A
Edificação do Ódio
Carlos Vogt
Galgar
dedo a dedo a prosa dos livros sagrados,
reunir em torno do tédio os bons companheiros,
salgar as chuvas de verão,
descer ao fundo da jóia para provar da família imensa
o pão azedo.
Ausentar-se
de si mesmo na hora do pró, no cargo pré,
na força contra, no modo impróprio, no contrapé,
ser lúcido no abdômen dos compromissos fictícios,
arremeter com violência insana a favor da paz celestial,
escrachar o interlocutor qualificado pelo vício do ventríloquo,
ferir de vida a chaga hipócrita da militância dos omissos.
Mover-se
rápido da tarde ao cedo, do pó ao pó, do ódio
ao pódio,
do amor ao medo,
selecionar os piores poemas de insuspeita beleza,
tornear cada som, pausa, cada imagem, metro, rima, ritmo, código,
cada verso
com a precisão informática da ferramenta de escalpo,
não progredir jamais pelas linhas tortas do incerto sucesso,
colecionar palavras maduras como cabeças encolhidas no fel
da saudade,
ser touro sentado no trono manchado de sangue do instante adverso,
voltar a rever o já-visto, o novo e o desconhecido da velha
cidade,
saber quebrar a espinha tensa do grito que abafe
o poema do herói caçador, a heróica caçada
sedenta do poeta do amor.
Ser
ardente e oblíquo na acareação dos espelhos,
viver na interface de imagens de costa para o aço,
de cócoras para o mal,
cortar com lâmina agrura a retórica dos pêlos,
chegar finalmente ao meio da encosta de igual desespero
plausível, timorato e temido como a ilusão do real.
Escrever com o contrário do hábito para aprender o
improviso
do resto da música bossa que o ócio do esmero
aumenta em risco rasgando o requinte do gesto,
metáfora que engessa a boca do tempo emergente,
o boi solitário que muge a urgência do sal.
E
se um dia, como de fato ocorre, no caminho surge
a pedra do poema, a poesia de pedra do poeta maestro que se finge
arquiteto,
um dia, pois, que costuma ser noite por acaso ou circunstância,
bastará ser menino e ser velho sem nenhuma aliança,
trapezista da sorte, amolador de vinganças,
atar os extremos do sóbrio à clausura dos berros,
matar-se de amor pelo ódio, por um ou por outro
morrer-se de amor.
|