O
Bolsão ou A Vida
Eni P. Orlandi
O fechamento
de espaços recortando a cidade, retraçando seus percursos,
redesenhando divisões, refazendo limites entre o público
e o privado, separando de forma acintosa pobres e ricos, produzindo,
de um lado, nichos, e, de outro, corredores, se faz de modo irrefletido
oscilando entre modismo, paranóia e especulação
imobiliária. Nada com que se espantar: o capitalismo só
está aí se significando como "sabe" significar.
Desde que se configure a menor possibilidade, as diferenças
sociais e econômicas se manifestam violentamente e a divisão
social se sobrepõe ostensivamente à materialidade
da divisão do espaço urbano, espaço público.
Trabalho
com linguagem e penso a cidade como um espaço em que os sujeitos
e as práticas urbanas se significam. O que significa fazer
um bolsão chamado de segurança? Significa uma violência
simbólica: separa um conjunto de casas do resto da cidade
simbolizando assim que quem está de um lado é "amigo",
capaz de convívio, e todo resto é suspeito. O que,
para mim, mostra nossa incapacidade de convivência social
que saiba discernir o que é "socius" do que é
"hostis". Em princípio, com este gesto, tudo o
que está para lá do muro torna-se hostil. E nova violência
se produz: exige-se do "outro" (o que está no lado
de fora do muro) que ele se identifique. Ora, como um cidadão
igual a mim se arvora no direito de pedir-me um documento de identidade?
Só autoridades públicas e em situações
precisas têm esse direito. Ou seja, essa forma de tratar o
espaço público abusa de seu poder. Para dentro, cria-se
também uma indistinção entre o que é
público e privado. Por outro lado, se a razão desse
gesto in-social é a segurança isso acrescenta outros
incovenientes. Cria, no interior, uma incapacidade de conviver com
a cidade como tal e produz em seus habitantes uma falsa sensação
de segurança. Enganosa, pois nenhum muro é indevassável
e as pessoas, como são seres históricos e sociais,
não prescindem da vida social. Não se deixa o social
para fora. Mas, como tenho afirmado, o deixamos a descoberto. A
segurança para mim está justamente na prática
inversa, a da produção de relações sociais
mais fortes pois só o social bem estabelecido é capaz
de nos defender, a longo, a médio e a curto prazo. Sabe-se
que o fechamento em bolsões tem aumentado o potencial de
violência e a própria natureza da agressão é
mais cruel. Porque vem carregada desse sentido de reconhecimento
(e reforço) da discriminação social.
Tenho
dito que há três componentes que funcionam nessa relação
com os espaços fechados e a sua relação com
a violência: a constituição da violência,
a manutenção da violência e o seu desencadeamento.
Sabemos
que as causas - ao nível da constituição -
da violência são de muitas naturezas e derivam da má
gestão das relações sociais e econômicas.
Isso desemboca na impossibilidade de grande parte da população
ter acesso a bens sociais mínimos, econômicos, culturais
e, entre eles, a bens simbólicos como os do saber, da moral,
da ética que subjazem às práticas sociais.
Por outro lado, esses bens têm estado ausentes generalizadamente
das práticas de administração pública,
o que autoriza ainda mais o seu desrespeito. Ainda em relação
à constituição da violência quero chamar
a atenção para o fato de que só se fala em
um tipo de violência, preferencialmente, aquele ligado à
agressão e morte quando se trata do marginal que mata para
roubar o carro etc. Ora, a vida humana está desvalorizada
não só nesse gesto. Isso está disperso pela
ideologia capitalista. Um exemplo? A in-compreensão ecologista
que protege as capivaras e expõe os cidadãos ao carrapato
estrela (transmissor da febre maculosa) e que, cinicamente, guarda
os bichos onde eles não deveriam estar - quem disse que parques
urbanos são habitat de capivaras? - e mantém afastados
da grama e dos lagos e riachos os "humanos", seres sociais,
que além disso devem se examinar de duas em duas horas para
ver se não há carrapatos em suas peles! Que "lógica"
é essa em face da vida humana? Quanto vale um ser humano
face a uma capivara? Para quem são os parques urbanos? Por
que não manter animais silvestres nas matas onde eles encontrariam
condições próprias para seu desenvolvimento?
Que gesto foi este que trouxe para dentro da cidade um animal que
expôs a população urbana a mais esse incoveniente?
Quem está protegendo quem? Essa é uma forma de violência
travestida em ecologismo. Se tomo este exemplo é porque ele
é muito expressivo. Não somos animais em interação.
Somos seres simbólicos, históricos e vivendo em sociedade.
Isso tem um sentido que não está sendo respeitado
pela sociedade que estamos praticando. Ao invés de ir na
direção da sociabilidade fazemos justamente o contrário:
investimos em práticas que vêem no social um mal e
que se perdem em dogmatismos que se formam em torno de ideais mal
digeridos, mal pensados, dogmáticos mesmo. O social não
é um mal. Não. O que é perigoso é justamente
não praticar o social como o devido. Políticas urbanas
não são políticas de planejamento e ponto.
São políticas sociais urbanas. Há um social
aí a ser respeitado, refletido. Isso ajudaria a interferir
na valorização geral da vida humana e a pensar a constituição
social da violência.
Agora
passemos ao segundo componente dessa trilogia: a manutenção
da violência. São repetidos os gestos cotidianos da
manutenção da violência. Para dar um exemplo
rápido podemos mencionar o fato de que nossa concepção
de polícia se esgota na repressão. São políticas
de repressão que são praticadas quando pensamos o
aparato policial. Ora, esse aparato pode ter um papel formador de
consciência civil importante. Ele não serve apenas
para reprimir mas para assegurar direitos, e direitos para qualquer
cidadão. Seria a base para desenvolver políticas públicas
não só repressivas e de reforço da exclusão,
da discriminação mas também da formação,
da garantia de direitos na prática de deveres que estão
na base da significação do nosso sujeito social como
cidadão de um Estado constituído. Na ausência
dessa prática formadora desse sentimento, para não
dizer consciência, a ausência de direitos expulsa consigo
a noção de deveres. Ninguém tem a ver com ninguém.
É cada um por si e a sociedade e o Estado contra todos...Sentidos
não caem do céu: se formam em relações
que são relações entre sujeitos vivendo na
sociedade e na história.
O
terceiro componente é o desencadeamento da violência.
São muito variados e situacionais. Eu considero que a construção
de muros, de fechamentos é elemento desencadeador de violência
porque suprime o social, restringe o espaço público
e desrespeita liberdades fundamentais dos sujeitos que vivem em
sociedade. Causam uma profunda desorganização no espaço
urbano, do ponto de vista da sua memória. Ativa-se um aparato
policial repressivo, só se fala em aumentar o número
de prisões, fecha-se o marginal atrás de grades (devassáveis
por celulares...), isola-se a população da população
com grades e muros (também devassáveis: sabe-se que
diminui o número de roubos em residências e aumenta
o de assassinatos na rua), e deixa-se o social no abandono. Rarefeito.
Asfixia da população na supressão do espaço
público.
Os
bolsões chamados de segurança são só
mais uma maneira do capitalismo significar a exclusão e reafirmar
o poder econômico. Há, na prática de fazerem-se
muros e guaritas, uma exibição mal disfarçada
de poder econômico e social.
Podemos
então pensar que uma questão como esta tem suas diversas
dimensões: histórica, social e política. Todas
igualmente importantes. Do ponto de vista da história, fazer
muros dividindo fisicamente a população é praticar
uma ruptura na memória social, uma memória que não
funciona de modo muito consciente mas que está aí
fazendo sentido. Desfaz-se um "saber" social que funciona
ligando sujeitos no "mesmo" espaço público.
O muro é uma maneira de se fazer se sobreporem as distinções
que chamo de verticalizadas (hierarquizadas) sobre as relações
de contiguidade (convivência no espaço público
urbano). É em si uma forma de violência simbólica.
Do
ponto de vista social podemos lembrar aqui que o espaço público,
que a cidade, é um espaço social com seus conflitos
necessários e que está em constante movimento devendo
ser observado em suas necessidades ao invés de, ao reprimir
seu movimento, criar condições para rupturas violentas.
Resta ainda acentuar o que já dissemos anteriormente: que
o acesso a bens no espaço público não se dá
de forma "natural" pois esses bens são de natureza
histórico-social. É preciso pois criar condições
que favoreçam esse acesso socialmente significado. O ser
social é um ser/sujeito que se significa nessas relações.
Se elas forem de violência e de exclusão há
grandes chances que elas se signifiquem na violência e na
exclusão...
Do
ponto de vista da política, é preciso pensar que o
poder político, que é um poder de decisão,
se apresenta sob sua forma jurídica e administrativa, não
em si, mas em função da sociabilidade. Isto significa
que este poder é que vai regular os processos de socialização
do espaço urbano (público em sua relação
com o que é significado como privado). Como isto tem sido
feito? Como um exemplo apenas, lendo decretos, regimentos produzidos
por planejamentos urbanos, não aparece sequer uma vez a figura
do "morador" como figura jurídica. Quem decide
sobre o fechamento de um espaço é o proprietário
e não o morador. Ora, numa sociedade como a nossa, temos
sempre a probabilidade de termos poucos proprietários para
muitos moradores. Como fica a manifestação do morador
se ela não tem expressão jurídica? Isso não
favorece a manipulação imobiliária? É
posssível o poder público reger isso?
Em
suma, o que tenho observado é que nos fechamos seguindo a
lógica do medo, da repressão, da anulação
do espaço público e negação da sociabilidade.
Penso que temos que, ainda que pessoalmente possamos estar submetidos
a esses sentimentos, reagirmos de forma social e significativa em
termos da nossa história, saindo dessa lógica da violência
que, apesar de nos dar uma ilusão de onipotência, nos
deixa na realidade em uma posição grave de impotência
social e pessoal. Claro que quando falo em nós estou pensando
a população, as entidades, associações,
e o poder público em seu conjunto e não isoladamente.
O
que proponho pois é não cair na armadilha do discurso
da violência - o bolsão ou a vida! - e mudar o rumo
da reflexão: ao invés de propor os bolsões
de segurança, pensar em interferir na constituição
dos bolsões de violência. Ou seja, quando se observa
que há segmentos da população que estão
se isolando (sendo isolados) em bolsões de violência
encontrar meios de interferir com equipamentos públicos,
transporte freqüente, iluminação, escola, projetos
culturais e de lazer, enfim, manifestações da vida
social e convivência historicamente significada de sujeitos
que somos enquanto sujeitos que significamos em e pela nossa forma
de vida na prática da sociabilidade que é a vida da
cidade (droit de cité). Ou seja, ao invés de deixar
funcionar a inércia da violência, que vai por si, uma
vez que as condições já estão criadas,
desfazer-se dessa lógica pela contraposição
de uma lógica da sociabilidade, universalmente significada,
ou seja, para fora dos muros e das grades.
E
aí faz sentido uma outra observação. Em países
como a França, por exemplo, a vigilância se faz. Discuti
isso com uma colega francesa que manifestou seu espanto com a quantidade
de seguranças, policiais etc que encontrava nas guaritas
na universidade, nos bancos, nas residências de certos bairros,
etc. Aí observei-lhe: quando estou em Paris também
não tenho acesso a qualquer espaço sem que, de alguma
maneira, se exerça uma vigilância. A diferença
é que esta, nesses outros países, é menos visível.
Para entrar em um prédio, tenho de ter o código da
porta de entrada e este é, em geral, fornecido apenas pelo
morador. Não passo assim por um policial ou um segurança,
nem tenho de apresentar a carteira de identidade a alguém.
Cria-se um pacto de familiaridade e não a exibição
de um gesto de hostilidade. Eis a diferença. Penso pois que
a visibilidade desses processos é que acrescenta hostilidade
e contribui para significarmos nossas tensões sociais e aprofundarmos
o abismo que nos separa em nossas histórias sociais, postos,
no entanto, no mesmo espaço, que é a concentração
em quantidade que constitui toda cidade. Comprimidos em um mesmo
espaço e exibindo nossas diferenças e nossas hostilidades.
Nossas relações são assim significadas por
essa visibilidade dada a processos de repressão e de hostilização
que impedem que se expanda o espaço cívico, público,
que favoreça nossos laços de sociabilidade.
Para
terminar eu diria que não estou tentando convencer pessoas
ou salvar a sociedade. Gostaria que minha fala tivesse o sentido
de levar a uma reflexão. Por que? Porque se pensamos em perspectiva,
podemos nos perguntar que cidade é que nós estamos
construindo? Ou, em outras palavras: qual é a forma de cidade
que corresponderia melhor à nossa formação
social? E é aí que devemos investir com nossas reflexões
e propostas. Os gestos que foram feitos no passado levaram-nos aos
problemas que enfrentamos hoje. E o que estamos praticando no espaço
particular de significação social e politicamente
determinado que é a cidade vai nos levar a um futuro com
sua configuração. Seria interessante pois se pudéssemos
responder minimamente a esta questão: que cidade estamos
construindo com nossos muros? Quando os muros separavam uma casa
de outra, o tipo de relações sociais, com os nossos
"outros" era um. Com muros separando bolsões estamos
estabelecendo outras formas de relações. Estamos assim
significando nossa condição de vida e estamos ao mesmo
tempo investindo em certas formas de relações sociais.
Que formas são essas que estamos praticando de organização
das diferenças sociais? É preciso termos democraticamente
informações adequadas, criar condições
para elaborar os conhecimentos necessários e produzir políticas
sociais públicas compatíveis que levem a sociedade
a praticar seus direitos e a cidade a ter a forma que acolha os
sujeitos que nela vivem em quantidade e concentradamente. Aprender
novas formas de convivência social. Mobilizar instituições,
pensar coletivamente fazendo reunirem-se iniciativas da Justiça,
do poder legislativo, executivo, da mídia, da população,
configurar programas que atendam essas necessidades, reivindicar
condições de sociabilidade praticável. Não
deixar pois o social a descoberto mas sustentar o movimento do social
como parte de nossa história, no caso, urbana. Deixamos assim
de praticar a apropriação, a disputa de um território
para podermos conviver na conquista de um espaço realmente,
socialmente, habitado. Temos pois de re-significar as relações
sociais, dando sentido real à convivência social, ampliando-a
e não, como tem sido a prática, restringindo-a. O
espaço público é o espaço de convivência
social politicamente significada dos sujeitos na cidade. Depende
do que aí estiver posto.
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