora não explícito,
podia-se perceber este choque principalmente nas imagens escolhidas, nos
títulos de reportagens, mesmo que as notícias em si fossem mais contidas:
"Brasil triste no desfecho da festa" (Expresso 29/04/2000, pp.
9), "Sampaio apela à conciliação"(JN, 23/04/2000, pp. 6), "Violência
e chuva estragam celebrações" (Público, 23/04/2000, manchete),
"Sampaio olha para o futuro e rejeita críticas ao passado" (DN,
23/00/2000, pp. 7), "Protesto em Porto (in)Seguro" (DN, 23/04/2000,
pp. 6), "Sem-terra estragam a festa" (Expresso, 21/04/2000, pp.
14), etc.
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Humor
- Essa charge, apresentada na revista Grande Reportagem,
traduz alguns dos estereótipos sobre o Brasil, reduzido a telenovelas,
carnaval e futebol. O interessante é notar como a data especificada
na foto (22 de abril de 1500) dá a indicação de como os portugueses
se relacionam com a história do Brasil: é como se não existisse.
Esse "esquecimento" tem dois lados, num deles distancia-se das mazelas
que vive hoje o Brasil (reforçando sempre a idéia de terra selvagem,
que induz ao apagamento da história brasileira), noutro se exalta
o descobrimento de algo que já existia e já continha, desde então,
os elementos que hoje caracterizam o Brasil. Os dois pontos de vista
reforçam o neocolonialismo português traduzido de "lusofonia". A
charge evidencia também a importância da mídia brasileira e a dimensão
quase traumática que assume em Portugal o abrasileiramento que impõe
ao ex-colonizador.
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O destaque
aos investimentos portugueses no Brasil era o principal meio de dar vazão
a essa nostalgia do centro. No dia 25, naturalmente, as manchetes referiam-se
ao 25 de abril e suas comemorações, mas as reportagens sobre as celebrações
e protestos brasileiros continuavam lá. No Público, o cúmulo foi
a descrição de uma manifestação Xavante em São Paulo. Ora, essa foi chamada
de "O protesto dos índios bons" (28/04/2000, pp. 28), em oposição, claro,
àquela dos índios em Porto Seguro, que então eram os índios maus. O que
distinguiu uma manifestação da outra, se as duas queriam a mesma coisa,
a reivindicação de direitos e demarcação de terras? O que as separou foi
unicamente a presença do exército para impedir uma delas. O Público
assumiu o lado oficial das comemorações e considerou legítimo o papel
do exército e da violência exercida ilegalmente, como essa reportagem
demonstra. O que deve ter assustado o Público, como os demais jornais,
foi a inédita união de povos indígenas para contestar a visão oficial
dos descobrimentos e no que isso atinge o nacionalismo salazarista escondido
por trás de inúmeros escorregões do jornal em suas reportagens e manchetes.
Más são as afrontas à essência da lusofonia, boas são contestações que
aparentemente são apenas de ordem política interna e não dizem nada sobre
os descobrimentos. Entretanto, o mesmo Público publicou um artigo
de Miguel Vale de Almeida, muito ponderado e crítico sobre a questão dos
descobrimentos ("Comemorar o futuro", Público, 22/04/2000).
Depois do dia 22 de abril as notícias sobre o Brasil voltaram, e mesmo
aquelas estritamente políticas voltaram a ser colocadas na seção de cultura
(como se o Brasil e sua dinâmica fossem sempre uma questão cultural para
os portugueses). Ou seja, o Brasil não tem um estatuto de independência
simbólica que possibilite que suas informações sejam colocadas nas demais
seções, há apenas duas exceções, ou quando o presidente português está
em terras tupiniquins ou quando a notícia é de tom negativo (corrupção,
etc.).
Algumas reportagens foram feitas sobre o Brasil e sobre brasileiros em
Portugal, já que a realidade da imigração brasileira está incorporada
à percepção comum portuguesa e, por isso, ao pensar em Brasil e nos 500
anos, também se pensa na imigração brasileira. Dos artigos sobre a imigração,
destacam-se posições que oscilam entre um certo tom de denúncia das más
condições de trabalho e um elenco das "contribuições" dos brasileiros
a atual sociedade portuguesa. Tomemos um exemplo em consideração. A revista
mensal "Grande Reportagem", de abril de 2000, traz a matéria "Brasil-Portugal:
500 anos de desencontros". O texto é uma reportagem sobre a imigração
brasileira para Portugal, principalmente para Lisboa. Trata dos principais
questões da imigração: a proletarização atual, a influência cultural brasileira,
desde a capoeira até a telenovela, dá bastante ênfase à pobreza e ao papel
da Casa do Brasil de Lisboa (única associação brasileira em Portugal atualmente).
Os repórteres descrevem alguns nichos de trabalho de brasileiros e traçam
perfis "rotineiros": um pedreiro, um dentista, um professor de ginástica,
um "exemplar" da classe média alta fugindo da violência, um surfista empresário,
um mestre de capoeira. A matéria dá destaque ao papel da entrada de Portugal
na União Européia, causadora de uma viragem nas relações entre os dois
países, afirmando que "As restrições ao trabalho dos dentistas e, mais
do que isso, os constatados mal-tratos impostos no aeroporto de Lisboa
a brasileiros humildes que tentavam - como, cinquenta anos atrás, os minhotos
e transmontanos - refazer a vida noutro país, fizeram de Portugal o parente
que enriqueceu e deu as costas aos pobres da família." (Grande Reportagem,
abril de 2000, pp. 29)
A continuação do texto, entretanto, traz as palavras do embaixador português
Luís Felipe Castro Mendes : "Os romanos assassinarem Viriato foi um acto
de grande maldade, mas isso não me leva a negar a raiz latina de Portugal.
Os Lusitanos podiam viver muito bem, mas eu é que não seria o que sou
se não tivesse havido o domínio romano. Os brasileiros não fariam mal
em pensar assim." (idem, pp. 30). O tom da declaração é o mesmo das reportagens
nos jornais: promover a boa imagem da herança portuguesa. Assim, após
as denúncias da miséria das imigrações, passam a enfatizar a falta de
empenho em destacar-se, no Brasil, o moderno valor português: "Mas se
empresas alemãs no Brasil procuram realçar a própria nacionalidade para
atribuir solidez aos seus produtos; se as empresas francesas procuram
mostrar que se é francês é 'chique', as empresas portuguesas não fazem
qualquer referência à sua origem - o telemóvel pré-pago da Telesp Celular
(PT) foi baptizado, no Brasil, de 'Baby'!" (idem). A autora dá muita ênfase
na "negação do pai", evidente no Brasil em relação a Portugal, no que
toca às comemorações. É como se os brasileiros estivessem negando a importância
de Portugal. Mas a reportagem é um bom exemplo do tom neocolonial (corrente
em várias reportagens) com que se discute os brasileiros, que não dariam
valor ao que é realmente importante, a herança portuguesa. O tema dos
investimentos portugueses no Brasil vira uma espécie de vingança simbólica,
como o retorno da possibilidade do império (sem ser explícito, diga-se).
As interpretações das comemorações revelam os posicionamentos políticos
internos à política portuguesa, como um torna-sol que revela o lugar de
quem fala. Para o Bloco de Esquerda [2],
por exemplo, como diz Francisco José Viegas, "as comemorações podem estar
a encobrir, deste lado do atlântico, a pequenina tentação neocolonial
lusitana" (Jornal de Notícias, 06/04/2000, pp. 15). Em minha opinião
essa tentação não é nada pequena. Mesmo para o autor citado, o que importa
é criticar quem contesta, no Brasil, o papel da herança portuguesa, utilizando-se
do argumento capcioso de que as misérias de hoje são responsabilidades
dos brasileiros, não dos portugueses. É capcioso por que essa reflexão
leva a uma conclusão não explicitada mas compreendida pelos leitores,
a de que, então, seria melhor que o Brasil não tivesse deixado de ser
uma colônia portuguesa. De certa forma, é o que faz também Eduardo Prado
Coelho, no texto "Baixo Astral" (Público, 09/05/2000), embora tenha
a clareza de que o Brasil e Portugal não comemoram a mesma coisa.
Há comentaristas que indicam como o trajeto histórico das "conquistas
e conquistas" não foi tão glorioso como se pensa, reconhecendo o direito
de contestar os pontos de vista portugueses (como o artigo de Rui Osório,
Jornal de Notícias 16/04/2000). Análises críticas também foram
proferidas, justificando e procurando entender os protestos no sul da
Bahia, como o de Rosalina Machado, do Jornal de Notícias (03/05/2000),
onde constatava: "prefere-se a festa para 200 pessoas, nem que seja preciso
convidar 2000 polícias para não deixar ninguém entrar nas nossas consciências".
Ou, ainda, o texto de J. M. Paquete de Oliveira, "A indignação dos índios"
(Jornal de Notícias de 29/04/2000, pp. 22). Miguel Vale de Almeida,
no artigo "Comemorar o futuro" (Público, 22/04/2000, pp. 8) avisa
a platéia portuguesa que se comemoram no Brasil e em Portugal coisas diferentes,
criticando as retomadas da "obsessão identitária com a 'gesta' do passado".
Crida como corrente no Brasil, a opinião que teria sido melhor uma colonização
não-portuguesa causa verdadeiros discursos indignados na mídia portuguesa,
(Viegas, Jornal de Notícias, 06/04/2000; Costa, Expresso,
21/04/2000), por agridir frontalmente o nacionalismo português. Os articulistas
justificam-se perante a constatação de que qualquer história de colonização
é sangrenta e violenta (Vicente Silva, "Sampaio entre Portugal e o Brasil",
Diário de Notícias, 28/04/2000; Maria Pinto, "Desatinos da comemoração",
Expresso, 29/04/2000; Judite de Sousa, "Os 500 anos do Brasil",
Jornal de Notícias, 22/04/2000). O que importaria ressaltar é o
que sobrou de bom. Junto com a afirmação de "passado violento comum",
alguns comentaristas infantilizam as populações indígenas, reduzidas a
joguetes de grupos políticos mal-intencionados, "Os que estão de má-fé
numa manobra de mero aproveitamento político e os que utilizam os índios
para fins menos confessáveis" (Maria Pinto, Expresso, 29/04/2000).
Evidenciando seu posicionamento político à direita, o relacionamento dos
indígenas com o MST, para a autora, só pode ser malévolo, partindo-se
do ponto de vista que os indígenas são mesmo primitivos, infantis e mal
influenciáveis. Mas a comentarista vai ainda mais longe: "se daqui para
a frente, num absurdo paroxismo nostálgico, os brasileiros se quisessem
transformar numa nação indígena, numa gigantesca reserva índia, de hábitos
antropófagos e cristalizada na idade da pedra lascada, esse seria um problema
deles e só deles." Só faltou lamentar que a colonização portuguesa não
tenha acabado de vez com esses incômodos lembretes do "processo civilizatório"
português.
Esses comentaristas não percebem a possibilidade de que grupos dentro
do Brasil questionem o discurso oficial da nação a partir de uma crítica
às comemorações dos descobrimentos. Essas críticas são sempre vistas como
direcionadas a Portugal, chegando ao ponto de se dizer que no Brasil os
portugueses são atualmente discriminados por conta das comemorações (Fernando
Antunes, "A herança de Pedro", Jornal de Notícias, 21/04/2000,
pp. 2). Ou, nas palavras de Judite de Sousa: "Nós, portugueses, quase
temos que pedir desculpa por termos descoberto o Brasil" (Jornal de
Notícias, 22/04/2000, pp. 2). As críticas que no Brasil condenam o
processo histórico são reduzidas a erro político por Vicente Jorge Silva,
na crônica "Sampaio entre Portugal e o Brasil", (Diário de Notícias,
28/04/2000, pp. 2), como se os processos históricos fossem imunes às críticas,
e os que o criticam apenas quisessem um ganho político desleal. Claro
que sobre o fato da elite brasileira, conivente com a leitura portuguesa
sobre os mesmos acontecimentos históricos, estruturar o sentido da história
em seu proveito não é mencionado.
O tom neocolonial, mencionado por José Viegas, se em geral é disfarçado,
em algumas passagens é explícito, como no editorial do Diário de Notícias
do dia 22/04/2000, que afirma que "ninguém tenha dúvidas, o Brasil
é o maior feito dos portugueses." (pp. 2). O ufanismo português atinge
tons inauditos no texto de Jorge Chichorro Rodriguez, "Predação ou construção
do Brasil?", no Diário de Notícias, 30/06/2000. O autor proclama
"o espírito de Portugal de Quinhentos, o Portugal que era capaz de se
comover com o diferente e o estranho", que tanto contribuiu para a humanidade,
através da criação do Brasil. Se índios morreram, não há que lamentar
muito, pois "a lei de Darwin que dá ao mais forte a primazia sobre os
menos aptos na luta pela sobrevivência" é a responsável. Ou seja, o homem
sensível, parte da mais refinada cultura, capaz de sensibilizar-se com
o Outro não passa de um animal incapaz de fugir ao natural combate pela
sobrevivência (e aos massacres). O mesmo que se sensibiliza mata e, apesar
do paradoxo, esses dois argumentos podem conviver no mesmo texto. Esse
jeito peculiar de expressar o preconceito contra as populações indígenas,
embora estranho, pode ser explicado a partir de uma imagem sobre o Brasil.
O Brasil é (como era no passado) visto como selvagem, como a natureza
que deve ser explorada pela cultura (se os índios são parte da natureza,
deve-se aproveitar deles) e o neocolonialismo se funda nesses termos:
o Brasil é uma paisagem selvagem que deve ser preenchida pela cultura
portuguesa, ou que foi preenchida, mas que desse processo perderam-se
os vestígios. É por isso que são incontáveis as reportagens sobre heranças
culturais, o que não passa de um modo de reavivar a superioridade perante
a paisagem selvagem, sensual e brutal. Vejamos um exemplo dessa formação
da imagem do Brasil em oposição a de Portugal num despretensioso roteiro
de viagens proposto pela revista Volta ao Mundo, de abril de 2000.
São cinco textos independentes (introdução + quatro textos) que, quando
tomados em conjunto, demonstram um outro ponto de vista. As reportagens
são: "Brasil 500 anos depois...", a introdução à série, com a indicação
de que se trata de um roteiro de viagens "no país-irmão". Segue-se "A
costa da descoberta", uma descrição dos dias de descobrimento. Feita por
brasileiro, Mário Lucena, é contaminado por paradigmas brasileiros: a
ideologia da miscigenação e um evolucionismo radical. Do naturalismo arqueológico,
como na afirmação "No parque encontra-se uma aldeia com os últimos exemplares
dos índios Pataxós (que habitam a região), além de animais em extinção
e de árvores de madeira nobre.", para a estereotipização é um passo: "Hoje
em dia, além das belezas naturais, existem a musicalidade e a simpatia
do povo baiano, sempre alegre e festivo." O autor trata índios como parte
da natureza, como animais em extinção, mas a imagem que constrói, entretanto
é capitalizada pela revista, com a foto de capa de um índio no meio de
uma floresta.
Aliás, é
uma recorrência retratar o Brasil com a cara de um índio, o que quer dizer:
o selvagem. No dia 22 de abril, os três maiores jornais portugueses destacavam
as comemorações através de imagens de índios. Essa recorrência da imagem
indígena também representa uma retomada, de um ponto de vista português,
do grande passado épico, ou seja, é uma reprodução figurada da chegada
de Cabral no que viria a ser o Brasil. O título da reportagem de capa
do Diário de Notícias, do dia 22 de abril, é "Índios
ameaçam Cabral", nada mais sintomático, pois a idéia dos protestos ameaçarem
Cabral representa uma preocupação com a memória histórica portuguesa.
É comum associar-se o Brasil ao natural, selvagem e primitivo. Mesmo a
conotação sensualista constantemente aplicada ao (e produzida pelo) Brasil
é uma extensão dessa idéia de selvagem a ser explorado (sexualmente) e
civilizado.
A terceira reportagem, de André Pippa, "Que coisa mais linda" trata do
Copacabana Palace, dando ênfase, com se é de esperar, às fofocas picantes
de sua história, envolvendo o Rio num clima de erotismo único. O autor
acentua passagens que dão azo a idéia de um certo comportamento sexual
desenfreado do brasileiro, como na seguinte passagem: "Embora, note-se,
não tenha passado desapercebida a proeza de um cinquentão carioca (com
muita graça, muito dinheiro e um penteado ridículo) que, durante dois
dias, saraquitou entre piscina e o Anexo permanentemente escoltado por
cinco (!!!) mocinhas de aspecto travesso.". A reportagem seguinte, "O
triunfo do verde", do mesmo André Pippa, descreve o jardim botânico, visto
como uma "jóia" de matriz portuguesa impossível de ignorar para quem visita
o Rio de Janeiro. Diz-nos o jornalista: "No Jardim Botânico sentimo-nos
esmagados pela força e exuberância da Mãe-Natureza. Boa maneira de nos
lembrarmos quem realmente manda na terra.". A ênfase na ligação entre
natureza e Brasil, mesmo que seja num parque que tem por intenção ser
"natural", é flagrante. A última reportagem, "Amor de perdição", ainda
de Pippa, descreve o Gabinete Real de Leitura Português, "Idealizado,
construído e financiado por emigrados portugueses na século passado, o
real Gabinete é um bastião de portugalidade no centro do Rio de Janeiro",
"um pedaço de Portugal incrustado no coração do Rio de Janeiro".
Visto como representante da cultura portuguesa no Brasil ("... Um dos
símbolos mais representativos da cultura portuguesa no Brasil."), o Gabinete
Real de Leitura é inserido numa lógica exposta pela série de cinco artigos.
Os três primeiros têm como tema a natureza selvagem do Brasil e a sensualidade
dos habitantes. O quarto representa uma transição entre a natureza e a
civilização, ao descrever o jardim botânico construído pelos portugueses,
que podem ser vistos como os organizadores, como foram os conquistadores,
do universo selvagem brasileiro. Só através do olhar português é possível
restituir uma ordenação nesse caos selvagem que é a imagem criada do Brasil.
O último texto, sobre o Gabinete Real, é a coroação da vitória da cultura,
da civilização portuguesa. O pedaço de Portugal no Brasil é uma biblioteca,
em oposição a representação do próprio Brasil, marcado pela animalidade
(os índios vistos de um prisma preconceituoso e os estereótipos sobre
a sensualidade "natural" do brasileiro). Temos, assim, uma oposição entre
natureza e civilização (cultura), acentuando aos portugueses o papel de
civilizadores, idéia subjacente na estruturação do grupo de reportagens
que se apresentavam, a princípio, apenas como um roteiro de viagem. Mais
do que um roteiro simbólico, esse grupo de reportagens da revista Volta
ao Mundo apresenta um roteiro de representações portuguesas sobre
o Brasil e a relação que com ele tem Portugal, o que Fernando Rosas chamou
de "ufanismo" português.
Por outro lado, esse recente "neocolonialismo" tem defensores mais refinados,
como Eduardo Prado Coelho, que expressa seu desejo de ver Portugal livre
das amarras da retórica da irmandade que envolve a relação entre ex-colônia
e ex-metrópole para assumir plenamente a idéia de que devam ser parceiros.
O termo "parceiros" significa as investidas econômicas sobre o mercado
brasileiro, pois através dele "se conseguiu de fato avançar no conhecimento
recíproco (que é aquele que necessariamente deriva da presença de empresas
portuguesas investindo no Brasil, sobretudo se estas, seguindo o exemplo
brasileiro, souberem complementar a sua ação com iniciativas eficazes
de mecenato cultural)." (Público, 06/05/2000, Caderno Leituras).
Transparece no texto do autor as duas instâncias presentes no tom geral
da mídia portuguesa: o orgulho nacionalista e vingativo de ver no avanço
econômico de algumas empresas portuguesas a retomada de uma imagem gloriosa
dos portugueses (estranho paradoxo, onde o mais moderno serve aos propósitos
mais antigos) e a dor-de-cotovelo em relação ao sucesso que têm em Portugal
setores da mídia brasileira. Pode-se dizer, inclusive, que o aumento da
imigração brasileira é visto na perspectiva neocolonial portuguesa, ou
seja, o papel subordinado desses imigrantes também é para esses formadores
de opinião um sinal da retomada da grandeza portuguesa.
Esse neocolonialismo é chamado por Fernando Rosas (que foi candidato à
presidência da República portuguesa pelo Bloco de Esquerda, partido mais
à esquerda no espectro político), no artigo "Do mito à fraternidade" (Público
26/04/2000, pp. 9) de "versão colonialista mítica sobre os descobrimentos".
Rosas critica o ufanismo na mídia ressaltando que, em relação à colonização
"pouco temos de nos orgulhar". No artigo, lúcido, Rosas levanta a questão
da herança da educação estado-novista portuguesa como fonte desse ufanismo
acrítico. Único entre os comentaristas, relaciona o ufanismo português
e o branqueamento ideológico perpetrado pela elite brasileira, que alcançou
tons dramáticos na repressão aos protestos dos oprimidos na sociedade
brasileira. Noutro lado do espectro político, Eduardo Lourenço, em entrevista
ao Jornal de Notícias (23/04/2000 pp. 4) lamenta a falta de empenho
nas comemorações e, apesar de entender que os índios não queiram comemorar,
não compreende o porquê dos demais brasileiros não o fazerem. Lourenço
não percebe algo que Rosas (e Miguel Vale de Almeida, acima) tão objetivamente
pondera: o problema está no uso atual desses passados construídos a partir
de interesses presentes. Nessa perspectiva, os oprimidos brasileiros (e
não apenas os índios) têm o direito de questionar a construção hegemônica
da história feita pelas elites brasileiras, que lhes é desfaforável. E
Suzana M. Viegas, no artigo "Tupinambá em carne e osso" (Público,
27/03/2000), anuncia com antecedência o principal problema de entendimento
sobre as comemorações dos dois lados do atlântico: "O índio de carne e
osso acaba por se mostrar mais curioso, diverso e aliciante, para quem
tem real interesse pela diferença", e não as "nostalgias de cartas épicas
nacionalistas".
Se Rosas, Vale de Almeida e, de certa forma, Susana Viegas criticam essa
versão colonialista mítica sobre os descobrimentos, pretendi ir um pouco
mais além, mostrando como a imagem de um Brasil selvagem e sensual recoloca
no papel de civilizador o português, juntamente com a invasão econômica
de empresas portuguesas, possibilitando a reconstrução da lusofonia, essa
ideologia nacionalista (Fox, 1990) que tem se tornado senso comum em Portugal.
Assim, as reportagens, ao mesmo tempo que elaboram a imagem de um país
selvagem e primitivo, ressaltam a civilidade portuguesa e uma certa forma
de expressar a nacionalidade Lusitana hoje em dia.
Notas
[1] O Público, o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias são os principais
jornais diários portugueses. O Expresso e O Independente são os dois principais
semanários (em forma de jornal). Dentre as revistas mensais portuguesas,
virtualmente todas trataram dos 500 anos: a Volta ao Mundo, Activa, Economia
Pura, Gente, Guia de TV, Jornal de Letras, Política Moderna, Rotas e Destinos,Telenovelas,
entre outras. As quatro canais abertos de TV são as RTP 1 e 2, a SIC (da
qual a Globo detém uma parte) e a TVI.
[2] Partido político à esquerda no espectro político.
Igor José
de Rennó Machado é doutorando em Ciências Sociais
no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e é
pesquisador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais
(CEMI).
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