Política de ciência, tecnologia e inovação em saúde
Reinaldo Guimarães
Desde janeiro de
2003 o Brasil possui um novo governo, eleito numa forte perspectiva de mudança
nos rumos políticos do país. No campo da saúde, o sentido da mudança é o
aprofundamento do processo da reforma sanitária brasileira, com o
fortalecimento do Sistema Único de Saúde, núcleo daquela reforma. Existe um
consenso bastante amplo de que a pesquisa em saúde tem sido um componente
negligenciado nas políticas de saúde e de que é tarefa do momento presente uma
mudança importante nos padrões da política de pesquisa em saúde no país.
Uma visão
geral da pesquisa em saúde no Brasil
Atualmente a pesquisa em saúde no Brasil é
realizada por cerca de 4.900 grupos de pesquisa, com 18.000 pesquisadores
(11.000 detentores de titulação doutoral) e
circunscreve entre 25% e 30% do esforço global de pesquisa no Brasil.
Trata-se do maior componente científico-tecnológico do país. Cerca de 50% do
esforço de pesquisa em saúde provêm de grupos vinculados às ciências da saúde,
cerca de 25% provêm de grupos vinculados às ciências biológicas e os 25%
restantes de grupos das demais grandes áreas do conhecimento. Os 25% das
ciências biológicas referem-se quase exclusivamente a grupos pertencentes às
áreas de bioquímica, biofísica, fisiologia, farmacologia, imunologia,
neurociências, investigação clínica, genética, microbiologia e parasitologia.
Dentre as demais grandes áreas do conhecimento, as ciências agrárias, as
ciências humanas e as ciências sociais aplicadas possuem uma presença maior. As
engenharias e as ciências exatas e da Terra estão presentes em grau bastante
pequeno. São precárias as estimativas sobre gastos com pesquisa em saúde no
Brasil. Levantamento preliminar do fluxo de recursos públicos para a pesquisa
em saúde em 2001 atingiu um volume de R$ 500 milhões.
As estimativas dos recursos financeiros privados
destinados a financiar pesquisa em saúde são ainda mais precárias. Pesquisa
recente realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre o
panorama nacional da inovação tecnológica
revelou, para todos os segmentos industriais, que a taxa de inovação no Brasil
é similar à da Espanha, valendo cerca de 35%. No entanto, cerca de 60% das
inovações relatadas foram compras de novas máquinas para melhorar produtos já
existentes no mercado nacional ou na própria carteira de produtos da firma.
Quanto às atividades de pesquisa e desenvolvimento nas empresas, a situação
parece ser ainda muito mais precária.
Uma outra forma de analisar a situação nas empresas
é medir a presença de recursos humanos envolvidos com atividades de pesquisa e
desenvolvimento. No ano da realização da pesquisa (2001), para todos os
segmentos industriais pesquisados, foram contabilizados menos de mil empregados
com titulação doutoral envolvidos
com atividades de pesquisa e desenvolvimento. Apenas para comparar, em 2001
existiam cerca de 35.000 pesquisadores doutores em atividade no país.
No quadro geral dos países em desenvolvimento, tanto
para recursos financeiros públicos destinados à pesquisa em saúde, quanto para
recursos humanos envolvidos com ela, a situação do Brasil não parece ser muito
desconfortável. No entanto, numa visão mais aprofundada, problemas importantes
começam a aparecer. Quanto aos recursos humanos, esses problemas ficam mais
claros quando se estabelece a seguinte pergunta: "quantos dentre os 18.000
pesquisadores envolvidos com pesquisa em saúde estabelecem suas prioridades de
pesquisa a partir de prioridades explícitas oriundas da Política Nacional de
Saúde?"
Embora um inquérito entre pesquisadores em saúde não
tenha sido realizado, as evidências disponíveis sugerem que os que estabelecem
suas prioridades em consonância com diretrizes emanadas das políticas de saúde
do país são menos do que o desejável. E, tradicionalmente, as explicações para
este fato terminam por condenar os próprios pesquisadores. Seja por avaliações
individuais (elitismo, alienação, etc.), seja por entender que a dinâmica
globalizada da pesquisa científica, mediada pela pauta das revistas
internacionais de maior impacto, determina essas escolhas, quase sempre
voltadas para os interesses do mundo desenvolvido. É possível que haja
pesquisadores elitistas ou afastados dos problemas de seu país, bem como é
também verdade que a pressão do "publish or perish" é capaz de determinar
escolhas de temas de pesquisa. No entanto, é possível que as explicações mais
importantes para o padrão de escolha dos pesquisadores brasileiros em saúde
seja mais simples. É possível que as escolhas sejam afastadas das prioridades
da política de saúde porque essas políticas, no Brasil, apenas muito raramente
geraram pautas de pesquisa prioritária. E provavelmente isso ocorreu porque a
instituição responsável pela construção e implementação das políticas de saúde - o Ministério da Saúde - historicamente vem negligenciando a importância da
pesquisa em saúde como ferramenta para a melhoria das condições de saúde da
população. Algumas evidências sobre essa afirmativa serão apresentadas a
seguir, ao discutirmos o perfil do financiamento público à pesquisa.
Pode-se dizer que, em termos setoriais, a pesquisa
brasileira de maior sucesso hoje em dia é a pesquisa agropecuária. Este sucesso
pode ser medido em termos de impacto científico, pois enquanto a presença de endereços
brasileiros para o conjunto da pesquisa na base ISI situa-se em torno a 1,3%,
no campo específico da pesquisa agropecuária está próximo de 3%. Mas podemos
também medir aquele sucesso a partir da contribuição dessa pesquisa com as
conquistas do agrobusiness no Brasil,
que o colocam hoje na situação de grande produtor e exportador de um conjunto
significativo de commodities. Para
várias delas, a começar pela soja, a pesquisa científica e tecnológica teve um
papel central.
Este resultado é produto de uma longa história, mas
a articulação da pesquisa com as políticas públicas de desenvolvimento
agropecuário ocorreu nos últimos 30 anos quando, em 1973, o Ministério da
Agricultura criou uma agência de apoio à pesquisa agropecuária
e estabeleceu uma agenda de pesquisa prioritária. Faço essa digressão com
vistas a comparar o financiamento público atual neste setor com o financiamento
à pesquisa em saúde.
Em 2001, o investimento anual per capita nos
pesquisadores em agropecuária foi quase 40% maior do que o destinado a cada
pesquisador em saúde. Além disso, a diferença no perfil do financiamento à
pesquisa nos dois setores encontra-se exatamente na participação dos
ministérios responsáveis pelos mesmos. Enquanto o Ministério da Saúde participa
com 20% do total de investimentos públicos na pesquisa em saúde, o Ministério
da Agricultura, através de sua agência, comparece com cerca de 40%.
As diferenças são evidentes. Pelo lado da pesquisa
agropecuária temos o ministério responsável pelo setor numa posição central na
gestão da política de pesquisa, uma agência de apoio, uma agenda de pesquisa
prioritária, mais recursos per capita e melhores resultados de pesquisa.
Pelo lado da pesquisa em saúde essa seqüência de eventos deve ainda ser
conquistada.
Em conclusão desse breve diagnóstico da situação da
pesquisa em saúde no Brasil, podemos afirmar que o país possui um bom estoque
de recursos humanos em pesquisa, uma infra-estrutura razoável para os padrões
do mundo em desenvolvimento e um financiamento público não desprezível. O que
está faltando fazer será apresentado a seguir.
Uma política
de ciência, tecnologia e inovação em saúde.
A
desigualdade é o calcanhar de Aquiles da civilização brasileira. Todo o
progresso conquistado por gerações, em todos os campos em que isso foi
observado, esbarra na marca da desigualdade. Não é diferente no campo da saúde.
Os indicadores regionais e os referentes a diferentes grupos sociais dentro de
cada região demonstram a profunda discriminação social quanto à saúde, seja nos
padrões de morbidade, de mortalidade, no acesso aos serviços, na qualidade do
atendimento, na disponibilidade de infra-estrutura sanitária, enfim em qualquer
aspecto da intervenção pública ou privada atinente à mesma. O compromisso de
combater a marca da desigualdade no campo da saúde (aumentar os padrões de
eqüidade do sistema de saúde) é o fundamento básico da política a ser
desenvolvida.
Em
artigo recente, publicado no Bulletin of
the World Health Organization, lê-se: "Se o sistema de pesquisa em saúde de
um país pode ser considerado como o "cérebro" do seu sistema de saúde, então a
ética constitui a sua "consciência". É imperativo que sistemas de saúde operem
segundo as mais altas aspirações éticas e de justiça distributiva".
Não resta dúvida de que as crescentes restrições observadas nos países centrais
quanto a experimentos in anima nobile
dentro de suas fronteiras têm estimulado a exportação de projetos de pesquisa,
em particular de protocolos de ensaios clínicos e terapêuticos para serem
executados em populações de países em desenvolvimento, em condições que seriam
legalmente proibidas porque eticamente inaceitáveis no país de origem. O
respeito estrito a padrões éticos na pesquisa deve ser o segundo fundamento
dessa política.
Uma
PNCT&I/S voltada para as necessidades de saúde da população deveria ter
como objetivo principal desenvolver e otimizar os processos de absorção de
conhecimento científico e tecnológico pelas indústrias, pelos serviços de saúde
e pela sociedade. O acatamento desta assertiva implica em analisar o esforço
nacional de C&T em saúde como um componente setorial do sistema de inovação
brasileiro. Reconhecendo a complexidade dos processos de produção de
conhecimento científico e tecnológico neste setor, a política deve levar em conta
de todas as dimensões da cadeia do conhecimento envolvida na pesquisa em saúde,
desde a pesquisa que objetiva exclusivamente fazer avançar o conhecimento até a
pesquisa operacional. Da mesma forma, deve incorporar a maioria dos atores
envolvidos no processo de pesquisa no país, que podem ser englobados em quatro
subconjuntos: biociências, pesquisa clínica, saúde coletiva e P&D no
Complexo Industrial da Saúde.
Finalmente,
a política deve adotar como diretriz a necessidade de estabelecer prioridades.
Para isso, o ponto mais importante a ser contemplado é a necessidade de
construção de uma agenda de prioridades para a pesquisa em saúde. Uma das
principais características históricas do sistema brasileiro de fomento à
pesquisa é sua baixa seletividade, significando uma insuficiente capacidade de
estabelecer prioridades e segui-las. E para que esta política mais seletiva
possa ocorrer num ambiente de maior racionalidade, na perspectiva do interesse
do país, é necessária a organização das necessidades de pesquisa segundo um
padrão de prioridades.
A agenda de pesquisa prioritária deverá governar a
aplicação da totalidade dos recursos do Ministério da Saúde para a pesquisa
científica e tecnológica. Para que isto seja feito de modo eficiente, na
perspectiva do aumento do volume de recursos para o apoio à pesquisa, será
necessário o desenvolvimento de novos instrumentos. No Brasil, com exceção da
pesquisa agropecuária, não há uma tradição de agências setoriais de
financiamento à pesquisa. Tanto no plano federal quanto nos estados, as
agências são "generalistas", ocupando-se da totalidade do campo científico e
tecnológico. Em paralelo ao processo de construção da agenda de prioridades,
está também sendo discutida a criação de uma agência de financiamento
específica para a pesquisa em saúde, vinculada ao Ministério da Saúde. Embora
ainda não haja uma decisão tomada quanto à sua forma, é certo que a organização
da agência deverá estar integralmente a serviço da agenda de prioridades de
pesquisa em saúde.
O complexo
industrial da saúde
Por fim, é preciso mencionar que uma política de
pesquisa num país com as características do Brasil deverá dar uma atenção
especial ao desenvolvimento tecnológico e à inovação e, para tanto, deverá
incorporar propostas e ações especificamente dirigidas ao Complexo Industrial
da Saúde. Essa atenção decorre do fato de possuirmos uma estrutura industrial
complexa e, em alguns setores, competitiva e, como já vimos, uma importante
capacidade instalada de pesquisa acadêmica e em alguns institutos de pesquisa.
Esta ênfase decorre também do fato do país ter grande necessidade de utilização
dos principais insumos industriais destinados à saúde - medicamentos, vacinas,
soros, hemoderivados, kits diagnósticos e equipamentos - e de que um
atendimento adequado dessas necessidades exige um máximo de capacitação
tecnológica e, em vários aspectos, autonomia e auto-suficiência tecnológicas.
Não deve ser desprezado o fato de que, nesse conjunto de produtos industriais o
país apresenta hoje em dia um déficit comercial anual de US$ 3,5 bilhões.
Cada um desses insumos à saúde apresenta
características industriais e mercadológicas particulares, muito embora todos
eles tenham, em comum, o fato de serem segmentos industriais de grande
dinamismo e lucratividade em termos mundiais. Além disso, no que se refere aos
medicamentos e às vacinas pode-se testemunhar uma verdadeira revolução
tecnológica nas últimas décadas. No plano da estrutura industrial, essa
revolução vem promovendo um movimento de concentração de capital e de
tecnologia que resulta em imensos conglomerados multinacionais que
competem/repartem o mercado mundial de medicamentos e também de vacinas. Este é
o terreno sobre o qual teremos que construir nossa política tecnológica e de
inovação em saúde e que, por si só, sugere o tamanho das dificuldades a serem
enfrentadas.
Sem dúvida, o campo mais desafiador e difícil é o
dos medicamentos e fármacos, aonde o processo de concentração e repartição do
mercado mundial vai mais avançado e que, em conseqüência da abertura comercial
indiscriminada observada no Brasil durante a década de 90, fez o país recuar em
relação ao que já havíamos conquistado em períodos anteriores. Este recuo nos
fez perder terreno não apenas para os países líderes, mas também para outros
países em desenvolvimento como a Índia e a China. Cerca de 30% das importações
de fármacos e medicamentos realizadas atualmente pelo Brasil tem como origem
países não pertencentes à OECD. A retomada de uma posição competitiva em
relação ao mundo em desenvolvimento é uma tarefa básica da política tecnológica
em saúde. O fortalecimento da empresa privada nacional e sua capacitação
tecnológica é a rota mais importante para realizá-la. O grau de
internacionalização do mercado de fármacos sugere que associações com empresas
multinacionais onde estejam incluídos mecanismos de transferência tecnológica
também sejam cogitados. Finalmente, não deve deixar de ser mencionada a
necessidade de ampliar, capacitar tecnologicamente e melhorar os modelos de
gestão das poucas, muito embora importantes, instituições públicas produtoras
de medicamentos.
Diferentemente do que se observa para os
medicamentos, a produção de vacinas e soros é predominantemente pública,
havendo, portanto, melhores condições para a construção de uma política tecnológica
focada nas necessidades nacionais. Nesse terreno, talvez o desafio mais
importante seja o de não deixar aumentar excessivamente a distância entre o
Brasil e o conjunto de países produtores no que se refere à tecnologia de novas
gerações de vacinas. Com ainda maior razão do que no caso dos medicamentos, as
ações voltadas ao fortalecimento, capacitação tecnológica e melhoria da gestão
dos produtores públicos é uma tarefa essencial.
Hemoderivados, kits diagnósticos e equipamentos
possuem, cada um, suas especificidades de mercado e essas devem ser
estabelecidas, examinadas e detalhadas de per si. O importante é que a
construção do componente tecnológico da política de pesquisa em saúde seja
realizada com base em evidências concretas da situação de mercado, das
possibilidades tecnológicas autóctones e, principalmente, das necessidades
nacionais. Para tanto, é de especial importância a realização de estudos
prospectivos que orientem informadamente a construção da política, com a
mobilização dos principais atores e tomadores de decisão públicos e privados
envolvidos.
Uma das principais características de uma política
de tecnologia e inovação em saúde é a sua flexibilidade. A definição dos alvos
prioritários, os arranjos institucionais mais adequados para cada objetivo e os
mecanismos de fomento a serem acionados devem obedecer à avaliação de cada
situação específica. A definição dos alvos prioritários deve ser produto dos
mencionados estudos de prospecção e deverão compor a agenda de prioridades de
pesquisa em saúde. Os arranjos institucionais deverão, sempre que possível,
privilegiar as empresas públicas e privadas, agentes decisivos no
desenvolvimento tecnológico e, principalmente, na inovação. Quanto aos
mecanismos de apoio financeiro, o leque deve ser aberto desde o apoio direto ao
desenvolvimento de projetos nas empresas, passando pelo financiamento de
arranjos onde se componham instituições de pesquisa e empresas até a encomenda
de projetos específicos a institutos de pesquisa e universidades. Além do
financiamento direto, deve ser utilizada no limite do possível a capacidade de
regulação do mercado por parte do Ministério da Saúde, através de suas compras
de medicamentos, vacinas e outros insumos.
Reinaldo Guimarães é diretor
do Departamento de Ciência e Tecnologia em Saúde. Ministério da Saúde.
CNPq/PRE/AEI - Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. Censo 2002.
IBGE. PINTEC
- Pesquisa de Inovação Tecnológica. 2002.
Equivalente
em tempo integral.
Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
Buttha, A. - Bulletin of the World
Health Organization. 2002
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