As
penas alternativas e a dignidade humana
A
violência não é um fenômeno novo na sociedade
brasileira e os crimes, à medida que não são
resolvidos, vão se acumulando nos poros da história,
comprometendo o Estado de direito, em sua dimensão pública
e privada. Os horrores se sucedem no dia-a-dia, mas a violência
não é somente aquela que produz cadáveres,
que mutila corpos e que destrói a materialidade, ela é
também aterradora, quando se reveste de desrespeito à
dignidade humana.
Nesse
universo, inúmeras violações aos direitos dos
seres humanos mais fundamentais são cometidas no cumprimento
das penas, maculando o entorno cultural da nossa sociedade contemporânea,
sobretudo em razão de suas desigualdades, uma vez que, dentre
outros indicadores, o grau de civilização de um país
é medido pelo respeito dispensado aos seres humanos, livres
e presos.
Vivemos
um dos piores momentos de nossa história com a deflagração
das mais variadas crises, seja de mercado ou de mercadoria humana,
onde impera uma totalidade de problemas que passa pelo desemprego,
decadência das instituições responsáveis
pela educação, saúde e moradia, corrupção
generalizada, descrédito nas ideologias, desrespeito ao meio
ambiente e crime organizado, apenas para citar alguns.
Isso
tudo gera o aumento da criminalidade, que se não for tratada
de maneira adequada, volta-se contra a própria sociedade,
que passa a viver sob o signo do medo e da insegurança. Na
busca desesperada de uma suposta tranqüilidade social, advoga-se
por medidas repressivas de extrema severidade e a sanção
penal passou a ser considerada como indispensável para a
solução dos conflitos sociais.
Segundo
o consagrado criminalista, Damásio de Jesus, esse movimento
"neocriminalizador", separa a sociedade em dois grupos:
o primeiro, composto de homens de bem, merecedores de proteção
legal; o segundo, de homens maus, aos quais se endereça toda
a rudeza da lei penal. No afã de combater o delito, novas
leis são incessantemente editadas, porque os partidários
da "lei e da ordem" pressionam os congressistas à
elaboração de leis penais cada vez mais duras e iníquas,
fazendo com que o direito penal perca a sua forma e caráter
preventivo.
O
que está acontecendo no Brasil, continua o jurista, é
que cristalizou-se a idéia de que a punição
generalizada virou "remédio para todos os males"
que afligem os homens bons. Para chegarmos a esse ponto, os meios
de comunicação tiveram grande influência, pois
como a violência atrai público, vendendo jornais e
audiência, deu-se enorme publicidade aos delitos de maior
gravidade, como assaltos, seqüestros, homicídios, estupros,
etc. A insistência do noticiário desses crimes criou
a síndrome da vitimização. A população
passou a crer que a qualquer momento pode ser vítima de um
ataque criminoso, então criou-se a falsa crença generalizada
que a agravação das penas (como a pena de morte por
exemplo), é o que vai resolver o problema e garantir tranqüilidade,
não se fazendo distinção entre a criminalidade
de alta reprovação e a criminalidade pequena ou média.
Antonio
Garcia de Molina, em seus estudos penais e criminológicos,
diz que está desacreditada a idéia de que o delito
é uma atitude anormal do homem e, por isso, deve ser combatido
com princípios rígidos da "lei e ordem".
Hoje, considera-se o crime como um comportamento "normal",
atingindo a humanidade de forma integral no tempo e no espaço,
no plano horizontal e no vertical. O delito sempre existiu e sempre
existirá. Ocorre em todos os países, em todas as civilizações,
sejam quais forem os seus costumes. Alargam-se no campo horizontal
e têm o dom da ubiqüidade. No vertical, praticado por
homens bons e maus, atinge todas as camadas sociais, do mais humilde
agrupamento humano ao mais socialmente desenvolvido. É impossível
extingui-lo, não quer dizer que o aceitamos, pode-se, entretanto,
reduzi-lo a níveis razoáveis e toleráveis.
Para
os estudiosos, o direito penal brasileiro mostra-se ausente de rumo
e está colhendo o fracasso de seus contraditórios.
A inexistência de uma política criminal única
estabelecida pelos poderes executivo e legislativo, além
de não conseguir baixar a criminalidade, gera a consciência
popular da impunidade, aumenta a morosidade da Justiça criminal
e agrava o problema penitenciário.
As
lamentáveis condições de vida em nossas prisões,
não são segredo para ninguém. O sistema carcerário
brasileiro não tem cumprido seu principal objetivo, que é
reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não
volte a delinqüir. A origem etimológica da palavra "pena",
do latim poena, significa castigo, suplício, mas isso não
significa que os infratores devam ser desumanamente supliciados.
O propósito da pena privativa de liberdade é recuperar
o infrator e não torná-lo pior, sobretudo, se constatarmos
que ela é uma evolução em relação
ao sistema antigo de execução penal, que punia com
o açoite, a mutilação e a própria morte.
Em
outro plano, a imposição da pena privativa de liberdade
sem um sistema penitenciário adequado gera a superpopulação
carcerária, de gravíssimas conseqüências,
como temos visto nas sucessivas rebeliões de presos. Sem
falar, que ainda estamos longe das condições necessárias
para o pleno florescimento legal dos direitos humanos.
Nessa
linha, René Dotti, ao estabelecer as bases e alternativas
para o sistema de penas, preconizou que urge que a prisão
seja imposta somente em relação aos crimes graves
e delinqüentes de intensa periculosidade. Nos outros casos,
deve ser substituída pelas medidas e penas alternativas e
restritivas de direitos, como a multa, a prestação
de serviço à comunidade, limitação de
fins de semana, interdições temporárias de
direitos, proibição de freqüentar determinados
lugares, exílio local, realização de tarefas
em hospitais, casas de caridade, prestação de auxílio
a vítimas de trânsito, etc.
Esta
é também a posição das Nações
Unidas, que no IX Congresso da ONU sobre Prevenção
do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo em
1995, recomendou a utilização da pena detentiva em
último caso e somente nas hipóteses de crimes graves
e de condenados de intensa periculosidade. Para outros delitos e
criminosos de menor intensidade delinqüencial, foram recomendadas
medidas e penas alternativas.
Muitas
idéias e inovações penais, tais como a descriminação
das contravenções, o sistema unitário de penas,
a transformação da ação penal pública
para privada, estão sendo discutidas e sendo implementadas
com sucesso por inúmeros países. No Brasil, algumas
penas alternativas como o "sursis" e o livramento condicional
já são aplicadas há algum tempo e também
há uma preocupação em descriminalizar determinadas
condutas humanas, como a sedução e o adultério,
por serem condutas aceitáveis pela sociedade nos dias atuais.
Vantagens
e desvantagens das penas alternativas
De
acordo com vários juristas e estudiosos da matéria,
as principais vantagens seriam:
a) a diminuição do custo do sistema repressivo;
b) a adequação da pena à gravidade objetiva
do fato e às condições pessoais do condenado,
onde ele não precisaria deixar sua família,
a comunidade ou perder seu emprego;
c) o não encarceramento do condenado nas infrações
penais de menor potencial ofensivo, afastando-o do convívio
com outros delinqüentes.
E
as desvantagens, são que:
a) estas não reduzem o número de encarcerados;
b) elas não tem conteúdo intimidativo, parecendo
mais uma medida disciplinadora; e
c) trazem o risco da implantação de medidas
não-privativas de liberdade que impõem formas
de controle social mais intensas.
O
que ficou comprovado ao longo do tempo é que somente
com a punição do encarceramento, não
há recuperação do infrator, explica o
professor Tailson Pires da Costa, porque a pena de prisão
não deve servir apenas como um mero instrumento de
proteção às camadas sociais, através
do castigo imposto pelo Estado que priva o infrator de sua
liberdade. O mais grave, é que as etapas seguintes,
como a reeducação e a ressocialização
também não acontecem, pois o Estado trata com
enorme descaso a vida humana que está sob sua tutela.
Cabe ao Estado viabilizar caminhos alternativos para que esses
objetivos sejam alcançados. Porém a realidade
encontrada nos dias de hoje dentro do sistema carcerário
está muito distante da finalidade teórica da
pena.
A
impressão que nos dá, opina Tailson, é
que a realidade carcerária brasileira tem por objetivo
proporcionar medo ao condenado detento ou recluso, para que
este, uma vez intimidado, não deseje mais voltar ao
sistema penitenciário e evitando, assim, que ele volte
à delinqüência, mas não porque este
mesmo condenado descobriu, durante o período que cumpriu
a pena, que os valores sociais estão ao seu alcance,
longe do sistema carcerário.
O
consenso é que há necessidade de evolução
na teoria e na prática penal brasileira e as penas
alternativas são uma boa opção porque
apontam à consciência dos homens o conceito de
sociedade solidária e não a estulta idéia
de que a violência se combate com violência.
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Desde
o primeiro diploma penal elaborado no Brasil, que foi o Código
Criminal do Império, em 1830, já havia uma preocupação
com a dignidade da pessoa que tinha sua liberdade cerceada. Sucederam-no
diversos diplomas legais gestados no período republicano
e no Estado Novo, mas foi em 1940, que o Projeto de Alcântara
Machado deu origem ao atual código penal. A partir daí
surgiu uma legislação especial esparsa, como a Lei
das Contravenções Penais, Lei de Imprensa, etc.
Somente
em 1996, o então Ministro da Justiça, Nélson
Jobim, encaminhou à Câmara
dos Deputados o Projeto de Lei 2.684, que resultou de amplos estudos
e discussões por parte do Conselho Nacional de Política
Criminal, alterando o Código Penal. Na exposição
de motivos ele diz, "se infelizmente não temos, ainda,
condições de suprimir por inteiro a pena privativa
de liberdade, caminhamos a passos cada vez mais largos para o entendimento
de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes
graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do seio social.
Para os crimes de menor gravidade, a melhor solução
consiste em impor restrições aos direitos do condenado,
mas sem retirá-lo do convívio social. Sua conduta
criminosa não ficará impune, cumprindo, assim, os
desígnios da prevenção especial e da prevenção
geral. Mas a execução da pena não o estigmatizará
de forma tão brutal como a prisão, antes permitirá,
de forma bem mais rápida e efetiva, sua integração
social. Nessa linha de pensamento é que se propõe
a ampliação das alternativas à pena de prisão".
Este projeto foi transformado na Lei 9.714 de 1998, que ampliou
o rol de penas alternativas vigentes no sistema penal brasileiro.
(MP)
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