O
mistério da impiedade
Carlos
Vogt
"Por
isso Deus lhes envia a operação do erro, para
que creiam na mentira, e para que sejam julgados todos os
que não creram na verdade, antes tiveram prazer na
iniqüidade". (Tessalonicenses, 2: 11- 12).
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I
Assisti, recentemente, a uma apresentação de Billy
Budd, de Benjamin Britten, na Ópera Nacional de Paris - Bastille,
numa belíssima encenação de Francesca Zambello
e com um cenário deslumbrante de simplicidade, em que a iluminação
tem um papel comovente. Não conhecia a versão lírica
do romance de Herman Melville, que li há alguns anos, e pelo
qual me interessei profundamente, tanto quanto minha geração,
também por outros romances em que o tema da violência,
sob a forma do binômio crime e castigo, é preponderante.
Entre outros, Dostoiéwski, Melville e Camus, com O Estrangeiro,
em particular, compõem marcos de referência consagrados
no imaginário ético e estético de diferentes
épocas e estilos.
Quando
o autor de Moby Dick morreu, em 1891, este breve romance histórico
- Billy Budd, marinheiro - estava, depois de incessantes revisões,
praticamente pronto, embora só viesse a ser publicado anos
mais tarde, em 1924, e tivesse tido como ponto de partida um poema
de 32 versos de autoria do próprio Melville a respeito do
mesmo tema que depois será desenvolvido em prosa.
Como
em outras obras de Melville, trata-se do embate do Bem e do Mal
representado nas alegorias da nau do Estado e da nau da individualidade
mas apresentado de forma viva e tocante pela densidade humana dos
personagens e pelo peso divino de suas contradições
e conflitos.
O enredo
do romance tem origem num fato histórico ocorrido em 1842,
quando a bordo do navio de guerra americano Somers, três homens
tentam organizar um motim e são julgados por um conselho
formado pelos oficiais que os condena à forca e à
execução imediata. Em terra, os oficiais são
julgados por homicídio e absolvidos, embora estigmatizados
para sempre. Entre esses oficiais, um primo-irmão de Melville,
Guert Gansenvoort, para quem a narrativa de Billy Budd é
também uma forma de reabilitação ensejada pelo
romancista.
Em
1846, um jovem marujo da marinha americana, Samuel Jackson, é
enforcado por ter batido em um oficial que havia ordenado que seus
sapatos fossem jogados no mar porque haviam sido encontrados onde
não deveriam estar.
Depois
do fracasso de público de Moby Dick e de vinte anos de silêncio,
em 1888, já com 69 anos, Melville começa a escrever
Billy Budd.
A história
é simples: Billy Budd é jovem e simpático,
bonito, cheio de sincera devoção à vida e aos
valores morais consagrados na época.
Levado a bordo do navio britânico Bellipotent tem, desde logo,
em oposição e adversidade à sua "dignidade
natural", a inteligência, esperteza, e o interesse apaixonado
da "depravação natural" do contramestre
Claggart.
O comandante
do navio, capitão Edward Fairfax Vere, correto, disciplinado
e disciplinador viverá pelo resto de sua vida a tragédia
de ter permitido e autorizado a execução de Billy
Budd por ter este golpeado e morto o contramestre Claggart que o
acusa, diante do capitão, de incitação ao motim.
Billy
Budd, perfeito, simpático, divino mesmo, tem, contudo, um
forte traço de humanidade: é gago. Toda vez que se
vê envolvido em forte emoção não consegue
falar. Quando é acusado por quem tinha como amigo, tamanho
é seu acesso de indignação que, não
conseguindo falar, explode num gesto de repulsa e golpeia Claggart,
matando-o. É julgado por três oficiais convocados para
tanto pelo próprio capitão Vere que funciona, no julgamento,
como testemunha que, embora compadecido pela compreensão
das razões da atitude do marinheiro, procede formalmente
à narrativa oficial que o levará à condenação
e à morte.
II
Billy
Budd, a ópera, foi encomendada a Benjamin Britten para o
Festival of Britain em 1951 e o livreto, baseado na novela de Melville,
foi escrito em colaboração com E. M. Forster e Eric
Crozier.
Ópera moderna, rara, por não comportar papéis
femininos, sua estréia deu-se no Convent Garden de Londres
no dia primeiro de dezembro daquele mesmo ano, numa versão
em quatro atos. Treze anos mais tarde, uma segunda versão,
mais próxima ainda da novela de Melville foi encenada no
mesmo teatro.
Foi
a essa versão em dois atos, mas ainda assim com quase três
horas de duração, à que assisti na Òpera
Bastille.
Aqui
o navio mercante de onde vem Billy Budd chama-se Rights of man (Os
Direitos do Homem), numa clara alusão alegórica aos
ventos revolucionários franceses que dão calafrios
nos britânicos; o navio de guerra para onde vai, com mais
dois companheiros, chama-se agora Indomitable (O Indômito);
ter vindo de Os Direitos do Homem constituirá o fundo dos
argumentos de amotinação com que o contramestre Claggart
o acusará para o comandante, o capitão "Starry
Vere" (Vere, o Magnífico), como é chamado pela
tripulação.
Culto, leitor de Plutarco, sensível, correto, corajoso, justo
e íntegro, antes de ser enforcado, tanto na novela, como
na ópera, Billy Budd o abençoa: "God bless Starry
Vere" (Deus abençoe Vere, o Magnífico). Mas nem
o perdão sincero do condenado, exaltando na hora da morte
o juiz de seu malogrado destino, aliviará a consciência
trágica do capitão sem dela eliminar a dúvida
moral sobre o acerto ou o desacerto de uma decisão que custou
a vida de um jovem simpático, leal e de futuro promissor.
O perdão exaltado de Billy Budd, ao contrário de aliviar
suas penas, acentua o seu remorso, fazendo crescer suas dúvidas.
Configura-se,
desse modo, um dos dilemas do livro de Melville e da ópera
de Britten: os limites e os embates entre a certeza e a ignorância
moral e aquilo que por duas vezes aparece em Billy Budd pelo uso
da expressão bíblica "o mistério da impiedade",
a qual contempla o esforço malogrado de humanidade tanto
em Billy como em Claggart.
III
Não conhecemos nosso destino e nem as circunstâncias
interiores e exteriores que o levarão ao sucesso ou ao malogro
de nossas intenções de vida. O mal não necessita
de nenhuma intrepidez de caráter: multiplica-se como sombra
sem fonte de luz definida.
O bem requer um esforço de sociedade e uma disposição
de vontade individual tais que sua realização é
sempre um ato de coragem, como, aliás, a verdadeira alegria.
A distinção
entre um e outro é objeto da ética e de seus finalismos
morais.
A violência
é a loucura do mal e a sua banalidade, para lembrarmos Hannah
Arendt, pode ser mais danosa do que todos os maus instintos juntos.
Não
podemos perder nossa capacidade de indignação.
A indigência
ética - para lembrar agora uma expressão de Heidegger
- de nossa época é o grande desafio de nossa sociedade.
Buscar arrancá-la de um relativismo absoluto no qual tudo
se compreende e tudo se perdoa, sem deixá-la resvalar pela
pirambeira metafísica dos universalismos místicos
e racionalistas, em que tudo se explica e nada se entende, é
a tarefa maior que devemos nos propor realizar.
Estudar, sob os seus mais diferentes aspectos, os mecanismos da
violência é, sem dúvida, um passo importante
para o seu entendimento, mas não necessariamente para o seu
perdão. Um pouco de Nietzche não fará mal a
ninguém!
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