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Piada
de brasileiro
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Há 500 anos, eram cinco os perigos que ameaçavam os viajantes que se atrevessem a cruzar os mares: (1) vento batendo nas velas pelo bordo oposto àquele a que iam amuradas, o que na linguagem da época se chamava "tomar a luva"; (2) incêndio; (3) choque com os baixios; (4) infiltração de água e (5) encontro com os inimigos. Quinhentos longos anos se passaram e, recentemente, com a cobertura da Comissão dos Descobrimentos e o patrocínio compulsório da nação brasileira, o Clube Naval deu sua contribuição à trágica história da navegação. De uma penada, foram eliminados todos os riscos que tiveram de enfrentar os "descobridores", já que eles só apareciam caso os barcos pudessem navegar, o que não aconteceu com o barquinho construído para fazer as vezes de nau capitânia da esquadra de Cabral, que foi um grande e caríssimo fiasco. Para quem não sabe, a nau capitânia era aquela em que viajava o capitão-mor, comandante supremo das armadas. Foi numa delas que viajaram Pedralvarez de Gouveia, que é o nosso Cabral, e Pero Vaz de Caminha. Aliás, Caminha só pôde escrever sua famosa Carta deste lado do Atlântico porque a competência dos carpinteiros navais de Lisboa superava a que puderam mostrar, quinhentos anos depois, os arquitetos do cômico fracasso do Clube Naval. Com isso, o mar virou uma espécie de sambódromo, onde desfilou um ridículo carro alegórico, facilmente reprovado por qualquer fã do sempre alegre Joãozinho Trinta. Qual foi a desculpa arranjada às pressas? Faltaram plantas para orientar a elaboração do projeto! Mas, isso só reforça a convicção de que o barquinho foi vitimado pela mais absoluta incompetência, já que não existem plantas de navios portugueses construídos nos anos próximos a 1500. E até os modelos que poderiam, eventualmente, orientar a construção dos barcos foram destruídos faz séculos, como nos informou o arqueólogo naval português João Lobo Pimentel Barata, num texto editado, em 1973, pelo Centro de Estudos da Marinha de Lisboa: em 1581, monsenhor Bossio, visitador da Inquisição, "ordenou a destruição de numerosos modelos votivos duma igreja, sob o pretexto de a limpar de objetos cheios de pó e pouco apropriados ao lugar sagrado" (Introdução à arqueologia naval - a crítica da documentação plástica, p. 4). Além do mais, se na cabeça vazia de História de nossos arquitetos navais e seus consultores morava a idéia de que a construção da tal réplica não poderia prescindir das tais plantas, apenas o desrespeito para com o dinheiro público pode justificar a aventura. Mas, para não apontar o foco das críticas apenas sobre dois ou três alvos fáceis do Clube Naval, é preciso não considerar o fracasso apenas como mero acidente, sobre o qual ainda pesam suspeitas - de resto jamais esclarecidas - de que teria havido desvio de recursos e superfaturamento. Ora, no topo do organograma dos festejos dos 500 anos existia uma Comissão dos Descobrimentos, criada pela presidência da República e inicialmente subordinada ao próprio vice-presidente. Desde então, entre marchas e contramarchas, mudou de comando até soçobrar frente à violência com que alguns convidados foram impedidos de participar do piquenique e ante à circense aparição do monstrengo que acabou guinchado para a base naval de Aratu. Nessa história toda, o que menos importa é o barquinho, já que a responsabilidade maior é da Comissão dos Descobrimentos que, salvo pouquíssimas exceções -dentre as quais encontra-se, por exemplo, a exposição que se pôde ver no parque do Ibirapuera, em São Paulo- , abrigou e patrocinou, com dinheiro público, aventureiros de várias espécies e patentes, transformando a grife dos 500 anos numa grande jogada de marketing e num esquema de favoritismos, sem qualquer resultado de valor para os compulsórios pagadores da conta. Entende-se, agora, porque um projeto como o do Nau - Instituto de Pesquisas para Assuntos dos Descobrimentos foi torpedeado por um grande número de corsários. Timidamente divulgado pela imprensa, excetuando-se O Estado de S. Paulo, que o divulgou em duas alentadas matérias de página inteira, foi apresentado a sete ministérios, recebendo apoio formal apenas do Ministério da Ciência e Tecnologia. No MEC, dois dos responsáveis pelo projeto foram (mal) atendidos por um assessor do ministro, entre telefones convencionais e celulares, onde se conversava sobre quase tudo, menos sobre como se poderia dar um caráter educacional a esse momento de reflexão sobre a História do Brasil que pudesse resultar em alguma forma de amadurecimento social. O Projeto Nau, que só poderia ser viabilizado com a chancela do Ministério da Cultura, uma vez que seus idealizadores viam no envolvimento da iniciativa privada a única possibilidade de seu desenvolvimento, passeou de mesa em mesa, de gabinete em gabinete, de protelação a protelação, de Brasília ao Rio, daí para São Paulo, até que o tempo acabou inviabilizando sua realização. Aliás, e isto talvez possa explicar o cansaço imposto aos responsáveis pelo projeto, é bom registrar que nenhum recurso público foi solicitado para qualquer atividade proposta no programa, o que gera muita matéria para reflexão, uma vez que não havendo verba pública, ficavam impossibilitadas, de antemão, quaisquer negociatas dos eventuais intermediários. Há quase três anos, o projeto foi submetido à Comissão que, àquela altura, estava subordinada ao Ministério das Relações Exteriores. Depois de certo silêncio, afinal, o presidente da Comissão Nacional do V Centenário do Descobrimento do Brasil, ministro Lauro Barbosa da Silva Moreira, em carta de 25 de agosto de 1997, dirigida ao presidente do Instituto Nau (Júlio Louzada Neto), informava que a comissão houvera por bem não aprovar o projeto, baseado nas razões apresentadas por um relator que afirmava não haver no Projeto Nau qualquer especialista em arqueologia naval, ignorando os profissionais de renome internacional ali relacionados, mas, obviamente, preparando a praia - e o circo -para o cômico barquinho do Clube Naval. Além disso, entre outras incongruências, o presidente da Comissão do V Centenário ignorava, por exemplo, o envolvimento do Instituto Oceanográfico da USP no Projeto Nau, afirmando que o estudo das correntes atlânticas era "perfeitamente dispensável", concluindo que bastava uma "visita ao módulo navegação do Espaço Cultural da Marinha e à biblioteca da Marinha", talvez para que os pesquisadores do Instituto Oceanográfico de nossa maior Universidade fossem convencidos de que deveriam abandonar suas pesquisas e ingressar na Marinha como grumetes para aprender que todo o conhecimento sobre navegação já está acumulado na Sagres brasileira, que é onde devem ter aprendido os arquitetos responsáveis pela réplica do Clube Naval. Ainda sobre a USP, apagou-se da avaliação o envolvimento da Escola do Futuro, responsável por uma proposta de elevado alcance social, onde se propunha a integração entre a juventude de língua portuguesa, espalhada no planeta pelos ventos da colonização, visando ao reconhecimento de valores e problemas culturais, sociais e políticos. Somente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP havia cinco projetos de pesquisa, envolvendo dezenas de professores e pesquisadores das áreas de História e Sociologia, o que também passou despercebido no lamentável parecer. Em seguida, criticava-se o projeto de Sedimentologia, a cargo de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, igualmente para esclarecer que todos os estudos sobre geologia e geomorfologia colocados no Projeto Nau também já haviam sido feitos pela Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha do Brasil. Depois de toda uma longa série de impropriedades e afirmações sobre a existência de "outra entidade" já envolvida com esta ou aquela atividade, a carta do principal responsável pela Comissão do V Centenário termina com uma pérola que desafia a lógica mais elementar, afirmando-se ali que o Nau - Instituto de Pesquisa para Assuntos do Descobrimento do Brasil "ignora a existência da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos do Brasil, criada por Decreto Presidencial, à qual o projeto em questão foi submetido", etc., etc... Ora, além de confundir o nome da comissão brasileira com a homônima portuguesa - que, aliás, sempre teve sucesso em suas ações culturais- só pode ser piada de brasileiro afirmar que um instituto que reunia quase uma centena de pesquisadores, com titulação de doutor ou superior, atuantes em algumas das principais universidades brasileiras, ignorava a instituição à qual, justamente, estava solicitando credenciamento... Apesar da fragilidade dos argumentos constantes da carta-recusa, o que importa é registrar que, com isso, ficaram impedidas reflexões não-festeiras, nem violentas, nem tragicômicas sobre a História presente do Brasil, uma vez que várias propostas do Nau finalizavam em publicações, a serem distribuídas gratuitamente a bibliotecas públicas e escolas, ou exposições destinadas a professores e estudantes, além de pôr em marcha um grande projeto multidisciplinar, envolvendo pesquisadores e professores universitários de antropologia, arqueologia, botânica, ecologia, engenharia de transportes, geologia, geomorfologia, história, letras, oceanografia, sociologia, zoologia, gerando-se documentos e referências a serem depositadas num grande centro de documentação, sempre sob patrocínio da iniciativa privada, mas com valiosos desdobramentos educacionais e culturais. Por tudo isso, o mínimo que ainda esperamos é que se investigue a fundo o mar tenebroso onde se quis fazer flutuar o barquinho do Clube Naval, a fim de que a população possa ao menos saber o montante e destino dos recursos que teve de arcar para a triste festa dos 500 anos, que, aliás, já está comemorando seu primeiro aniversário... E, para terminar, só resta lamentar que a História não possa voltar para trás, pois talvez houvesse aí a única possibilidade de que os antigos habitantes do Novo Mundo não amargassem o processo de violência de que foram, e continuam sendo, vítimas nesses 500 anos: era só entregar a direção dos estaleiros de Portugal e Espanha aos carpinteiros credenciados pela nossa Comissão do V Centenário que os barcos do descobrimento não teriam sequer deixado os portos da Europa para fazer, com sucesso, suas longas e arriscadas travessias, custeadas, é bom que se lembre, com recursos da iniciativa privada da época. Paulo Miceli é professor do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e diretor do Centro de Memória da Unicamp (CMU). |
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Atualizado em 10/04/2001 |
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