Guerra
e paz refletem a
natureza dupla do homem
Ulisses Capozoli
As
raízes da violência e as preocupações
em evitar que ela mutile e desestruture as sociedades são
provavelmente tão antigas quanto a humanidade. Ao longo de
milênios, a agressividade humana adaptou-se, sem desvincular-se
da evolução social. Em Futuro de Uma Ilusão,
Sigmund Freud, criador da psicanálise, diz que o homem livrou-se
do canibalismo, mas o assassinato ainda permanece, às vezes
com amparo do Estado, caso da pena de morte.
A destruição
terrorista das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova
York, e a retaliação militar que se seguiu, com bombardeio
de uma população faminta e acuada por anos de guerra,
no Afeganistão, certamente são uma expressão
contundente de violência, sob as justificativas mais diversas.
Konrad
Lorentz, prêmio Nobel e um dos fundadores da etologia, investigação
do comportamento animal, citado pelo antropólogo Richard
Leakey, em As Origens do Homem, sustenta "haver provas
de que os inventores dos primeiros utensílios de pedra -
os australopitecinos africanos - utilizaram prontamente suas armas
não só para matar animais, mas também membros
da própria espécie. O Homem de Pequin, o Prometeu
que aprendeu a conquistar o fogo, também fez uso deste conhecimento
para cozinhar seus irmãos: junto com os primeiros indícios
do uso regular do fogo estão os ossos mutilados e assados
do próprio Sinanthropus pekinensis".
Em
On Aggression, Lorentz defende a tese de que a espécie
humana traz em si uma forte herança de territorialidade e
agressividade, instintos que devem ser extravasados para se evitar
distúrbios sociais.
Leakey
pensa que todos esses conceitos - as provas arqueológicas
de canibalismo e as noções de instintos territoriais
e agressivos, além da descrição de um desenvolvimento
evolutivo como símios matadores - foram de alguma forma entrelaçados
para formar "um dos mitos mais perigosamente persuasivos de
nosso tempo, a de que a guerra e a violência estão
em nossos genes".
Mutilado
por um atentado político na África, que lhe custou
as pernas, Leakey diz que essa concepção pessimista
da natureza humana foi mal assimilada por autores como Desmond Morris
(O Macaco Nu) e Robert Ardrey (The Territorial Imperative,
Social Contract e Hunting Hypothesis).
Considera
esses indícios insuficientes para definir a natureza humana
e contrapõe que os homens também têm uma característica
bem desenvolvida para a cooperação, talvez mais que
à agressividade. Leakey pensa que "a noção
de instinto como força que define os sistemas de comportamento
animal foi superestimada e a flexibilidade de respostas envolvendo
condições ambientais significativas foram ignoradas
até recentemente".
Ainda
assim, não se pode dizer que a história humana seja
pacífica. Desde os primeiros tempos o som das armas pode
ser ouvido. Primeiro o baque seco e nervoso da pedra atirada a esmo.
Depois, o impacto do projétil arremessado com a precisão
do cálculo, como um felino que salta de um lugar para outro.
Neste intervalo, o som de ossos, galhos, pedras, usados como machados
e bordunas reverberaram contra o solo e o corpo de inimigos.
Quando
o fogo apareceu também foi usado na guerra onde ainda hoje
causa destruição. O fogo foi manipulado física
e quimicamente para produzir resultados cada vez mais letais. O
fogo das bombas atiradas pela fortalezas voadoras pode destruir
cidades inteiras, mas o fogo nuclear é ainda mais poderoso.
No Japão, sobre Hiroshima e Nagasaki, vaporizou o corpo de
pessoas, como um pequeno sol queimando próximo.
Mas
isso não é tudo. Como disse Loren Eiseley, nenhum
homem pode contar toda a história. A história que
existe é a história de todos os homens, porque ela
é a criação e expressão da cultura,
ambiente de que os homens necessitam para expressar sua natureza
humana.
Ao
longo da história, o som da guerra não foi o único
a se propagar pela atmosfera do Planeta. Os sons da música,
da pedra sendo esculpida, do pincel cobrindo a superfície
da rocha, no interior de cavernas como Altamira e Lascaux, da escrita,
do cálculo, do átomo fissionado, das profundezas do
céu, captado pela radioastronomia. Todos esses sons também
se dissiparam pela atmosfera denunciando a natureza dupla do homem.
Essa natureza dupla, como se pode ver, pela citação
de alguns autores, abrange tanto a agressividade, expressa sob a
forma de violência, como a cooperação, que sistematizou
organizações tribais, povoados, cidades e nações
e, agora, pela primeira vez na história, de alguma maneira,
estende-se por todo o planeta.
A globalização,
como este processo foi nomeado, divide muitos pensadores e, para
uma parte significativa deles, é a raiz contemporânea
de uma nova forma de violência. Um único centro hegemônico,
os Estados Unidos, controla a máquina do mundo orientado
pela lógica da acumulação de riquezas, o que
pressupõe a existência de um poderoso aparato militar.
Onde a lógica não puder ser imposta pela pressão
diplomática, pela força do mercado, será assegurada
pela boca fumegante dos canhões.
Historiadores
portugueses, entre eles Vitorino Magalhães Godinho, não
se surpreendem com essa nova ordem que começou a ser montada
ainda no século 15, quando Portugal iniciou o processo de
globalização com as viagens de descobrimento. A conexão
dos mercados, a interação rápida das culturas,
a descoberta, na Europa, de criaturas tão estranhas como
o équidna e o ornitorrinco, mamíferos que nascem de
ovos, reminiscência dos dinossauros, tudo isso surpreendeu
a humanidade confinada na Europa, ainda que ela não fosse
todo o mundo. Quando os cristãos se debatiam com a teologia
dogmática, os árabes traziam, em suas arcas, a memória
do passado clássico e ofereceram esse conhecimento, ampliado
na matemática, medicina, astronomia e na química,
além da literatura, para a construção do que
hoje se chama de Ocidente.
A percepção
dos historiadores portugueses é de que uma fase da globalização,
não se sabe até onde ou quando, será marcada
pela xenofobia, o esforço desesperado de cada cultura em
preservar seus valores. Os ataques a redes de fast-food, na França,
são uma evidência dessa reação que, com
repressão policial, transborda para a violência.
O fatiamento
do mercado planetário é uma fonte de disputa seguida
de perto pela violência. Uma nova distribuição
mundial do trabalho tira partido dos desníveis econômicos
e, ao mesmo tempo, o que é fonte de felicidade para poucos,
é, em muitos casos, a única alternativa para uma maioria.
O Vietnã é só um dos países que, neste
momento, oferecem mão-de-obra a preços irrisórios
às empresas originárias dos Estados Unidos.
A manipulação
da máquina do mundo, movida por uma lógica material
que não considera a natureza humana, é uma fonte de
desajustes em toda parte. Não é um processo novo,
mas a ampliação de uma característica já
existente. No rastro dessa manipulação, como na esteira
de um navio, emerge um redemoinho de descontentamentos expresso
pela violência: desemprego, desestruturação
familiar, consumo de drogas, corrupção e perda de
auto-estima. Claro está que essa é uma forma de expressão
contemporânea da violência. O caminho que a agressividade,
não sublimada pelo bem-estar, encontrou para manifestar-se.
Não pode ser vista como toda a expressão da violência
pois, neste caso, teríamos que percorrer toda a história
e ainda seria pouco. O homem é mais antigo que a história,
o registro de seus feitos no mundo.
Joseph
Campbell, no diálogo memorável que nos legou com Bill
Moyers em O Poder do Mito, diz que a violência nas
grandes cidades existe porque os mitos foram embora. Campbell fala,
evidentemente, pela linguagem alegórica, a expressão
típica dos mitos e nos alerta para a perda de valores humanos,
entre eles o sentido de mundo, a razão de existir. Certamente
não existimos para acumular moedas de ouro.
O universo
não tem um centro, dizem os cosmólogos, mas as questões
que demandam entendimento e inteligibilidade, de alguma forma sugerem
um centro. Neste caso, a violência contemporânea parece
originar-se de um núcleo associado à globalização
com valores impostos de forma única a culturas múltiplas.
Certamente não é apenas coincidência que o centro
hegemônico neste processo de globalização, os
Estados Unidos, estejam se enfrentando, em armas, com uma cultura
tribal, como o Afeganistão. As explicações
para isso são quase infinitas, mas o fato é este:
uma comunidade tribal desafia, com seus guerreiros suicidas, uma
outra, aparentemente lógica e coerente.
Também
isso não é novo. Quando os espanhóis chegaram
ao México, estranharam que os indígenas oferecessem
seus próprios filhos a seus deuses e viram nisso prova de
um primitivismo grotesco. Alguém lembrou-lhes, no entanto,
que o problema era deles, espanhóis, que não confiavam
nada em seus deuses e por isso lhes recusavam sacrifícios
tão caros quanto os filhos.
Frank
Drake, buscador de vida entre outras estrelas, escreveu uma equação
para tentar mensurar quantas inteligências podem habitar a
Galáxia. Num certo momento, relacionado à auto-destruição,
as probabilidades são, abruptamente, reduzidas à metade.
É uma arbitrariedade estatística, uma mera projeção
de como vemos a nós próprios. Mas talvez esteja projetada
aí a natureza dupla do homem, abrigando amor e ódio,
numa relação hegeliana de afirmação/negação
em busca de uma síntese possível.
Não
sabemos como são os outros impérios, se é que
existem, mas, de alguma forma, desejamos que não aprisionem,
por motivos fúteis, a vida de seus povos. Se for assim, como
aqui, certamente, eles também darão vazão à
suas fúrias. E ela se manifestará pela forma inequívoca
da violência.
Ulisses
Capozoli, jornalista especializado em divulgação científica
é mestre e doutorando em ciências pela USP e presidente
da Associação Brasileira de Jornalismo científico
(ABJC)
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