Piada de brasileiro
   
 
Outros Quinhentos: Carlos Vogt
Projeto Resgate reencontra a História

500 anos impulsiona memória arquitetônica

Cultura como patrimônio histórico

Ritual dos 500 anos também é objeto de pesquisa

Objetos contam a história do Brasil
Outros 500 quer construir um novo país

Índios ainda lutam por direitos básicos

Pataxós lutam pelo Monte Pascoal
Interesse por mapas históricos cresceu com os 500 anos

Nau Capitânia, o símbolo que não navegou

Piada de brasileiro:
Paulo Miceli

A História e os interesses da nação:
Ulisses Capozoli

Dois projetos audiovisuais, duas formas de refletir:
Andrea Molfetta

As comemorações na mídia:
Eneida Leal Cunha

Na mídia portuguesa, alguma crítica, muito ufanismo:
Igor Machado
O Brasil em português de Portugal:
Jesiel de Oliveira Filho

Histórias & Personagens:
Zélio Alves Pinto

Poema
 


Paulo Miceli

Há 500 anos, eram cinco os perigos que ameaçavam os viajantes que se atrevessem a cruzar os mares: (1) vento batendo nas velas pelo bordo oposto àquele a que iam amuradas, o que na linguagem da época se chamava "tomar a luva"; (2) incêndio; (3) choque com os baixios; (4) infiltração de água e (5) encontro com os inimigos.

Quinhentos longos anos se passaram e, recentemente, com a cobertura da Comissão dos Descobrimentos e o patrocínio compulsório da nação brasileira, o Clube Naval deu sua contribuição à trágica história da navegação. De uma penada, foram eliminados todos os riscos que tiveram de enfrentar os "descobridores", já que eles só apareciam caso os barcos pudessem navegar, o que não aconteceu com o barquinho construído para fazer as vezes de nau capitânia da esquadra de Cabral, que foi um grande e caríssimo fiasco.

Para quem não sabe, a nau capitânia era aquela em que viajava o capitão-mor, comandante supremo das armadas. Foi numa delas que viajaram Pedralvarez de Gouveia, que é o nosso Cabral, e Pero Vaz de Caminha. Aliás, Caminha só pôde escrever sua famosa Carta deste lado do Atlântico porque a competência dos carpinteiros navais de Lisboa superava a que puderam mostrar, quinhentos anos depois, os arquitetos do cômico fracasso do Clube Naval.

Com isso, o mar virou uma espécie de sambódromo, onde desfilou um ridículo carro alegórico, facilmente reprovado por qualquer fã do sempre alegre Joãozinho Trinta.

Qual foi a desculpa arranjada às pressas? Faltaram plantas para orientar a elaboração do projeto! Mas, isso só reforça a convicção de que o barquinho foi vitimado pela mais absoluta incompetência, já que não existem plantas de navios portugueses construídos nos anos próximos a 1500. E até os modelos que poderiam, eventualmente, orientar a construção dos barcos foram destruídos faz séculos, como nos informou o arqueólogo naval português João Lobo Pimentel Barata, num texto editado, em 1973, pelo Centro de Estudos da Marinha de Lisboa: em 1581, monsenhor Bossio, visitador da Inquisição, "ordenou a destruição de numerosos modelos votivos duma igreja, sob o pretexto de a limpar de objetos cheios de pó e pouco apropriados ao lugar sagrado" (Introdução à arqueologia naval - a crítica da documentação plástica, p. 4).

Além do mais, se na cabeça vazia de História de nossos arquitetos navais e seus consultores morava a idéia de que a construção da tal réplica não poderia prescindir das tais plantas, apenas o desrespeito para com o dinheiro público pode justificar a aventura.

Mas, para não apontar o foco das críticas apenas sobre dois ou três alvos fáceis do Clube Naval, é preciso não considerar o fracasso apenas como mero acidente, sobre o qual ainda pesam suspeitas - de resto jamais esclarecidas - de que teria havido desvio de recursos e superfaturamento.

Ora, no topo do organograma dos festejos dos 500 anos existia uma Comissão dos Descobrimentos, criada pela presidência da República e inicialmente subordinada ao próprio vice-presidente. Desde então, entre marchas e contramarchas, mudou de comando até soçobrar frente à violência com que alguns convidados foram impedidos de participar do piquenique e ante à circense aparição do monstrengo que acabou guinchado para a base naval de Aratu.

Nessa história toda, o que menos importa é o barquinho, já que a responsabilidade maior é da Comissão dos Descobrimentos que, salvo pouquíssimas exceções -dentre as quais encontra-se, por exemplo, a exposição que se pôde ver no parque do Ibirapuera, em São Paulo- , abrigou e patrocinou, com dinheiro público, aventureiros de várias espécies e patentes, transformando a grife dos 500 anos numa grande jogada de marketing e num esquema de favoritismos, sem qualquer resultado de valor para os compulsórios pagadores da conta.

Entende-se, agora, porque um projeto como o do Nau - Instituto de Pesquisas para Assuntos dos Descobrimentos foi torpedeado por um grande número de corsários. Timidamente divulgado pela imprensa, excetuando-se O Estado de S. Paulo, que o divulgou em duas alentadas matérias de página inteira, foi apresentado a sete ministérios, recebendo apoio formal apenas do Ministério da Ciência e Tecnologia. No MEC, dois dos responsáveis pelo projeto foram (mal) atendidos por um assessor do ministro, entre telefones convencionais e celulares, onde se conversava sobre quase tudo, menos sobre como se poderia dar um caráter educacional a esse momento de reflexão sobre a História do Brasil que pudesse resultar em alguma forma de amadurecimento social.

O Projeto Nau, que só poderia ser viabilizado com a chancela do Ministério da Cultura, uma vez que seus idealizadores viam no envolvimento da iniciativa privada a única possibilidade de seu desenvolvimento, passeou de mesa em mesa, de gabinete em gabinete, de protelação a protelação, de Brasília ao Rio, daí para São Paulo, até que o tempo acabou inviabilizando sua realização. Aliás, e isto talvez possa explicar o cansaço imposto aos responsáveis pelo projeto, é bom registrar que nenhum recurso público foi solicitado para qualquer atividade proposta no programa, o que gera muita matéria para reflexão, uma vez que não havendo verba pública, ficavam impossibilitadas, de antemão, quaisquer negociatas dos eventuais intermediários.

Há quase três anos, o projeto foi submetido à Comissão que, àquela altura, estava subordinada ao Ministério das Relações Exteriores. Depois de certo silêncio, afinal, o presidente da Comissão Nacional do V Centenário do Descobrimento do Brasil, ministro Lauro Barbosa da Silva Moreira, em carta de 25 de agosto de 1997, dirigida ao presidente do Instituto Nau (Júlio Louzada Neto), informava que a comissão houvera por bem não aprovar o projeto, baseado nas razões apresentadas por um relator que afirmava não haver no Projeto Nau qualquer especialista em arqueologia naval, ignorando os profissionais de renome internacional ali relacionados, mas, obviamente, preparando a praia - e o circo -para o cômico barquinho do Clube Naval. Além disso, entre outras incongruências, o presidente da Comissão do V Centenário ignorava, por exemplo, o envolvimento do Instituto Oceanográfico da USP no Projeto Nau, afirmando que o estudo das correntes atlânticas era "perfeitamente dispensável", concluindo que bastava uma "visita ao módulo navegação do Espaço Cultural da Marinha e à biblioteca da Marinha", talvez para que os pesquisadores do Instituto Oceanográfico de nossa maior Universidade fossem convencidos de que deveriam abandonar suas pesquisas e ingressar na Marinha como grumetes para aprender que todo o conhecimento sobre navegação já está acumulado na Sagres brasileira, que é onde devem ter aprendido os arquitetos responsáveis pela réplica do Clube Naval. Ainda sobre a USP, apagou-se da avaliação o envolvimento da Escola do Futuro, responsável por uma proposta de elevado alcance social, onde se propunha a integração entre a juventude de língua portuguesa, espalhada no planeta pelos ventos da colonização, visando ao reconhecimento de valores e problemas culturais, sociais e políticos. Somente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP havia cinco projetos de pesquisa, envolvendo dezenas de professores e pesquisadores das áreas de História e Sociologia, o que também passou despercebido no lamentável parecer. Em seguida, criticava-se o projeto de Sedimentologia, a cargo de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, igualmente para esclarecer que todos os estudos sobre geologia e geomorfologia colocados no Projeto Nau também já haviam sido feitos pela Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha do Brasil. Depois de toda uma longa série de impropriedades e afirmações sobre a existência de "outra entidade" já envolvida com esta ou aquela atividade, a carta do principal responsável pela Comissão do V Centenário termina com uma pérola que desafia a lógica mais elementar, afirmando-se ali que o Nau - Instituto de Pesquisa para Assuntos do Descobrimento do Brasil "ignora a existência da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos do Brasil, criada por Decreto Presidencial, à qual o projeto em questão foi submetido", etc., etc...

Ora, além de confundir o nome da comissão brasileira com a homônima portuguesa - que, aliás, sempre teve sucesso em suas ações culturais- só pode ser piada de brasileiro afirmar que um instituto que reunia quase uma centena de pesquisadores, com titulação de doutor ou superior, atuantes em algumas das principais universidades brasileiras, ignorava a instituição à qual, justamente, estava solicitando credenciamento...

Apesar da fragilidade dos argumentos constantes da carta-recusa, o que importa é registrar que, com isso, ficaram impedidas reflexões não-festeiras, nem violentas, nem tragicômicas sobre a História presente do Brasil, uma vez que várias propostas do Nau finalizavam em publicações, a serem distribuídas gratuitamente a bibliotecas públicas e escolas, ou exposições destinadas a professores e estudantes, além de pôr em marcha um grande projeto multidisciplinar, envolvendo pesquisadores e professores universitários de antropologia, arqueologia, botânica, ecologia, engenharia de transportes, geologia, geomorfologia, história, letras, oceanografia, sociologia, zoologia, gerando-se documentos e referências a serem depositadas num grande centro de documentação, sempre sob patrocínio da iniciativa privada, mas com valiosos desdobramentos educacionais e culturais.

Por tudo isso, o mínimo que ainda esperamos é que se investigue a fundo o mar tenebroso onde se quis fazer flutuar o barquinho do Clube Naval, a fim de que a população possa ao menos saber o montante e destino dos recursos que teve de arcar para a triste festa dos 500 anos, que, aliás, já está comemorando seu primeiro aniversário...

E, para terminar, só resta lamentar que a História não possa voltar para trás, pois talvez houvesse aí a única possibilidade de que os antigos habitantes do Novo Mundo não amargassem o processo de violência de que foram, e continuam sendo, vítimas nesses 500 anos: era só entregar a direção dos estaleiros de Portugal e Espanha aos carpinteiros credenciados pela nossa Comissão do V Centenário que os barcos do descobrimento não teriam sequer deixado os portos da Europa para fazer, com sucesso, suas longas e arriscadas travessias, custeadas, é bom que se lembre, com recursos da iniciativa privada da época.

Paulo Miceli é professor do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e diretor do Centro de Memória da Unicamp (CMU).

   
           
     

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Atualizado em 10/04/2001

   
     

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