Políticas de inovação para um novo desenvolvimento na América Latina
Rodrigo Arocena e Judith Sutz
Tradução: Sabine Righetti
Que políticas de inovação
são possíveis e desejáveis na América Latina? Aceitamos a proposta de ensaiar
uma resposta breve a tamanha pergunta, entendendo que nosso compromisso é tão
somente contribuir com certos elementos para o intercâmbio de idéias. Fomentar
este último é fundamental, pois uma parte indissociável da resposta à pergunta
de partida é a seguinte: necessitamos de políticas de inovação profundamente
democráticas, que surjam de amplos debates, recorram ao apoio explícito de
maiorias cidadãs e fomentem o envolvimento de
múltiplos atores sociais. Numa temática completa e polêmica, esta é uma de
nossas poucas certezas. A mesma põe a tarefa comunicacional no centro dos
esforços orientados à construção de novas políticas de inovação.
Procuraremos elaborar nosso
enfoque da questão discutindo sucessivamente: (i) o que é eticamente desejável,
(ii) certos problemas maiores a afrontar, (iii) as principais características
dos processos de inovação, (iv) uma noção de desenvolvimento a partir dos
atores, (v) algumas estratégias orientadoras, e (vi) as políticas possíveis que
poderiam ajudar a avançar para o desejável.
1. O desejável: o desenvolvimento humano auto-sustentável
Nossa simpática e criativa
América Latina é, antes de tudo, um mundo onde reina a injustiça social.
É impossível recorrer a ela sem sentir-se impressionado pela abundância dos
recursos naturais, assim como pela opulência dos estilos de vida de certos
setores, mas sobretudo pela miséria em que lutam por sobreviver tantos seres
humanos. Os processos de crescimento econômico dos últimos anos, irregulares e
em média pouco destacados, não diminuíram a desigualdade; as freqüentes crises
têm feito com que a proporção de pessoas pobres seja hoje maior que era há um
quarto de século; as pautas predominantes na produção e o consumo têm gerado um
alarmante deterioramento ambiental.
Transformar essa situação
eticamente inaceitável requer buscar alternativas novas para um desenvolvimento humano auto-sustentável.
Devemos combinar três dimensões fundamentais:
a) o desenvolvimento
humano, como melhora da qualidade de vida das pessoas, em matéria de
alimentação, saúde, habitação, educação, condições de trabalho e, em geral,
possibilidades de cultivar opções vitais dotadas de sentido e valores;
b) o desenvolvimento sustentável, como modalidade de satisfação razoável
das necessidades das gerações atuais que não forem contra os recursos naturais
que as gerações futuras requererão para atender as suas próprias necessidades;
c) a auto sustentabilidade do desenvolvimento, entendida como a
construção no presente dos pré-requisitos indispensáveis para o desenvolvimento
de amanhã, o que tem a ver com aspectos materiais (infra-estrutura produtiva,
energética, de transporte, etc.) e sobretudo sociais (níveis educativos,
construções institucionais, pautas de convivência).
O desenvolvimento humano auto-sustentável precisa do
crescimento econômico, mas nunca se reduz a este e não convém qualquer tipo de
crescimento. O desenvolvimento desejável inclui a expansão das capacidades de
produzir bens e serviços, redução do consumo conspícuo e importantes mudanças
de tipo, tanto organizativo como cultural. De acordo com melhor da concepção
clássica latino-americana do desenvolvimento, avançar em tal direção exige
apontar a uma transformação integral.
2. Os problemas: o subdesenvolvimento hoje
Para tornar possível o
desejável é preciso analisar a índole dos desafios a enfrentar. A desigualdade
e a pobreza que assolam a nosso continente são manifestações do
subdesenvolvimento latino-americano.
Um país ou região é de tipo
subdesenvolvido quando apresenta uma debilidade comparativamente grande para
melhorar firmemente suas condições socioeconômicas mediante modalidades que
incluem o aproveitamento eficiente de seus próprios recursos humanos e
materiais; o uso sistemático e a ampliação do conhecimento disponível; e a
permanente expansão das capacidades coletivas para resolver problemas técnicos
e institucionais. Semelhante debilidade gera, em geral, atraso e dependência
em relação a outros países, no aspecto econômico, no político e ainda no
ideológico.
O subdesenvolvimento é um
fenômeno persistente e mutante. Ficou evidente por volta de um século e meio,
quando a industrialização do Ocidente começou a aprofundar os diferenciais de
poder entre essa zona do mundo e as outras, progressivamente convertida nas
"periferias" dos "centros" industrializados. Desde então, são poucos os países
que têm escapado à condição periférica, o que dá uma idéia da persistência do
subdesenvolvimento. Mas este é também um fenômeno mutante, não somente de um
lugar a outro, senão também com o passar do tempo.
Nas últimas décadas do século XX, o conhecimento foi
adquirindo um papel muito mais importante que antes na vida coletiva,
particularmente na distribuição do poder social, e por conseguinte também na
configuração do subdesenvolvimento.
Em certas regiões do mundo - os "centros" velhos ou novos
da economia mundial - a produção de bens e serviços se baseia diretamente no
conhecimento avançado. Os benefícios, os riscos, os conflitos e os danos
vinculados à ciência e à tecnologia "de ponta" têm se instalado no centro das
dinâmicas sociais. Todas as profissões se encontram transformadas por esse
processo. As ocupações com melhores perspectivas são, primordialmente, as que
requererem alta qualificação e requalificação permanente. Por outro lado, quem
só puder garantir ocupações de tipo rotineiro, a agricultura, a indústria ou
os serviços, sofre uma degradação de condições de trabalho.
Essa situação está induzindo
uma imensa transformação sócio-cultural que pode se resumir assim: nos Estados
Unidos, Europa Ocidental, Canadá, Japão e alguns países com mais acesso à educação de tipo universitário, que
há poucas décadas estava reservado a minorias, têm se aberto à grande
maioria dos jovens. Nos países "centrais", se avança rapidamente para a
generalização do ensino terciário.
Nas "periferias" que compõem o
resto do mundo, o panorama é imensamente variado. Mas, em maior ou menor grau,
pode-se afirmar que a produção de bens e serviços somente numa proporção
pequena se baseia no conhecimento avançado endogenamente gerado e na alta qualificação
de grande parte dos produtores. Este risco nos países
subdesenvolvidos gera uma falsa debilidade, internamente para resolver
satisfatoriamente os próprios problemas, e externamente para alcançar níveis
favoráveis de intercâmbio comercial. Vender bens e serviços com baixo valor
agregado de conhecimentos e qualificação para comprar bens e serviços com alto
valor agregado de conhecimentos e qualificação é crescentemente desfavorável.
Essa falsa debilidade alimenta a subordinação política e econômica das regiões
periféricas às empresas transnacionais, aos governos dos países centrais e aos
organismos financeiros internacionais. Tal debilidade está na raiz dos
medíocres desempenhos produtivos da América Latina e de sua recorrente crise.
A crescente relevância do
conhecimento e da qualificação levam a propor, para calibrar sua muito desigual
distribuição entre nações e classes sociais, a noção de divisórias de aprendizagem.
Os processos de aprendizagem
estão óbvia e fundamentalmente ligados ao acesso à educação, mas sua análise
não pode se reduzir a essa dimensão; ao menos duas dimensões devem ser
consideradas. Com efeito, as aprendizagens têm a ver com as capacidades que brindam distintos tipos
de ensino, mas também, e em certa medida não menos importante que as oportunidades ocupacionais, que permitam
usar criativamente o aprendizado e seguir aprendendo, ao trabalhar resolvendo
problemas em interação com pessoas que sabem outras coisas.
Nos países subdesenvolvidos,
não somente são comparativamente escassas as capacidades - em particular porque a educação avançada está muito
longe de se generalizar - como também as oportunidades
de trabalhar aplicando e ampliando altas qualificações. Os que podem ter acesso a uma capacitação avançada são
primordialmente muito menos que nos países centrais, mas embora em menor número
são as pessoas altamente capacitadas que podem aplicar no trabalho as suas
capacidades. Isso está na raiz da fuga de cérebros.
Hoje em dia se registram
profundas e, segundo parece, crescentes divisórias de aprendizagem pois, em
matéria de capacidades e oportunidades ligadas à aprendizagem,
existem países e grupos sociais realmente ricos, e muitos outros países e
grupos bastante pobres.
Estar do lado de baixo das
divisórias de aprendizagem é, atualmente, uma característica maior do
subdesenvolvimento.
3. Os processos sociais de inovação
Em que se refletem, concretamente, as divisórias de
aprendizagem? No potencial para resolver problemas na prática. Ampliaremos um
tanto esta resposta, mais breve do que exata. O novo papel do conhecimento
desestabiliza permanentemente as rotinas e as relações estabelecidas; abre
possibilidades e gera dificuldades - como as do tipo ambiental - que requerem
permanentemente novas respostas. Isto vale em todos os terrenos da produção e
muito especialmente no que se refere ao atendimento das necessidades fundamentais
dos seres humanos. As pessoas ou grupos que somente podem enfrentar de maneira
rotineira situações mutantes se vêem desfavorecidas, em termos relativos e
também absolutos: têm cada vez menos poder que outros, seus ingressos tendem a
diminuir, as condições sociais e ecológicas em que vivem tendem a se
deteriorar. É assim que se delineiam desafios estimulantes da inovação.
Em geral, a inovação designa a
introdução do novo em qualquer âmbito; aqui estamos considerando o âmbito da
produção em sentido amplo pelo qual, para abreviar, chamamos inovação ao que
seria mais preciso designar como inovação técnico-produtiva. Não nos referimos
somente à primeira vez que se faz no mundo uma determinada coisa nova, mas sim a
cada um dos processos que levam, num determinado contexto social e geográfico,
a resolver um certo problema de maneira nova para esse contexto. Neste sentido,
inovar é resolver problemas.
Os estudos sobre a inovação
têm colocado "de cara" que a mesma não consiste somente em ações isoladas
realizadas por algumas poucas pessoas em âmbitos especializados.
A inovação que aqui nos
ocupa abrange aspectos tanto especificamente técnicos, como aspectos
organizativos e institucionais. Tem a ver com máquinas e técnicas assim como
com a organização do trabalho, as possibilidades educativas, as políticas
públicas, as pautas de consumo, a estrutura de incentivos e os valores
predominantes. É uma atividade que deve combinar os esforços e os saberes de
distintos autores, trabalhadores e empresários, técnicos e políticos,
educadores, pesquisadores e comunicadores. A inovação tem um caráter
fundamentalmente interativo.
Resolver problemas capacita
para resolver outros problemas, pelo qual se trata de um processo cumulativo.
Tem-se destacado que se trata de um processo distribuído, pois as atividades inovativas estão distribuídas em
distintos espaços sociais; tem lugar certamente nos laboratórios e nos setores
produtivos que empregam tecnologia "de ponta", mas não se concentram somente
neles: a inovação pode ser encontrada em todos os âmbitos vinculados direta ou
indiretamente à produção de bens e serviços assim como à atenção das
necessidades humanas em geral. O último, mas certamente o não menos importante
a destacar neste estreito resumo, é que a inovação adquire real gravitação
quando acontece sistemicamente, vale
dizer, quando são intensas e relativamente estáveis as interações entre os
diversos autores que devem coadjuvar para a introdução do novo nas práticas
sociais.
No mundo de hoje, o
potencial social para resolver problemas depende crescentemente de (1) as
capacidades construídas a partir do acesso a conhecimentos de alto nível e (2)
as oportunidades que tenhamos usado para usar essas capacidades. Por isso, as
divisórias de aprendizagem se traduzem numa grande diferença de potencial
social para resolver problemas, vale dizer, na notória brecha da inovação que existe entre países "centrais" e países
"periféricos".
4. Para um novo desenvolvimento
Nas seções precedentes
descrevemos muito resumidamente certas condições cujo contexto tem que buscar
rumos para avançar para um desenvolvimento
humano auto-sustentável. As carências do passado e os desafios mutantes que
se delineiam para o futuro - particularmente para o novo papel do conhecimento
- sugerem que os caminhos para o amanhã terão que ser bastante diferentes dos
de ontem. Convém, pois, pensar em termos de um novo desenvolvimento.
Muito em particular, é imprescindível ir mais além da
dicotomia paralisante entre Estado e mercado, que tantos danos têm causado
a reflexão e a ação vinculadas com o desenvolvimento. Não cabe entrar aqui numa
discussão do tema, mas convém sim resumir, ainda que seja telegraficamente, certas
lições que a história recente tem ensinado com eloqüência. Ter essas lições bem
presentes é imprescindível para pensar as políticas de inovação e, na verdade,
as políticas em geral.
Os mercados, quando
efetivamente existem e não se reduzem a monopólios mais ou menos dissimulados,
são necessários (ainda que não suficientes) para ampliar e diversificar a
produção, para que apareçam novas alternativas e sejam comparadas, para que os
produtores se vejam exigidos a manter e ainda melhorar seus níveis de desempenho,
para que os consumidores disponham de margens de opção. Em particular, esses
tipos de mercados oferecem espaços importantes (ainda que de nenhuma maneira
únicos) para ensaiar inovações. Quando o estado domina todas as atividades, o
potencial social para resolver problemas de maneira nova fica asfixiado, ainda
que nesses casos é que há uma ampla oferta de conhecimentos. O colapso da URSS,
uma potência industrial e científica de primeiro nível, resultou entre outros
fatores do bloqueio das capacidades inovativas, gerado pela estatização
completa das relações sociais de produção. Mas um papel protagonista do Estado
na economia é imprescindível, por várias razões das quais somente evocaremos
algumas. O Estado deve regular os mercados para evitar que prejudiquem os
consumidores e grande parte dos produtores; o funcionamento sem maiores
controles dos mercados costuma desembocar em crise, muitas vezes devastadora.
O Estado deve impulsionar atividades que não costumam aos interesses privados em
curto prazo, pelo qual os mercados não as atendem, mas que são essenciais para o
desenvolvimento humano auto-sustentável,
como a proteção ambiental, a pesquisa, a educação, a atenção às necessidades
básicas da população. Em particular, o Estado deve cumprir um imprescindível
papel articulador das atividades
inovativas, o que inclui promover as interações positivas entre os diversos
atores para respaldar a conformação de reais sistemas de inovação.
A argumentação que esboçamos
nestas páginas afirma, pois, os papéis do mercado e do Estado, reconhece a
necessidade de um certo equilíbrio entre ambos, mas aponta para ir mais além,
pensando o desenvolvimento a partir dos esforços e iniciativa de muitas
pessoas, e da interação de diversos atores coletivos: trabalhadores, empresários,
cooperativas, organismos públicos, instituições educativas, organizações da
sociedade civil em geral. Em uma perspectiva de economia mista, deve avançar
para um novo desenvolvimento a partir
desses atores.
O enfoque se inspira na
concepção de Amartya Sen, que propõe ver o desenvolvimento
como expansão das liberdades. Nesta concepção, a expansão das liberdades dos
seres humanos e de suas capacidades para viver vidas que considerem valiosas,
constitui a meta normativa dos esforços em prol do desenvolvimento. Mas, não
menos importante nessa concepção a expansão das liberdades e das capacidades
humanas é também a ferramenta principal para o desenvolvimento.
A insistência de Sen em ver as pessoas como agentes, ao invés de pacientes, é a pedra fundamental da noção de desenvolvimento a partir dos autores. A mesma autora coloca no
centro das preocupações a atenção tanto das opiniões cidadãs como as
possibilidades de participação coletiva, e de forma mais geral, a questão da
qualidade da democracia.
5. Certas estratégias orientadoras
A emergência nos países
centrais da chamada "sociedade do conhecimento" muda os dados da problemática
do subdesenvolvimento. Para os países periféricos se delineia a necessidade de
buscar novas alternativas para o desenvolvimento
humano auto-sustentável. Não se trata de desenhar "modelos" de validade
preferencialmente universal, mas de tomar como ponto de partida a riqueza da
"sócio-diversidade" apontando em cada caso, nacional ou regional a construção
de alternativas enraizadas em suas experiências e potencialidades concretas.
Essa é condição sine qua non para que
tenha vigor um desenvolvimento a partir dos atores.
No nível das políticas, será
preciso encontrar formas especificamente adaptadas a cada contexto para implementar
certas estratégias imprescindíveis. Entre estas, a título de exemplo,
mencionaremos três que podem ter um caráter orientador.
(I) Estratégia
econômica alternativa. Hoje, a condição subdesenvolvida se caracteriza pelo
predomínio na produção - primária, industrial ou de serviços - de modalidades
com pouco valor agregado de conhecimentos. A alternativa impulsiona uma
crescente incorporação de trabalho altamente qualificado e de conhecimento
científico a toda a produção de bens e serviços. Destacamos que não se trata de
concentrar esse esforço nos setores high
tech mas de algo que inclui esses setores, mas é muito mais
amplo: o que faz falta é usar as tecnologias da informação e a comunicação, as
biotecnologias e os avanços da ciência e a tecnologia em geral para elevar o
nível de todos os setores. Ele inclui uma especial atenção aos setores
denominados "tradicionais" - agrícolas, manufatureiros ou terciários - nos
quais os países subdesenvolvidos costumam ter acumulada uma larga tradição de
produção e comercialização. Não se trata de descartar essas experiências tampouco
as pessoas que a encarnam, mas sim de potencializá-las, para que as
capacidades de resolver problemas se estendam a toda a economia. Esta é uma
condição absolutamente necessária para fazer frente às janelas de oportunidade oferecidas pela inovação.
(II) Nova gestão pública.
Para que o Estado possa cumprir com os compromissos citados anteriormente, seu
desempenho deverá ser muito mais ágil do que o habitual. Falta uma gestão
caracterizada pela capacidade de tomar iniciativas e de adaptar-se com rapidez
a situações mutantes. Deve-se ser capaz de "desregular" - suprimindo
regulamentações que têm sido anacrônicas, assim como contra producentes - e de
"re-regular", estabelecendo controles e contra-pesos ajustados aos desafios e
conflitos que vão surgindo. Isso supõe uma mudança profunda das rotinas e dos
ritmos que costumam prevalecer nos órgãos públicos. Não se pode distribuir as
tarefas de acordo com especificações rígidas, pois isso vai contra a flexibilidade
requerida para resolver problemas novos e para encontrar melhores maneiras de
conjugar ou acionar distintos agentes, estatais e não estatais. Para conseguir
tudo isso, falta interessar material e moralmente os funcionários públicos na
transformação da gestão, de modo que o Estado possa desempenhar efetivamente
seu papel articulador. Esta é uma condição absolutamente necessária para
fomentar os sistemas de inovação.
(III) Generalização do
ensino avançado e permanente. Vários países subdesenvolvidos estão longe,
entretanto, de resolver o problema do analfabetismo. Mas isso, apesar de
imprescindível, é ainda insuficiente. Falta apontar uma transformação que
possibilite oferecer à maioria da população educação de nível superior, de
qualidade, renovável ao longo da vida inteira e estritamente vinculada com o
desempenho cultivado. Semelhante meta demanda, por sua vez, uma grande
diversificação da oferta educativa superior, que deve sustentar-se na melhora
permanente das universidades, mas não pode se reduzir ao que elas oferecem. É
preciso também uma notável ampliação do arsenal pedagógico, que atinja a
pessoas de vários antecedentes, idades e inserções sociais.
Exige, além disso, conectar de mil maneiras os mundos da educação e do trabalho,
por dois grandes motivos: (i) para combinar a expansão das capacidades das pessoas com as oportunidades
para usá-las de maneira fecunda, e (ii), pois do contrário não se disporá dos
imensos recursos humanos e materiais requeridos para gerar um ensino avançado e
permanente digno de semelhante nome. Esta é condição absolutamente necessária
para diminuir as divisórias de aprendizagem.
6. Políticas de jardinaria
Um desenvolvimento a partir
dos atores aponta naturalmente para fortalecer as relações de cooperação, mas
sem ignorar que o conflito nunca é alheio ao fato social. As diferenças de
interesses, de pontos de vista e de valores são componentes permanentes da
realidade. Por isso mesmo é tão importante chegar a convergências amplas em
torno de metas gerais, para as quais se possa realizar certos avanços a partir
de posições distintas, sem divergências e ainda aproveitando tanto as energias
como as iniciativas que costumam suscitar os conflitos, quando são
democraticamente processados. Isso requer, por um lado, uma orientação geral ou
projeto participativo em que maiorias cidadãs possam se reconhecer a partir da
diversidade e sem a diminuição dela; nos países subdesenvolvidos, uma certa noção
do desenvolvimento desejável e possível parece componente imprescindível de um
projeto do tipo abordado. Por outro lado, faltam práticas políticas de
alta qualidade, que colaborem para a explicitação de reivindicações -
particularmente dos setores adiados -, a contratação de posições e a forja de
alternativas viáveis. Um sinal para este último é aprender a sociedade, vale dizer, explorar as respostas mais
fecundas aos problemas coletivos que surjam na concentração da sociedade civil,
colaborar para que melhorem e se difundam, combiná-las entre si e com outras
atividades no marco de estratégias, como as três que resumimos na seção
anterior.
Um capítulo que não deveria
estar ausente das políticas públicas, junto a vários outros, é o das políticas
de inovação para um novo desenvolvimento. Na perspectiva de aprender da
sociedade, propomos vê-las como políticas
de jardinaria.
* Um bom jardineiro é, antes
de tudo, alguém que conhece bem seu jardim. O ponto de partida das políticas
deve ser conhecer bem as capacidades existentes para a geração de conhecimentos
e a solução de problemas, assim como os vínculos reais ou potenciais entre
atividades diversas que podem expandir e melhorar a produção de bens e
serviços.
* Um bom jardineiro dedica
especial atenção às plantas que melhor se desempenham nas condições específicas
de seu jardim. Especial atenção merecem os espaços
interativos de aprendizagem, definidos como os âmbitos sociais nos quais
distintos autores (por exemplo produtores, pesquisadores e técnicos) colaboram
de maneira relativamente estável na resolução de problemas e, ao fazê-lo,
expandem suas respectivas capacidades. São lições que surgem da própria
sociedade acerca de como inovar nas habitualmente difíceis condições do
subdesenvolvimento.
* Um bom jardineiro protege as suas flores das condições
climáticas adversas. Fenômenos como a fuga maciça de cérebros corroem
gravemente o potencial inovativo. Os processos de privatização recentes têm
destruído vários espaços interativos de aprendizagem, incluindo uns quantos
conformados por empresas públicas de telecomunicações ou energia, seus
laboratórios de pesquisa e desenvolvimento, e equipamentos científicos das
universidades nacionais. Estrangeirizadas essas empresas, muitas vezes seus
laboratórios têm sido desmantelados e as demandas de conhecimento canalizadas
para as matrizes. Proteger e expandir a demanda de conhecimento endogenamente
gerado é um dos capítulos centrais das políticas públicas para a inovação.
* Um bom jardineiro, antes de efetuar algum transplante,
analisa se é viável e, em caso afirmativo, começa por preparar cuidadosamente o
terreno. Há muito para aprender em matéria de políticas para a inovação que se
tem feito nos países centrais e em outras partes. Mas o transplante de
instituições e ferramentas de política a contextos diferentes costuma ser
esterilizante; no melhor dos casos, requer esforços adaptativos dotados de uma
alta cota de originalidade.
* Um bom jardineiro está
sempre em busca de oportunidades novas. Máxima prioridade deveria
ser dada à busca de: (I) modalidades para ampliar a cota de conhecimentos e
qualificações a todos os níveis da economia; (II) formas para melhorar o papel
articulador do estado, agilizando a gestão e recorrendo às iniciativas mais
promissoras dos próprios funcionários públicos; (III) vias novas para que
todos possam seguir aprendendo sempre, particularmente através de conexões
entre os mundos da educação e do trabalho.
* Um bom jardineiro tem que
saber como cultivar cada uma de suas plantas, mas também como manejar as
relações entre os seres vivos que povoam seu jardim. O desenvolvimento requer
tanto gerar novas capacidades e empreendimentos como vincular, eficientemente,
entre si, os potenciais disponíveis, novos ou antigos.
Recapitulemos: as políticas
de inovação para um novo desenvolvimento não somente devem prestar uma grande
atenção ao técnico-produtivo mas também "inventar" no institucional e
organizativo. Em outras palavras, falta inovação nas políticas.
Rodrigo
Arocena e Judith Sutz trabalham, respectivamente, na Unidade de Ciência e
Desenvolvimento, da Faculdade de Ciências, e na Unidade Acadêmica da Comissão
Setorial de Pesquisa Científica, ambas da Universidad da República, Uruguai.
Agradecem o convite para escrever este artigo sintético, que se baseia
particularmente em seu livro Inovação y subdesenvolvimento. Navegando contra el viento
(Cambridge Univ. Press,
Madrid, 2003).
Dados que corroboram esta afirmação podem ser
encontrados em múltiplas fontes, por exemplo, Kliksberg, B. (2003): Para uma economia com rosto humano, 7ª
edição, Instituto Desenvolvimento, Assunção.
Para uma consideração do tema a partir da
perspectiva do desenvolvimento nos referimos ao volume coletivo editado por
J.Cassiolato, H. Lastres y M.Maciel, Systems
of inovation and development. Evidence from Brazil (Elgar Publ., 2003), em
vias de publicação em português.
Para uma discussão das conseqüências do
"fundamentalismo desregulador" - na Rússia pós-soviética, na máxima potência
econômica atual e no mundo em geral - pode se consultar os livros de Joseph
Stiglitz, Globalization and its discontents
(Norton, N.York, 2002) e The roaring
nineties (Penguin Books, Londres, 2003).
Amartya Sen: Desenvolviment y libertad
(Planeta, Barcelona, 2000).
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