Um
novo cotidiano para as favelas cariocas
Apesar
de a complexidade da violência urbana trazer consigo a sensação
de insolubilidade, existem importantes iniciativas sendo executadas,
que revertem esta noção pessimista. Num projeto inovador,
que conta com a atuação conjunta da polícia
e das comunidades, o Grupamento de Policiamento em Áreas
Específicas (Gpae) tem enfrentado, de maneira bem sucedida,
o problema da distância entre polícia e comunidade
e o do medo que os cidadãos têm da polícia.
Gpae
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O
Gpae é uma unidade especial da polícia militar
(PM) do Rio de Janeiro. Segundo o atual coordenador do projeto,
o sociólogo e major da PM, Antônio Carlos Carballo,
o Gpae surgiu da necessidade de desenvolver e empreender uma
nova filosofia e modalidade de serviço policial em
comunidades populares. Para o major, tradicionalmente a ação
policial nessas comunidades é concebida, planejada
e executada a partir de uma filosofia militarista, que não
corresponde a necessidade das comunidades. "Trata-se
de modos de atuação desprovidos de qualquer
sentido de regularidade e interatividade. São ações
de natureza exclusivamente repressiva, desenvolvidas para
viabilizar a busca e a captura de criminosos, a apreensão
de armas e drogas ou para impedir a atividade criminosa, que
constituem iniciativas de alto potencial de risco, haja vista
a concreta possibilidade da ocorrência de confrontos
armados e do conseqüente saldo negativo de vítimas,
policiais e não policiais", afirma Carballo.
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Criado
em julho de 2000, pela Secretaria de Segurança Pública
do Estado do Rio de Janeiro, o Gpae foi implantado, em setembro
de 2000, na comunidade do complexo Pavão-Pavãozinho
e Cantagalo, que tem uma população estimada entre
17 mil e 20 mil habitantes na área mais nobre da cidade do
Rio de Janeiro, entre os bairros de Copacabana, Ipanema e Lagoa
Rodrigo de Freitas. Para a implantação desse projeto,
foram realizadas reuniões com representantes das comunidades,
simultaneamente a um programa de estágio para os policiais,
ambas as atividades com intuito de sensibilizar comunidade e policiais
para os problemas relativos a violência ali enfrentados. Um
dos desafios do Gpae tem sido o processo de revitalização
de recursos humanos. Desde a criação do Grupamento,
foram afastados 50 policiais, por existirem fortes evidências
de comprometimento da sua idoneidade moral, profissional e de suas
ações policiais perpetradas contra cidadãos
comuns, caracterizadas por maus tratos, violência arbitrária
ou abuso do poder. A resposta imediata a essa demanda da comunidade
constituiu um importante fator para o estabelecimento de relações
de respeito e confiança entre polícia e comunidade.
O Gpae
presta serviços de policiamento ostensivo, tendo como foco
principal a preservação da ordem pública. No
entanto, a ação do Grupamento está alicerçada
no esforço contínuo de aplicação de
novas estratégias de prevenção e repressão
qualificada do delito, a partir da filosofia da Polícia Comunitária.
A ação do Grupamento é essencialmente preventiva
e, apenas eventualmente, repressiva, contando com a integração
dos serviços e com a mobilização de instituições,
líderes comunitários e outros parceiros que possam
contribuir para o desenvolvimento social.
Desde
sua implantação, o Gpae alcançou um resultado
que antes parecia inatingível, reduziu a zero o número
de homicídios e ocorrências de "bala perdida".
Só no período de janeiro a setembro de 2000 haviam
sido registrados 10 homicídios na localidade. No primeiro
ano de atuação, o Grupamento atendeu mais de 260 ocorrências,
das quais 25% foram ocorrências policiais criminais, 49% de
natureza não criminal, como condução de enfermos
ao hospital e auxílio à parturiente.
Dentre
os crimes notificados 68,3% estão relacionados ao tráfico
de drogas. Segundo o relatório de estatística operacional
do Gpae, nos conglomerados urbanos, comunidades populares ou favelas,
observa-se uma forte incidência de ocorrências policiais
associadas à dinâmica do tráfico de drogas (posse
e uso de substâncias entorpecentes). Ainda neste relatório,
analisa-se esta incidência relacionada a precariedade das
condições ambientais, a insuficiência de serviços
e equipamentos urbanos associada à ausência de instâncias
representativas do poder público local propiciam o surgimento
de focos de desordem urbana nesses espaços geográficos
o que favorece a reprodução de valores sócio-culturais
distintos daqueles reproduzidos em outras áreas da cidade.
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Vista
aérea da favela
do Pavãozinho - RJ
Foto: Carlos Carballo
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Favela
do Cantagalo - RJ
Foto: Carlos Carballo
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O encaminhamento
de demandas e expectativas da comunidade e a interlocução
entre a comunidade e outros órgãos públicos,
através do Gpae, trouxe uma série de benefícios
para a comunidade. Segundo Carballo, houve efetivamente a redução
do medo da polícia. Ele lista alguns dos motivos para isso:
a)
presença regular e interativa da polícia ostensiva
b) redução da presença ostensiva de armas de
fogo no interior das comunidades
c) redução do número de crianças envolvidas
em práticas criminosas
d) redução do número de casos envolvendo policiais
em ações de maus tratos, violência arbitrária
ou abuso do poder
e) inclusão de mais de 100 famílias no Programa de
Segurança Alimentar do Governo do Estado (Programa Cheque-cidadão)
f) cadastramento e matrícula de 180 jovens, na faixa etária
de 16 a 24 anos, em Programas de Aumento de Escolaridade e Capacitação
Profissional (Programa Todos pela Paz)
g) implantação e construção do Espaço
Criança Esperança, de iniciativa da Unicef, em parceria
com o Gpae, Secretaria de Estado de Ação Social e
Viva Rio.
Dado
o sucesso do projeto existe atualmente a intenção
da Secretaria de Estado de Segurança Pública de ampliar
a experiência do Gpae para o Complexo da Maré, conglomerado
urbano da cidade do Rio de Janeiro composto por quinze comunidades
com uma população estimada em 80 mil habitantes.
Entidades
e lideranças comunitárias
Dentro do projeto do Gpae insere-se o Conselho de Entidades e Lideranças
Comunitárias, composto por organizações governamentais,
como polícia, escola, Secretarias de Governo e outras e,
por entidades não governamentais, como Igrejas, Associações
de Moradores, Escola de Samba, e ONGs, cumpre o papel de articular
e integrar esses diferentes atores em torno de um objetivo comum.
Atualmente, destaca-se o apoio institucional da ONG Viva Rio e do
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
da Universidade Cândido Mendes.
O mentor
desse projeto é o (já falecido) ex-coronel da PM,
Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1994, criou o Grupamento
de Aplicação Prático Escolar (Gape), com fundamentos
e atribuições similares às do Gpae. Segundo
Carballo, na época essa iniciativa não teve êxito
devido ao insuficiente apoio político-governamental. A concepção
original foi retomada e redimensionada, em 1999, pelo ex-sub-Secretário
de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares.
O major
Antônio Carlos Carballo avalia a experiência do Gpae
como gratificante e frustrante ao mesmo tempo. Gratificante pelos
resultados operacionais alcançados e pela dinâmica
empreendida na nova relação entre polícia e
comunidade. Frustrante pelo fato de os esforços policiais
serem insuficientes para responder às demandas e expectativas
emanadas da comunidade. "Infelizmente, nossos governantes ainda
não conseguiram superar as vaidades pessoais e unir esforços,
de maneira racional e suprapartidária, para enfrentar com
responsabilidade esse doloroso problema social exteriorizado na
forma da violência e da criminalidade. A polícia continua
sendo o centro das atenções, atuando num cenário
impróprio, onde não foram esgotados todos esforços
de prevenção primária do delito (saúde,
educação, saneamento, esporte, cultura, lazer, trabalho,
geração de renda, etc). Continuamos 'enxugando o gelo'.
A etiologia do fenômeno criminal continua intocada",
argumenta o major.
Segundo
Luís Eduardo Soares, o Gpae é um grande sucesso, um
modelo que só não é mais bem sucedido por conta
do isolamento político da Secretaria de Segurança
Pública. "Há um isolamento derivado do desinteresse
por parte dos gestores da segurança pública do Rio,
um desinteresse e uma desconfiança de que de que essa iniciativa
dê certo. Não há investimentos sociais para
complementar a atuação policial. Mas este modelo é
um sucesso e demonstra de forma cabal que é possível
mudar a polícia e é possível mudar a relação
da polícia com as populações de periferias,
simultaneamente respeitando os direitos humanos", afirma Soares.
Para
Carballo, a polícia está longe de cumprir sua função
na sociedade. "Dizem que a instituição policial
é o reflexo da organização social de um país.
Se isso for verdadeiro, enquanto as instituições políticas,
sociais e econômicas não cumprirem, democraticamente,
suas funções, as instituições policiais
brasileiras continuarão correspondendo às demandas
e expectativas de uma sociedade marcada pela desigualdade",
conclui.
(MK)
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