O
olho da história: fotojornalismo e história contemporânea
Ana
Maria Mauad
Os
grandes e não tão grandes fatos que marcaram a história
do século XX foram registrados pela câmera fotográfica
de repórteres atentos ao calor dos acontecimentos. Qual a
natureza desses registros? Como fica a narrativa dos acontecimentos
elaborada pela linguagem fotográfica? Quais são as
imagens que compõem a memória coletiva do século
passado? É possível falar de uma história feita
de imagens? Qual o papel do fotógrafo como criador de uma
narrativa visual? E da imprensa como uma ponte entre os acontecimentos
e sua interpretação? Estas são as questões
fundamentais que orientam as reflexões que se seguem.
A fotografia
entrou para os jornais diários em 1904, com a publicação
de uma foto no jornal inglês, Daily Mirror. Um atraso
de mais de vinte anos em relação às revistas
ilustradas, que já publicavam fotografias desde a década
de 1880 (Souza, 2000. Freund, 1989). No entanto a entrada da fotografia
no periodismo diário traduz uma mudança significativa
na forma do público se relacionar com a informação,
através da valorização do que é visto.
O aumento da demanda por imagens promoveu o estabelecimento da profissão
do fotógrafo de imprensa, procurada por muitos ao ponto da
revista Collier's, em 1913 afirmar: "hoje em dia é
o fotógrafo que escreve a história. O jornalista só
coloca o rótulo" (Lacayo e Russel, 1990, p.31. Cit.
Souza 2000, p. 70).
Uma
afirmação bastante exagerada, tendo em vista o fato
de que somente a partir dos anos 1930 o conceito de fotorreportagem
estaria plenamente desenvolvido. Nas primeiras décadas do
século, as fotografias eram dispostas nas revistas de modo
a traduzir em imagens um fato, sem muito tratamento de edição.
Em geral eram publicadas todas do mesmo tamanho, com planos amplos
e enquadramento central, o que impossibilitava uma dinâmica
de leitura, como também não estabelecia a hierarquia
da informação visual (Souza, 2000, p. 70).
Foi
somente no contexto de ebulição cultural da Alemanha
dos anos 1920, que as publicações ilustradas, principalmente
as revistas, ganhariam um novo perfil, marcado tanto pela estreita
relação entre palavra e imagem, na construção
da narrativa dos acontecimentos, quanto pelo posicionamento do fotógrafo
como testemunha desapercebida dos acontecimentos. Eric Salomon (1928-1933)
foi o pioneiro na conquista do ideal da testemunha ocular que fotografa
sem ser notado. No prefácio de seu livro Contemporâneos
célebres fotografados em momentos inesperados, publicado
em 1931, ele enunciou as qualidades do fotojornalista, dentre elas
as principais seriam uma paciência infinita e astúcia
para driblar todos os obstáculos na conquista da imagem certa
para sintetizar o acontecimento tratado.
Solomon
foi responsável pela fundação da primeira agência
de fotógrafos, em 1930, a Dephot, preocupado em garantir
a autoria e os direitos das imagens produzidas. Questão que
se prolonga até os dias de hoje, nos meios de fotografia
de imprensa. Em todo caso, foi através de iniciativas independentes
como essas que a profissão do fotógrafo de imprensa
foi ganhando autonomia e reconhecimento. Associado à Solomon
em sua agência estavam: Felix H. Man, além de André
Kertesz e Brassai.
A narrativa
através de imagem passaria a ser ainda mais valorizada quando
surge o editor de fotografias. O editor, figura que surgiu nos anos
1930, originou-se do processo de especialização de
funções na imprensa e passou a ser o encarregado de
dar um certo sentido às notícias, articulando adequadamente
palavras e imagens, através do título, da legenda
e de breves textos que acompanhavam as fotografias. A teleologia
narrativa das reportagens fotográficas tinha como objetivo
capturar a atenção do leitor, ao mesmo tempo em que
o instruía na maneira adequada de ler a imagem. Stefan Lorant,
que já havia trabalhado em diversas revistas alemãs
foi o pioneiro na elaboração do conceito de fotorreportagem
(Costa, 1993, p.82).
Lorant
rejeitava a foto encenada, ele, ao invés, vai fomentar a
fotorreportagem em profundidade sobre um único tema. Nessas
reportagens, geralmente apresentadas ao longo de várias páginas,
fotografias detalhadas são agrupadas em torno da foto central.
Esta tinha por missão sintetizar os elementos de uma 'estória'
que Lorant pedia aos fotojornalistas que contassem em imagens. Uma
fotorreportagem, segundo tal concepção, deveria ter
um começo e um fim, definidos pelo lugar, tempo e a ação
(Souza, 2000, p.80).
Com
a ascensão do nazismo os fotógrafos deixaram a Alemanha,
Salomom é morto em Auschswitz, alguns deles, dentre os quais
o húngaro Andrei Friemann, que assume o pseudônimo
de Capa, foram para França onde, em 1947, fundaram a agência
Magun, outros, como Lorant, se exilam na Inglaterra, assumindo
a direção de importantes periódicos, tais como
Weekly Iillustrated. Posteriormente, com o acirramento do
conflito, seguiram para os EUA, trabalhando junto às revistas
Life, Look e Time (1922).
O período
entre guerras foi também o de crescimento do fotojornalismo
norte-americano. Destacando-se, nesse contexto, o aparecimento dos
grandes magazines de variedades como a Life (1936) e a Look
(1937). A primeira edição da revista Life saiu
em 11 de novembro de 1936, com tiragem de 466 mil exemplares e com
uma estrutura empresarial que reunia, em 17 seções,
renomados jornalistas e fotógrafos da sensibilidade de um
Eugene Smith.
Criada
no ambiente do New Deal, a Life foi projetada para dar sinais
de esperança ao consumidor, tratando, em geral de assuntos
que interessavam às pessoas comuns. Objetivava ser uma revista
familiar, que não editava temas chocantes, identificando-se
ideologicamente com: a ética cristã, a democracia
paternalista, a esperança num futuro melhor com esforço
de todos, trabalho e talento recompensados, apologia da ciência,
exotismo, sensacionalismo e emotividade temperada por um falso humanismo
(Luiz Espada, cit. Por Souza, 2000, p.107).
A geração
de fotógrafos que se formaram, a partir da década
de 1930, atuou num momento no qual a imprensa era o meio por excelência
para se ter acesso ao mundo e aos acontecimentos. Essa geração
de fotógrafos exerceu uma forte influência na forma
como a história passou a ser contada. As concerned photographs,
fotografias de forte apelo social, produzidas a partir do estreito
contato com a diversidade social, conformaram o gênero também
denominado de documentação social. Projetos associados
à rubrica de documentação social são
bastante variados, mas em geral se associam a uma proposta institucional,
oficial ou não.
Um
famoso exemplo de fotografia engajada num projeto oficial foi o
da FSA (Farm Security Administration), uma agência de fomento
governamental, dirigida por Roy Stryker, através da qual
a vida rural e urbana foi registrada (e devassada) pelos mais renomados
fotógrafos do período: Dorothea Langue, Margareth
Bourke-White, Russel-lee, Walker Evans,etc.
Por
outro lado, o aumento constante da busca por imagens conduziu à
multiplicação de agências de imprensa em todos
os países. Elas empregavam fotógrafos ou estabeleciam
contratos com fotógrafos independentes. Em geral as agências
ficavam com grosso do lucro obtido com a venda das fotos e o fotógrafo,
responsável por todos os riscos, não tinha controle
sobre essa venda.
Esse
foi um dos motivos pelos quais, em 1947, Robert Capa, juntamente
com outros fotógrafos, fundou a Agência Magnum. Para
esse grupo, a fotografia não era apenas um meio para ganhar
dinheiro. Aspiravam a exprimir, através da imagem, os seus
próprios sentimentos e idéias de sua época.
Rejeitavam a montagem e valorizavam o flagrante e o efeito de realidade
suscitado pelas tomadas não posadas, como marca de distinção
de seu estilo fotográfico. Em geral os participantes dessa
agência eram adeptos da Leica, uma câmera fotográfica
de pequeno porte que prescindia de flash para as suas tomada, valorizando
com isso o efeito de realidade.
Em
ambos os exemplos, o que se percebe é a construção
de uma comunidade de imagens em torno de determinados temas, acontecimentos,
pessoas, ou lugares, podendo inclusive cruzar tais categorias. Tais
imagens corroboram, em grande medida, o processo de construção
de identidades sociais raciais, políticas, étnicas,
nacionais, etc, ao longo do século XX.
No
Brasil
O mercado editoral brasileiro, mesmo incipiente, já existia
desde o século XIX, com publicações das mais
diversas (Sussekind, 1987) Em 1900 é publicada a Revista
da Semana, primeiro periódico ilustrado com fotografias.
Desde então os títulos se multiplicaram como também
o investimento nesse tipo de publicação. Um exemplo
disso é o aparecimento, em 1928, da revista O Cruzeiro,
um marco na história das publicações ilustradas
(Mauad, 1999).
A partir
da década de 1940, O Cruzeiro reformulou o padrão
técnico e estético das revistas ilustradas apresentando-se
em grande formato, melhor definição gráfica,
reportagens internacionais elaboradas a partir dos contatos com
as agências de imprensa do exterior e, em termos estritamente
técnicos, a introdução da rotogravura, permitindo
uma associação mais precisa entre texto e imagem.
Toda essa modernização era patrocinada pelos Diários
Associados, empresa de Assis Chateaubriand, que passa a investir
fortemente na ampliação do mercado editorial de publicações
periódicas.
A nova
tendência inaugurada por O Cruzeiro, encetou uma reformulação
geral nas publicações já existentes obrigando-as
a modernizar a estética de sua comunicação.
Fon-Fon, Careta, Revista da Semana, periódicos tradicionais
adequaram-se ao novo padrão de representação,
que associava texto e imagem na elaboração de uma
nova forma de fotografar: o fotojornalismo.
Assumindo
o modelo internacional, sob forte influência da revista Life,
o fotojornalismo de O Cruzeiro criou uma escola que tinha
entre os seus princípios básicos a concepção
do papel do fotógrafo como 'testemunha ocular' associada
à idéia de que a imagem fotográfica podia elaborar
uma narrativa sobre os fatos. No entanto, quando os acontecimentos
não ajudavam, encenava-se a história.
O texto
escrito acompanhava a imagem como apoio, que no mais das vezes,
amplifiava o caráter ideológico da mensagem fotográfica.
Daí as reportagens serem sempre feitas por um jornalista,
responsável pelo texto escrito, e por um repórter
fotográfico, encarregado das imagens, ambos trabalhando conjuntamente.
No entanto, somente a partir dos anos 40 o crédito fotográfico
será atribuído com regularidade nas páginas
de revistas e jornais.
Uma
dupla em especial ajudou a consolidar o estilo da fotorreportagem
no Brasil: David Nasser e Jean Manzon, a primeira dupla do fotojornalismo
brasileiro, protagonistas de histórias onde encenavam a própria
história (Carvalho, 2002, Costa, 1996). Além de Manzon,
outros fotógrafos contribuíram para a consolidação
da memória fotográfica do Brasil contemporâneo,
tais como: José Medeiros, Flávio Damm, Luiz Pinto,
Eugenio Silva, Indalécio Wanderley, Erno Schneider, Alberto
Jacob, entre outros que definiram uma geração do fotojornalismo
brasileiro.
A fotorreportagem
marcou época na imprensa ilustrada respondendo à demanda
de seu tempo. Um tempo onde a cultura se internacionalizava e a
história acelerava seu ritmo no descompasso das guerras e
conflitos sociais. Em compasso com a narrativa de imagens, os acontecimentos
recuperaram a sua força de representação, a
ponto de se poder contar a história contemporânea através
dessas imagens.
No
entanto, para explicar essa história, o historiador não
pode bancar o ingênuo. Há que se tomar a imagem do
acontecimento como objeto da história, como documento/monumento,
como verdade e mentira. Indo de encontro à memória
construída sobre os eventos, porque a história a desmonta,
a desnaturaliza apontando todo o caráter de construção,
comprometimento e subjetividade.
Ana
Maria Mauad é professora adjunta do Departamento de História
da UFF e pesquisadora do Laboratório de História Oral
e Imagem da UFF.
Este texto faz parte da pesquisa "Através da imagem:
História e memória do fotojornalismo no Brasil contemporâneo"
financiada pelo CNPq, 2002-2004.
Referências bibliográficas
Carvalho,
Luiz Maklouf. Cobras Criadas, São Paulo: Editora Senac,
2ª ed., 2002.
Costa, H. "Da fotografia de imprensa ao fotojornalismo",
In: Acervo: revista do Arquivo Nacional, vol.6, n° 1-2,
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, pp. 55-74.
Costa, H. "Palco de uma história desejada: o retrato
do Brasil por Jean Manzon", In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico, Iphan, n° 27, 1996,
pp. 139-159.
Freund, Gisele. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, 1989.
Mauad, A.Mª. "Janelas que se abrem para o mundo: fotografia
de imprensa e distinção social, no Rio de Janeiro
na primeira metade do século XX", In: Estúdios
Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, vol.
10, n° 2, Tel Aviv, 1999.
Sousa, Jorge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo
ocidental. Chapecó: Grifos, Florianópolis: Letras
Contemporâneas, 2000.
Sussekind, Flora. O Brasil não é longe daqui,
SP: Companhia das Letras, 1987.
|