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Olhando para o lado

Algumas considerações sobre os ambientes de inovação nos Estados Unidos e no Brasil

Jorge de Paula Costa Avila[1], agosto de 2004

A década de 80 foi marcada por importantes mudanças na política industrial e tecnológica norte-americana. Três fatores contribuíram muito para isso: o avanço da indústria japonesa, o declínio dos gastos militares e o aumento dos custos da inovação na indústria.

As empresas japonesas, com seus produtos inovadores e relativamente baratos ameaçavam superar as empresas norte-americanas tradicionais. O sucesso japonês foi atribuído a excepcionais ganhos de produtividade obtidos pela aplicação de técnicas avançadas de gestão associadas a estratégias agressivas de marketing e comercialização. O fim da Guerra Fria, simbolizado pela queda do muro no final da década, mas já prenunciado, tornava pouco provável que as encomendas militares se mantivessem nos patamares dos vinte anos anteriores, e menos ainda que pudessem crescer de modo a suprir os recursos que a indústria demandava para inovação. Finalmente, a emergência das tecnologias de informação e os avanços científicos em vários campos, especialmente na física, na química e na biologia, tornavam a inovação, requerida pelos consumidores, cada vez mais dependente do avanço científico, e muito cara.

Dos fatores citados, os dois primeiros apontavam deficiências ou problemas específicos para os norte-americanos, e o terceiro um desafio para todo o mundo industrializado. Os Estados Unidos dispunham, no entanto, de um aparato institucional bastante mais desenvolvido que seus competidores para enfrentá-los: aquele país podia contar com o mais forte parque de instituições de Pesquisa e Desenvolvimento do mundo e com o mais desenvolvido, completo e dinâmico mercado de capitais. A Política que desde então se desenhou visou, portanto, a realizar o potencial contido nesses diferenciais institucionais.

O conjunto de medidas então empreendidas foi amplo. Dentre elas, três frentes merecem ser destacadas: as mudanças no regime de patentes, o novo sistema de fomento à inovação e à criação de empresas de base tecnológica e a flexibilização das regras de acesso ao mercado de capitais.

Verificou-se um avanço da patenteabilidade, que passou a abarcar as crescentes zonas cinzentas entre os universos da ciência e da tecnologia. A expressão “tudo que existe sob o céu” tornou-se máxima do sistema norte-americano de patentes, que passou a oferecer proteção aos resultados criativos de qualquer atividade humana. Essa diretiva passou, simultaneamente, a compor a pauta de reivindicações dos Estados Unidos nos foros internacionais, culminando com a celebração de TRIPs (acordo de direitos de propriedade intelectual da OMC) e presente, em versões cada vez mais exigentes, nas negociações bilateriais e multilaterais de comércio.

A atividade de capital de risco, que ganhara importância já a partir da promulgação, em 1958, do Small Business Investiment Act, que autorizou a criação das companhias de investimentos em pequenas empresas, denominadas Small Business Investment Companies – SBICs, foi fortemente incentivada pelo Bay-Dole Act, promulgado em 1982, que criou um conjunto de disposições inter-relacionadas com vistas a fomentar a inovação na indústria americana e para fomentar a criação e o desenvolvimento de empresas de base tecnológica inclusive a partir da pesquisa realizada nas universidades e centros de pesquisa públicos, que passaram a poder licenciar suas patentes de modo exclusivo para empresas privadas.

Através daquele ato, instituiu-se também a obrigação de que todas as agências federais que lidam com atividades inovadoras dedicassem parte de seus orçamentos à subvenção das atividades de pesquisa e desenvolvimento levadas a termo por tal natureza de empresas (Freitas, 2001). Essa disposição legal foi implementada através de dois programas descentralizados: o Small Business Innovation and Research – SBIR e, posteriormente, o Small Business Technology Transfer – STTR.

A estrutura de fomento aos empreendimentos nascentes cresceu e se diversificou e especializou continuamente nos Estados Unidos desde então. Fundos de capital de risco especializaram-se setorialmente e por estágio de desenvolvimento das empresas (Gorgulho, 1996), com o objetivo de oferecer serviços de informação e suporte de mais alta qualidade. Inúmeras instituições e empresas foram criadas com o mesmo objetivo. Os fundos de pensão foram autorizados e estimulados a apoiar essas iniciativas, capitalizando-as enormemente. Induziu-se assim, especialmente em setores de inovação radical baseada no avanço científico, como são o farmacêutico, o de novos materiais e alguns segmentos de eletrônicos, forte estímulo à terceirização de atividades de P&D para pequenas empresas. Surgiam os clusters de alta tecnologia caracterizados uma forte interação entre as empresas e entre estas e instituições de pesquisa.

O Mercado de Capitais deixou de ser privilégio das empresas mais estruturadas e propiciou grandes facilidades na criação e recombinação de ativos produtivos. Empresas inovadoras com prognóstico de alto faturamento (em geral devido à estrita proteção da propriedade intelectual) puderam abrir seu capital e foram, de fato, capazes de encontrar recursos complementares aos obtidos do Governo e de fundos de capital de risco no então nascente Nasdaq. A agilidade desse e dos demais mercados viabilizaram a sucessiva recombinação de ativos em formatos organizacionais diversos e, embora nem sempre de modo evidente, ajudaram a construir as empresas que hoje dominam o cenário internacional de alta tecnologia.

Em resumo, embora possamos argüir da adequação e mesmo de certos princípios que norteiam a política de inovação norte-americana (as diretrizes do sistema de patentes e os elevados riscos do mercado de capitais, por exemplo), é inquestionável que se logrou, lá, construir um ambiente dinâmico extremamente favorável à inovação e ao desenvolvimento empresarial.

No Brasil se enfrentaram, na década de 80 e até meados dos 90, problemas de outras ordens. Vivia-se a reconstrução das instituições democráticas e discutiam-se modelos de desenvolvimento para o período que se iniciava, em condições extremamente adversas. A inflação estava fora de controle e o País beirava à insolvência, incapaz de atrair novos capitais e com imensas dificuldades para ampliar suas exportações. Esgotara-se, ao que parecia, o modelo de substituição de importações que caracterizara o período anterior.

Buscar a inserção do País na economia mundial emergia como prioridade central. O processo de globalização avançava rapidamente e havia evidente defasagem entre as empresas brasileiras e suas concorrentes internacionais. Em meio à profusão de planos e medidas para controlar a inflação, a choques de todas as naturezas e à imensa instabilidade, as empresas brasileiras prepararam-se para o iminente acirramento da competição, e, contudo, em maior ou menor grau saíram-se bem.

A atenção se concentrou em atingir padrões de excelência e custos competitivos, o que acarretou uma profunda reorganização de muitos setores da economia, em geral no sentido da desverticalização, muitas vezes associada à desnacionalização (mas não à desindustrialização). As empresas aderiram fortemente ao Programa Nacional de Qualidade e Produtividade, a principal (talvez a única) iniciativa que se poderia chamar de política de inovação da década de 90.

Tal movimento, embora bem sucedido, representava, tão somente, fomentar inovações no nível das empresas, de modo a atingir patamares competitivos já alcançados pelos concorrentes dos países avançados e mesmo de outros países “emergentes”. Seus objetivos eram, sob esse prisma, modestos. Durante a década de 90, o sistema de Ciência e Tecnologia cresceu muito, mas manteve e, em alguns casos, aprofundou, sua desvinculação com a demanda (potencial) por tecnologia das empresas. Apesar da estabilização, a falta de políticas especialmente dirigidas para o mercado de capitais, associada ao elevado risco do País, o manteve incapaz de apoiar a grande maioria das empresas brasileiras. A despeito da significativa expansão do sistema oficial de crédito, pouco se desenvolveram alternativas consistentes de financiamento público ao esforço de inovação. As empresas brasileiras, apesar do grande avanço nos processos fabris e no porta-fólio de produtos, não chegaram a desenvolver capacidades de P&D comparáveis às de seus concorrentes internacionais, o que as deixou em condições de relativa fragilidade na competição internacional.

Na virada do século esse quadro começaria a ser revertido. Políticas foram esboçadas no Âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ministério de Desenvolvimento, com vistas a propiciar o maior direcionamento de recursos para o estímulo à inovação empresarial. Criaram-se novos mecanismos de financiamento e apoiou-se a maior interação universidade-empresa, dinamizando-se o movimento de parques tecnológicos e de incubadoras de empresas. Incentivou-se a criação de empresas de base tecnológica e a montagem de fundos de capital de risco, ao tempo em que surgia o Novo Mercado da Bovespa e se propunham mecanismos de estímulo à capitalização de novas companhias e ao aquecimento do mercado de capitais. Essas iniciativas mantinham-se, contudo, marginais: as áreas propriamente econômicas do Governo mantinham-se atidas, tão-somente, à gestão macro-econômica.

Vislumbra-se, hoje, a superação das fragilidades externas e iniciativas como as da nova política industrial e tecnológica representam passos na direção de conferir maior centralidade às políticas voltadas para os níveis meso e micro-econômicos. Há crescente consenso quanto à necessidade de coordenar tais iniciativas de modo a torná-las sinérgicas com as políticas de estabilização e com os esforços para a recuperação e o desenvolvimento da infra-estrutura física do País, formando uma espécie de tripé para o crescimento sustentável.

Há, contudo, ainda grande distância entre o que fazemos no Brasil e o que praticam os Estados Unidos e outros países desenvolvidos no campo da inovação. Por outro lado, há aspectos muito alentadores. Existe grande potencial nas empresas brasileiras que vêm, cada vez mais, se traduzindo na conquista de espaços em mercados fortemente competitivos; dispomos de um sistema de Ciência e Tecnologia competente que, em muitos campos, está em condições de igualdade para com os mais avançados centros internacionais; contamos com uma estrutura de fomento de grande capilaridade e dotada de recursos relativamente fartos; e há claros sinais de que o mercado de capitais brasileiro poderá superar a crise que atravessou e converter-se em efetivo mecanismo de desenvolvimento. O desafio da política nacional de inovação, e da própria PITCE (Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior), pode ser dito como o de operar sobre essas dimensões de modo a consolidar no País um ambiente adequado às especificidades e aos valores culturais brasileiros, mas tão dinâmico e eficiente quanto o estabelecido nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos.

Não se trata, evidentemente, de copiar trajetórias, pois há evidentes limites ao mimetismo institucional. Mas é absolutamente necessário desenvolver uma compreensão tão ampla quanto possível das diferentes dimensões que contribuíram para o sucesso inovador das empresas americanas. Refletir sobre cada uma dessas dimensões e as alternativas de trajetórias, avaliar oportunidades de convergência e estimar as conseqüências, políticas e econômicas, de possíveis divergências, constitui, a meu ver, uma agenda necessária neste momento de revitalização das políticas de crescimento. Afinal, cada vez mais, competimos e cooperamos sobre o mesmo mercado global.


Pequena nota sobre referências bibliográficas

Há extensa literatura disponível sobre as políticas norte-americanas de inovação. Richard Nelson (org., National Systems of Innovation, 1992), David Teece (Managing Intellectual Capital, 2000) e Chris Freeman (The Economics of Industrial Innovation, 1997) apresentam um bom quadro geral. Benjamin Coriat tem apresentado críticas lúcidas, especialmente sobre a questão relativa às patentes, ao acordo TRIPs e às negociações bilaterais e regionais sobre propriedade intelectual (ver, p.ex. Patents, Generic Drugs and the Markets for Antiretrovirals, http://www.iaen.org/files.cgi/11060_intro_part1.pdf). Luciane Gorgulho (O Capital de Risco como Alternativa de Apoio às Pequenas Empresas de Base Tecnológica: O Caso CONTEC/BNDES, tese de mestrado IE/UFRJ, 1996), comentou o Bay Dole Act e sua importância para o mercado de capital de risco norte-americano. Gorgulho (op.cit.) e Freitas (,M. C. Financiamento do Desenvolvimento Tecnológico: uma Análise Comparada. Convênio FINEP-FUNDAP, São Paulo, mimeo, 2001) sistematizaram as etapas de apoio a empresas de base tecnológica, conforme concebida no sistema norte-americano e mimetizado em muitos países, inclusive no Brasil. A trajetória brasileira de políticas industriais tem sido discutida por inúmeros autores, dentre os quais eu destacaria Antônio Barros de Castro (ver artigos para o Fórum Nacional e para a Revista Brasileira de Inovação, p.ex.). O sistema brasileiro de Ciência e Tecnologia é bem apresentado e discutido no Livro Verde da Ciência e Tecnologia (MCT). Ver, por exemplo, as contribuições de Sérgio Salles Filho e de Antônio Márcio Buainaim. Carlos Américo Pacheco realizou, recentemente, extensa discussão das políticas de ciência e tecnologia, de 1999 a 2003 (Estudos CEPAL) e, no site do IPEA, se encontram artigos e outros materiais de grande interesse sobre a nova política industrial, tecnológica e de comércio exterior (PITCE).



[1] Engenheiro, mestre em administração e doutor em saúde coletiva. Funcionário da Petrobrás, onde atua como consultor de negócios.

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Atualizado em 10/08/2004

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