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Mecanismos complexos memória separam o
lembrar do esquecer

Entender os mecanismos de funcionamento da memória humana constitui um dos grandes desafios da ciência moderna. Já na tentativa de definição o tema mostra sua complexidade. Isso porque o conceito de memória varia de acordo com a especialidade no qual será aplicado. No entanto, uma das definições mais usadas é a de memória como capacidade de reter e manipular informações adquiridas anteriormente.

Para José Lino Bueno, professor do Departamento de Psicologia e Educação da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, a memória é um conjunto de procedimentos que permite manipular e compreender o mundo, levando em conta o contexto atual e as experiências individuais, recriando esse mundo por meio de ações da imaginação.

"O que fica armazenado é um 'sumário interpretativo' de toda nossa experiência passada. A capacidade dos neurônios de se transformar, adaptando sua estrutura ao contexto (plasticidade neural), seria o suporte desse funcionamento da memória.", explica o pesquisador.

Essa capacidade de memorização não é exclusiva dos seres humanos. Pesquisas têm demonstrado a existência de mecanimos de memória em animais como pombos e chimpanzés. Para Bueno, a realização de experimentos com primatas pode ser útil para a compreensão de propriedades da memória humana. Segundo ele, há semelhanças que não podem ser ignoradas, mas não se sabe exatamente quais os limites da capacidade de processamento dos animais. "Sabe-se, por exemplo, que chimpanzés e babuínos podem ser capazes de usar mapas espaciais; o que se investiga, ainda, é até onde vai a capacidade desses animais de processamento de imagens mais abstratas, simbólicas e não icônicas".

O pesquisador lembrou ainda que alguns estudos mostraram que pombos podem armazenar até 320 imagens de slides com 90% de acerto na identificação daquelas que foram arbitrariamente classificadas pelo experimentador como positivas ou negativas.

No entato, os trabalhos sobre mecanismos de memória e funciomento do cérebro humano demonstram que a complexidade da memória humana é muito maior do que de qualquer outro animal estudado.

"Em humanos, o desempenho em atividades de memória está muito mais sujeito à ativação de diferentes funções mentais e cerebrais, o que o torna bastante variável para o mesmo indivíduo e mais ainda de indivíduo para indivíduo". Segundo ele, o desempenho da memória humana depende da combinação entre aspectos de maturação nervosa, de contexto e da demanda atencional, emocional e motivacional da tarefa.

Tipos de memórias
Apesar da existência de vários modelos explicativos para o funcionamento da memória, uma das questões que ainda intriga os pesquisadores é a relação entre a memória de curta e a de longa duração. Alguns defendem que a memória de curta duração seria apenas o início do processo que levaria à formação de uma memória de longa duração. No entanto, a maioria dos resultados obtidos nas pesquisas sobre o assunto tem sinalizado para a existência desses dois mecanismos distintos, funcionando de forma independente, mesmo quando agem na mesma estrutura do cérebro.

Mais importante que definições gerais, para entender a memória humana é fundamental saber os processsos que envolvem a aquisição, armazenamento e evocação de cada tipo de memória. Para isso, o primeiro passo é saber que não existe uma memória, mas sim vários tipos de memória que se relacionam para formar "a memória" que usamos no dia-a-dia.

As classificações mais utilizadas para memórias são estabelecidas de acordo com o tempo de duração, função e conteúdo de cada uma delas. E, ao contrário do que se pensa comumente, o processo de memória não acontece apenas quando apreendemos algo novo (arquivamos), ou lembramos de algo (recuperamos). Há também a memória de curto prazo ou memória de trabalho, que alguns pesquisadores preferem não chamar de memória, mas sim de central de gerenciamento.

A memória de trabalho é usada, por exemplo, quando retemos um número de telefone apenas por tempo suficiente para discarmos, estamos usando esse tipo de memória. Além da sua baixa capacidade de retenção da informação - alguns segundos ou no máximo poucos minutos - a memória de trabalho é responsável por gerenciar nossa realidade. Ela determina se a informação é útil para o organismo e deve ser armazenada, se existem outras informações semelhantes em nossos arquivos de memória e, por último, se esta informação deve ser descartada quando já existe ou não possui utilidade.

No exemplo do número telefônico, como já conhecemos a linguagem numérica e presumimos que aquela informação não precisa ser memorizada, os mecanismos para formação de arquivos de memória não são ativados e a informação é "esquecida". Então, se não conseguimos completar a ligação, muito provavelmente teremos que procurar o número novamente, já que ele já foi esquecido. Na verdade nem chegou a formar arquivos de memória.

As memórias referenciais também podem ser classificadas de acordo com seu conteúdo como declarativas episódicas, quando se referem à lembrança de algo que assistimos ou vivenciamos ou declarativas semânticas, quando são referentes a noções gerais adquiridas de forma indireta, como a lembrança de um livro que lemos. As principais áreas responsáveis pelas memórias episódicas e semânticas são o hipocampo e o córtex entorrinal (ver figura).

Já a memória de longo prazo ou referencial tem o processo de formação de arquivo e consolidação, e pode durar de minutos e horas a meses e décadas (neste último caso são conhecidas também como memórias remotas). São exemplos desse tipo de memória as nossas lembranças da infância ou de conhecimentos que adquirimos na escola.

"Os sistemas de curto e longo prazo de memória estão ligados, transferindo informações continuamente de um para outro. Quando necessário, o conteúdo da memória de longo prazo é transferido para o armazenamento da memória de curto prazo. O sistema de curto prazo ou memória de trabalho recupera as memórias, tanto de curto quanto de longo prazo", afirma Bueno.

As memórias referentes a hábitos como andar de bicicleta, saltar e soletrar são chamadas de proceduais ou de procedimento. Estas podem ser explícitas, adquiridas com plena consciência ou implícitas, como a maioria das memórias proceduais, adquiridas de maneira involuntária.

Memória na psicanálise
Mas a memória tem sido estudada também sob um outro ponto de vista, no qual o objeto de estudo não é o que pode ser lembrado, mas sim, o contrário, o que não é lembrado, e que está retido no inconsciente. Para a teoria psicanalítica o mais importante é justamente o que se gostaria de esquecer.

"A memória para a psicanálise é um campo no qual as significações feitas por alguém, a partir das suas experiências vividas ou imaginadas, articulam-se em uma linha de continuidade que pode estar interrompida em alguns pontos pela ação de certos processos defensivos", pontuou Ana Cecília Carvalho, professora no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Segundo a psicanalista, muitas memórias 'esquecidas' estão na verdade reprimidas no inconsciente por se tratarem de lembranças que trariam sofrimento para a pessoa. Em alguns momentos conhecidos como 'lapsos de memória', nos sonhos ou através de um tratamento psicanalítico, quando essas memórias seriam recuperadas e voltariam para o consciente.

"Quando nos lembramos de algo, vem à tona apenas uma parte de uma quantidade muito maior de elementos que provavelmente estão submetidos aos diferentes graus da censura que existe entre o inconsciente e a consciência. Assim, nem sempre 'lembrar' é o mesmo que 'ter consciência'", esclarece a pesquisadora.

Na opinião de Bueno também existiriam características relacionadas à nossa qualifição e experimentação individual, que influenciam na capacidade ou facilidade com que memorizamos as informações. "Parece que acontecimentos conscientemente percebidos precisam assumir algum tipo de dimensão afetiva".

No entanto, os estudos sobre o grau de influência de mecanismo de repressão ou das emoções nos processos de memória são ainda pouco conclusivos. No caso da repressão, estudos apontam para o provável envolvimento de sistemas corticais capazes de inibir a função de outras áreas corticais ou do hipotálamo.

(MT)

Leia nesta edição entrevista com Delia Goldfarb, que fala de como a afetividade influencia a memória.

 
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Atualizado em 10/03/2004
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