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Reorganização industrial e redistribuição espacial da inovação

Rogério Gomes

Nos anos 50, as grandes corporações dos Estados Unidos eram reconhecidas enquanto força inegável do desenvolvimento econômico e amplamente copiadas em vários outros países. O grande empreendimento de extensos níveis administrativos hierarquicamente controlados, com muitas divisões de negócios, em que prevaleciam as estratégias de integração vertical, sustentou por muito tempo as hipóteses de diferentes gêneros teóricos que tratavam de organização industrial. A longevidade e os recursos financeiros característicos da grande corporação permitiam a construção da "base de conhecimento" necessária à aplicação dos princípios científicos exigidos pela crescente complexidade dos problemas inovativos.

A "empresa moderna" foi tomada não apenas como a força central do desenvolvimento econômico, mas também como padrão ideal. Estas empresas, quando bem-sucedidas em termos competitivos tendem a reinvestir parte dos lucros em capacidade produtiva adicional, dando sequência ao processo dinâmico de evolução industrial que resulta no aumento do seu tamanho (ou na criação de outras grandes firmas) e, também, em mercados mais concentrados.

Esta é uma rápida caracterização daquilo que foi o paradigma dominante nos estudos da organização industrial e do desenvolvimento econômico até meados dos anos 80. Durante os anos 70 e 80, as mudanças na economia mundial e, em particular, o fracasso da grande corporação americana em responder adequadamente aos novos competidores (especialmente aqueles com origem na Ásia), colocou em xeque o antigo modelo industrial. O foco está deslocando-se da lógica da aparentemente inexorável expansão das estruturas internas da "moderna corporação" para as economias externas criadas pelo avanço da interação entre e intrafirmas.

A reestruturação industrial em curso parece ser a gênese de um novo modelo de organização industrial adaptado ao atual ambiente econômico, mais intensamente competitivo e globalmente integrado. Este novo modelo está alicerçado em três pontos fundamentais, interdependentes: 1) a mudança no papel das subsidiárias das empresas transnacionais; 2) a subcontratação de segmentos da produção para as empresas prestadoras de serviços de manufatura (atacadistas especializados e altamente capacitados que abastecem a indústria com um conjunto funcionalmente coerente de serviços comoditificados de produção); 3) a focalização das grandes empresas em atividades cruciais à manutenção e/ou ampliação do seu poder de mercado, como, por exemplo, a exploração da marca, a comercialização e distribuição de produtos, as finanças, e, em especial, as atividades inovativas. Aqui nos atemos principalmente aos dois primeiros aspectos.

No "antigo modelo" as subsidiárias no estrangeiro das empresas multinacionais estavam organizadas estruturalmente como se fossem "réplicas em miniatura" da matriz, em geral restritas à produção de bens que suprissem a demanda do mercado local. A forte subordinação ao comando corporativo ditava os limites estreitos do papel das filiais, cujas atividades produtivas também eram, frequentemente, realizadas por outras unidades da empresa em outras regiões do globo. Tal organização pode ser entendida como uma duplicação de esforços em tarefas de manufatura que não tinham contrapartida nas atividades de conteúdo tecnológico, ou de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

Enquanto os fluxos de informação estavam limitados essencialmente às comunicações bilaterais entre a unidade no estrangeiro e a matriz, os de conhecimento tinham, em geral, direção única, do comando central para o exterior. Afora as subsidiárias localizadas em países centrais, de reconhecida reputação em determinadas áreas do conhecimento científico, as atividades de maior conteúdo científico ou tecnológico eram uma exclusividade dos laboratórios localizados nos países desenvolvidos, especialmente naqueles de origem das empresas. Para as unidades estabelecidas nos países em desenvolvimento cabiam a produção de produtos de tecnologia difundida e as atividades tecnológicas periféricas relacionadas às adaptações (ou regionalização) de produtos para o mercado local.

Há algumas décadas que estas relações vêm sendo fortemente pressionadas em razão do acirramento da concorrência internacional. A liberalização financeira iniciada no final dos anos 70 (maior liberdade na transferência de capitais entre os países) viabilizou o adensamento do comércio de produtos e de capitais entre as diferentes filiais no estrangeiro e entre estas e as matrizes. Somados, este dois efeitos alteraram substancialmente a estrutura relacional das corporações e, por conseguinte, o papel das filiais.

As subsidiárias das empresas transnacionais no estrangeiro crescentemente deixam de ter uma função local e se transformam em unidades globalmente integradas, com um papel próprio, definido, com um mandato produtivo diferenciado dentro da rede corporativa. Este mandato confere a cada unidade a responsabilidade sobre uma gama determinada de bens que, por vezes, é acompanhada de algumas responsabilidades de cunho tecnológico, para o desenvolvimento destes produtos. Na estrutura dessa reorganização as diferentes unidades corporativas têm funções mais complementares do que similares e, por isso, estão mais integradas. As duplicações dos esforços relativos à manufatura são minimizadas, abrindo espaço para a especialização em determinados produtos ou segmentos de mercado.

Em relação ao modelo anterior, estas unidades, devido as suas novas funções, gozam de maior autonomia decisória. Ainda que condicionada e dependente da estratégia global da transnacional, tal autonomia permite a cada filial lutar pela ascensão aos níveis hierárquicos superiores da corporação. Uma conquista neste campo se legitima através da demonstração de capacitação tecnológica na resolução dos novos problemas freqüentemente apresentados pelo comando corporativo. Neste sentido, a subsidiária no estrangeiro, que não quer ter o seu mandato rebaixado em termos relativos pela dinâmica da competição interna da empresa, procura empregar a sua autonomia no desenvolvimento de capacitação local. Neste novo contexto, ainda que cada uma das unidades da rede de filiais tenha um papel específico e de colaboração com as demais, elas competem intensamente umas com as outras pelo reconhecimento e desenvolvimento de sua capacitação em áreas afins ao do seu mandato.

A segunda característica que diferencia o antigo modelo de organização e aquele que emerge como novo é a terceirização da manufatura. Como ela pode influir no controle dos ativos estratégicos que garantem à firma a manutenção do poder de mercado e à sua própria sobrevivência, a sua profundidade varia muito entre as indústrias e existem assimetrias internas aos setores. No entanto, esse mecanismo vem se difundindo rapidamente pelos segmentos da economia de variadas densidades tecnológicas, ainda que com lógicas diferentes.

O efeito comumente apontado para a terceirização da produção é a queda no custo unitário (proveniente das economias de escala), uma vez que a empresa subcontratada presta serviços para diversas firmas concomitantemente. Além disso, as empresas que adquirem esses serviços obtêm uma redução nos investimentos em recursos humanos, na carga financeira, administrativa e técnica do capital fixo relacionado à produção (como, por exemplo, plantas e equipamentos), principalmente nas indústrias em que o ciclo de vida dos produtos é crescentemente menor, como, por exemplo, nas indústrias da informação (eletrônicos de consumo, computadores, telecomunicações, etc.), farmacêutica, alimentos, calçados, vestuário, entre outras.

A aquisição de serviços de manufatura apresenta três importantes vantagens para a empresa que contrata capacidade produtiva. A primeira é a redução dos riscos relacionados à sazonalidade da demanda. Em outras palavras, a transferência da manufatura para um prestador deste tipo de serviço significa prescindir de investimento em capacidade produtiva interna adicional (seja para responder a um aumento inesperado da demanda, seja para o lançamento de um novo produto) ou eliminar os custos decorrentes de capacidade ociosa indesejada. As outras duas vantagens da terceirização da manufatura decorrem, em boa medida, da anterior e são mais relevantes para os nossos propósitos: a disponibilização de uma fonte suplementar de recursos, que se transforma em um importante mecanismo de financiamento da pesquisa inovativa, necessária à luta competitiva; o aumento na flexibilidade organizacional e geográfica decorrente do enxugamento da estrutura empresarial, facilitando a busca global por novos ativos, especialmente os tecnológicos.

A contratação em âmbito internacional de serviços especializados de manufatura e os novos papéis das subsidiárias apontam para uma redefinição da geografia espacial da produção e da inovação. As cadeias de valor de algumas indústrias vêm sendo subdivididas numa série de funções discretas que são distribuídas entre as regiões em que a sua execução pode ser mais eficientemente realizada. O principal objetivo é a inserção global das empresas, especialmente nos mercados em crescimento, e o acesso rápido a recursos e capacidades de baixo custo no estrangeiro. Porém, este acesso não está mais pautado na aquisição exclusiva de capacidades de baixa qualidade ou qualificação como era comum em relação aos países em desenvolvimento.

Em virtude da contínua necessidade de melhorias na qualidade, na funcionalidade, no desempenho dos produtos e processos produtivos, e, de uma forma geral, nos custos, a política de internacionalização é movida, também, pela ampliação do escopo tecnológico e comercial que possa atender, ao longo do tempo, os inúmeros mercados de atuação (e potenciais) da firma. Assim, a busca por competências complementares, onde quer que elas possam ser apropriadas, está no cerne da estratégia tecnológica das transnacionais. Neste contexto, as novas funções das subsidiárias e os novos vínculos da rede corporativa (nela incluídas, além das prestadoras de serviços, as associações e os acordos de cooperação tecnológicos), além de servirem como elementos para a "captura" de novos ativos tecnológicos, dinamizam as capacidades de cada um dos pontos desta rede .

É por esta razão que essas empresas estabelecem elos que ultrapassam a fronteira da firma, que cobrem uma variedade de estágios da cadeia de valor e fomentam a dispersão tecnológica. Ao mesmo tempo, focam os esforços internos nas funções corporativas que consideram prioritárias para a manutenção (e ampliação) do seu poder econômico.

A globalização é um aprofundamento da internacionalização do capital na sua tradicional forma produtiva (material) e, devido às modificações em andamento no tipo de organização, agora também nas maneiras de distribuição alhures das funções corporativas imateriais. A justaposição destas duas dimensões está desenvolvendo redes de produção global regionalmente integradas. A destinação diferenciada das funções intangíveis, por reestruturar a divisão do trabalho no mundo, está no centro do novo sistema industrial e das novas conformações econômicas. Estas forças determinam, em conjunto, o lugar de cada país no sistema que está se configurando internacionalmente.

>Nos últimos anos, a economia brasileira passou por um forte processo de internacionalização com desnacionalização de muitos segmentos econômicos. As empresas transnacionais são líderes nos setores em que atuam e, portanto, são os agentes privilegiados na determinação da dinâmica setorial. Por isso, é fundamental compreender as estratégias globais dessas empresas e a reorganização industrial em curso quando se deseja promover políticas públicas voltadas para o incentivo e a disseminação de atividades inovativas, que visam inserir o país numa condição internacional diferente da habitual, ou seja, de subordinação.

Rogério Gomes é professor do Departamento de Economia (FCL/Car, Unesp) e pesquisador do Grupo de Estudos em Economia Industrial (Geein, Unesp). E-mail: rgomes "arroba" fclar "ponto" unesp "ponto" br

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Atualizado em 10/08/2004

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