O
desafio da violência
Gilberto
Velho
A VIOLÊNCIA,
em diversas formas, foi variável fundamental na constituição
da sociedade brasileira. A ocupação européia
do hoje território brasileiro foi feita mediante a destruição
de centenas de culturas indígenas e da morte de milhões
de ameríndios. Fosse pelo confronto direto em combate, fosse
por doenças, escravidão e desorganização
de sua vida social, os índios brasileiros foram, em grande
parte, dizimados. Por intermédio das pesquisas de antropólogos
e arqueólogos, sabe-se, atualmente, da grande diversidade
e riqueza sócio-cultural dos numerosos grupos indígenas,
vitimizados ao longo desse processo de colonização
e expansão territorial, levado a cabo pelo Estado luso-brasileiro
e por particulares.
Por
outro lado, a instituição da escravidão, implicando
uma dominação violenta, física e simbólica,
atingiu os índios e depois, principalmente, a mão-de-obra
africana que, durante quase quatro séculos, foi objeto do
tráfico. Milhões de indivíduos, provindos de
diferentes regiões e culturas africanas, foram trazidos para
o território brasileiro, dentro de um sistema de divisão
de trabalho internacional, no qual as grandes plantations,
produzindo açúcar e café, entre outros, e os
metais preciosos constituíram a contribuição
desse lado do Atlântico Sul (Alencastro, 1979).
Inegavelmente,
formou-se uma sociedade complexa e heterogênea que, a par
da dimensão de exploração e iniqüidade
social, apresentou extraordinárias facetas de rica interação
e troca sócio-culturais. As diferentes culturas ameríndias
e africanas, mesmo violentadas e fragmentadas, participaram intensamente
da formação da sociedade nacional como mostraram,
entre outros, Gilberto Freyre (1933) e Sérgio Buarque de
Holanda (1958). A contribuição européia básica
veio por meio dos portugueses, com sua ação político-
administrativa expandindo e ocupando o território, trazendo
também a língua e o repertório cultural católico-ibérico.
Outros europeus incorporaram-se, de modos diferenciados, como os
espanhóis, italianos, alemães, e diversos outros grupos
étnicos. Mais tarde, a partir do início do século,
chegaram os japoneses, principalmente para São Paulo. A incorporação
dessas minorias foi repleta de episódios de arbitrariedade
e violência, com situações de exploração
e discriminação (Seyferth, 1998). Assim, a colonização
mercantilista, o imperialismo, o coronelismo, o regime das oligarquias
antes e depois da independência, tudo isso somado a um Estado
marcado pelo autoritarismo burocrático, contribuiu decisivamente
para a vertente de violência que atravessa a história
do país. Sabemos, com Simmel (1964), que o conflito é
inerente à vida social.
No
Brasil, além de uma rotina de dominação com
mecanismos conhecidos de exercício da força física
como a tortura, fenômeno bastante generalizado, não
são poucos os episódios ou situações
de conflito com luta aberta, produzindo mortos, feridos e vítimas
em geral. Limitando-nos ao Brasil independente e às conflagrações
internas menciona-se, por exemplo, a Guerra dos Farrapos, a Balaiada,
a Cabanagem, a Revolução Federalista, Canudos, Contestado,
os movimentos de 1924 e 1932, e assim por diante.
O Estado Novo e o regime militar levaram bem longe o exercício
do poder de governos centrais autoritários e antidemocráticos.
Mesmo em períodos democráticos, freqüentemente
registram-se fatos que confirmam essa vertente. A cordialidade do
homem brasileiro precisa ser relativizada e contextualizada dentro
desse panorama. Se for entendida como uma manifestação
de sentimentos e emoções na vida social, sem conotações
necessárias de gentileza e bom trato, poder-se-ia até
tentar incorporá-la como objeto de investigação
de um ethos e de uma cultura nacionais. Da mesma forma, o
jeitinho poderia ser analisado como parte de um repertório
no qual a manipulação de poder e de relações,
a corrupção e o uso da força têm papel
crucial.
Portanto,
a sociedade brasileira tradicional, a partir de um complexo equilíbrio
de hierarquia e individualismos, desenvolveu, associado a um sistema
de trocas, reciprocidade na desigualdade e patronagem, o uso da
violência, mais ou menos legítimo, por parte de atores
sociais bem definidos.
No
entanto, o panorama atual apresenta algumas características
que alteram e agravam o quadro tradicional. Por ocasião das
comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil
não há mais como disfarçar ou tentar diminuir
a gravidade do fenômeno da violência na sociedade brasileira
contemporânea. Em muitas sociedades há violência.
Existem guerras, conflitos étnico-religiosos e banditismo.
Nem sempre as fronteiras entre essas manifestações
são claras, havendo misturas de todos os tipos como na Colômbia,
para ficar por perto de nós. Mas no Brasil, sem guerra civil
explícita, atingimos, especialmente nas grandes cidades,
com repercussões para quase todo o território nacional,
uma situação na qual a criminalidade campeia com seu
séquito sinistro de assassinatos, seqüestros, assaltos,
roubos e tráfico de drogas e armas.
A urbanização
acelerada, com o crescimento desenfreado das cidades, as fortes
aspirações de consumo, em boa parte frustradas, dificuldades
no mercado de trabalho e conflitos de valores são algumas
variáveis que concorrem para tanto. Ninguém mais se
sente seguro: nem empresas nem indivíduos. Senadores da República,
ex-governadores, membros da Academia Brasileira de Letras, diplomatas,
empresários e suas famílias engordam as listas de
vítimas de roubo, assalto, seqüestro e, eventualmente,
assassinato. Elites e classes médias têm suas casas
assaltadas. O que dizer das camadas populares, secularmente vitimizadas?
Nas favelas, nos conjuntos habitacionais, nas periferias, os criminosos
fazem praticamente o que querem, seviciando, estuprando e matando.
Não há lugar protegido. Escolas, igrejas, templos,
quartéis, delegacias etc. são freqüentemente
invadidos. As pessoas são humilhadas e desrespeitadas de
todos os modos.
O poder
público tem se mostrado, no mínimo, incapaz de enfrentar
essa catástrofe. Mas, pior do que isso, é constatar
que toda essa violência só pode existir com a conivência,
cumplicidade e ativa participação de grupos da polícia,
membros do Legislativo de todos os níveis, setores do aparelho
burocrático civil e até autoridades do Judiciário.
A corrupção está indissoluvelmente associada
à violência, uma aumentando a outra, sendo faces da
mesma moeda, como já foi dito. Esse processo não é
de hoje, mas vem se acelerando nas últimas décadas,
atingindo proporções assustadoras que põem
em cheque o próprio Estado Nacional, à medida em que
o poder público, não só não consegue
mais controlar a criminalidade, mas aparece gravemente contaminado
por ela. Sem dúvida a pobreza, a miséria e a iniqüidade
social constituem, historicamente, campo altamente propício
para a disseminação da violência. No entanto,
creio que não tem sido dada a devida atenção
para a dimensão moral, ética e do sistema de valores
como um todo, para a compreensão desse fenômeno.
A perda
de credibilidade e de referências simbólicas significativas
destrói expectativas de convivência social elementares.
Filósofos, pensadores e cientistas sociais das mais variadas
orientações mostram como a sociedade só é
viável mediante um mínimo de valores e padrões
compartilhados. Por exemplo, o ataque físico a pessoas idosas
já se tornou rotina no cotidiano das grandes cidades brasileiras.
Em outros países com alto índice de pobreza, como
a Índia, essas cenas são inimagináveis. Esse
tipo de evento era, também, até pouco tempo atrás,
muito raro no próprio Brasil, motivo de escândalo e
indignação. Hoje banalizou-se assim como outras notícias
de crueldade contra mulheres, crianças, pessoas doentes etc.
Trata-se, claramente, de uma crise ético-moral.
A família,
a escola e a religião não têm sido capazes,
por sua vez, de resistir a essa deteriorização de
valores. Na sociedade tradicional, com sua violência constitutiva,
existiam mecanismos de controle social que marcaram uma moralidade
básica compartilhada. Sem dúvida, continuam existindo
áreas e grupos sociais que preservam e se preocupam com essas
questões. Certamente a maioria das pessoas não é
violenta ou corrupta. No entanto, o clima geral de impunidade incentiva
a utilização de recursos e estratégias criminosas.
A mídia, fundamental numa sociedade democrática, denuncia
e divulga o estado de coisas, tornando pública, pelo menos,
parte da atividade criminosa. Mas, em poucos casos, existe a percepção
de que a denúncia tem conseqüências, aumentando
a sensação de injustiça e impunidade que é,
talvez, a principal causa de violência. Hospitais funcionam
precariamente, o transporte público é deficiente,
os salários baixos e ainda, diariamente, novos escândalos
aparecem.
Enfatize-se
que a solução não é a censura, como
gostariam alguns. Na televisão assiste-se ao espetáculo
de poderosos senadores desmoralizando-se e ao Poder Legislativo.
Prefeituras e governos de estados são acusados de corrupção
e conivência com o crime organizado. Um presidente da República
foi afastado por corrupção mas as investigações
não tiveram continuidade, não tendo sido apurada a
real extensão e profundidade do saque à nação,
conduzido por ele e seus aliados. Assim todo um importante movimento
social foi frustrado.
Verbas
são desviadas, obras superfaturadas, numa sucessão
rápida e ininterrupta de fatos que agravam o quadro de desapontamento,
às vezes indiferença e, muitas vezes, revolta. O que
esperar diante desses exemplos de improbidade? No mínimo
agrava-se a falta de confiança nos quadros dirigentes. Muitos
considerarão normal e aceitável vários tipos
de transgressão e, mesmo, crimes, diante do que aparece na
mídia e do que vivem no cotidiano. Outros poderão
reforçar sua posição de afastamento e desprezo
pela esfera pública. De qualquer forma, instaura-se um clima
de salve-se quem puder, no qual cada vez menos indivíduos
e grupos poderão manter identidades estáveis baseadas
em atitudes e comportamentos pautados pela ética religiosa
ou laica.
Desenvolvem-se,
inevitavelmente, soluções do tipo "justiça
pelas próprias mãos", que aumentam ainda mais
a violência e a insegurança. Policiais, bandidos, justiceiros
e seguranças travam batalhas diárias matando e pondo
em risco a segurança de toda a população. O
fenômeno das "balas perdidas", expressão
desses conflitos, é difícil de ser explicado para
pessoas que não vivem nas cidades brasileiras. O fato de
qualquer pessoa em qualquer de seus bairros estar exposta a esse
tipo de perigo ilustra, de modo dramático, a intensidade
da crise.
Como
construir e sustentar um projeto nacional nessas circunstâncias?
A sociedade civil, por si só, é insuficientemente
organizada para enfrentar esses desafios e criar alternativas legítimas
para o enfrentamento da violência. Só o Estado, reformado
e renovado, incluindo o Legislativo e o Judiciário, poderá
dispor de meios e recursos, articulado à opinião pública,
para reverter essa ameaça de colapso. Estou falando, bem
entendido, de regime democrático e não de ditaduras
salvacionistas. Sem o apoio contínuo e vigilante da sociedade
civil, o Estado corre o risco de hipertrofiar-se num autoritarismo
esterilizante, como em boa parte de nosso passado.
Recentemente,
as práticas de regime militar tiveram papel significativo
no desenvolvimento de uma cultura da violência, com invasões
de domicílio, tortura e assassinato. Tudo isso agravou a
mencionada vertente que atravessa a história do país,
associada ao abuso físico e à truculência em
geral. Só governos democráticos, legitimados pela
sociedade civil e voltados para os direitos humanos, terão
alguma possibilidade de exercer, com sucesso, o poder e a força
contra a criminalidade. Essa ação deve ser viabilizada
por meio de instrumentos legais adequados que garantam continuidade
e eficácia, sem recuos e acomodações. Qualquer
que seja sua posição no espectro ideológico,
todos os indivíduos e categorias sociais defrontam-se no
Brasil com a ameaça da violência. Hoje um projeto capaz
de mobilizar a nação passa, inevitavelmente, pelo
estabelecimento de uma política efetiva de segurança
pública dentro da ordem democrática. Só assim
poderemos implementar e consolidar nossa precária cidadania,
condição básica para o futuro da nação
brasileira.
(Texto
publicado na revista Estudos Avançados, 14(39):56-60,
maio/ago.2000)
Gilberto
Velho é professor titular de Antropologia Social do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Referências
bibliográficas
ALENCASTRO, Luis Felipe de. La traite négrière et
l´unité nationale bresilienne. Revue Française
d´Histoire d´Outre-Mer, v. 66, n. 244-245, p. 395-419,
1979.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação
da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
Rio de Janeiro, José Olimpio, 1933.
HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro,
José Olimpio, 1958.
SEYFERTH, G. Algunas consideraciones sobre identidades étnicas
y racismo en Brasil. Revista de Cultura Brasileña,
Madrid, Embajada de Brasil en España, p. 69-84, marzo, 1998.
SIMMEL, Georg. Conflict and the web of group-affiliations.
New York, The Free Press, 1964.
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