Memória
e linguagem
Carlos
Vogt
A memória funciona sob o paradigma de uma oposição
que poderia ser representada pelo par aqui-lá, ao
qual se articulam outras oposições, sendo a mais importante
a do par agora-ontem. Desse modo, tempo e espaço
são as variáveis fundamentais que entram em jogo na
atuação da memória, com destaque para os pares
presente-passado.
As canções de exílio presentes na tradição
de muitas culturas e que em língua portuguesa associaram-se
também à particularidade lingüística e
emocional da palavra saudade são um exemplo expressivo
da dinâmica desses conceitos e de sua sensibilização
pela recorrência do uso e pela mística da singularidade
dos sentimentos que traduzem.
Saudade, vem do latim solitate, 'soledade', 'solidão',
através das formas arcaicas soydade, suydade,
como se pode ler no Aurélio.
Desse modo, nas canções de exílio, acrescenta-se
aos pares aqui-lá, agora-ontem, por via da saudade,
a oposição solidão-companhia, tristeza-alegria,
encantamento-desilusão.
O poeta, ensaísta e crítico literário José
Paulo Paes, como já tive oportunidade de escrever aqui mesmo
na revista ComCiência dedicado ao tema Brasil: migrações
internacionais e identidade, de 10/04/2001, no melhor estilo
do sintetismo anti-discursivo das vanguardas modernistas, fez da
canção o resumo em pílula, facilitando-lhe
o instantâneo irônico e despojando-a de acessórios:
Lá?
Ah!
Sabiá...
Papá...
Maná...
Sofá...
Sinhá...
Cá?
Bah!
Mas
o próprio poeta revisita o tema no livro Prosas seguidas
de odes mínimas (Companhia das Letras, 1992) num tom
falsamente prosaico e narrativo para contar, na ciranda do tempo
a viagem do eu lírico pela mesmice da diferença e
pelo desencontro do mesmo lugar:
Canção
de Exílio
Um
dia segui viagem
sem olhar sobre o meu ombro.
Não
vi terras de passagem
não vi glórias nem escombros.
Guardei
no fundo da mala
um raminho de alecrim.
Apaguei
a luz da sala
que ainda brilhava por mim.
Fechei
a porta da rua
a chave joguei ao mar.
Andei
tanto nesta rua
que já não sei mais voltar.
Essa
topologia da memória temperada de saudade que deu suporte
psicológico, retórico, expressivo e social à
seqüência de canções de exílio que,
no Brasil, se estendem do romantismo, no século XIX, aos
dias atuais começa a conhecer uma nova axiologia com a inversão
de valores associados ao aqui-lá ou, se quiser, uma
subversão da geografia demarcada pela oposição.
Quer dizer, na "Canção do Exílio",
de Gonçalves Dias, matriz em língua portuguesa das
demais, o aqui designa a Europa e o lugar do exílio
e o lá aponta, com a saudade, para o Brasil e apronta,
com a memória, a coleção de objetos poéticos
que identificam o lá com a felicidade paradisíaca.
No Memorial de Aires, de Machado de Assis, publicado postumamente,
em 1908, apenas para lembrar a trama que serve de motivo às
anotações de despedida do Conselheiro Aires em seu
diário, os jovens Fidélia e Tristão são
como que filhos postiços do casal Aguiar. Fidélia
é viúva e aqui no Brasil, no Rio de Janeiro,
no cemitério São João Baptista, tem seu marido
Noronha sepultado. Apaixonam-se, casam-se e partem em definitivo
para Portugal, lá onde já viveram e onde, cheios
de juventude e vigor, poderão ser felizes. Ao partir deixam
aqui, para trás, não só o primeiro marido
morto e enterrado de Fidélia, mas o desconsolo sem reconforto
do casal de velhos além dos registros entre irônicos,
céticos e compreensivos do diplomata aposentado Aires:
30 de agosto
"Praia fora (esqueceu-me notar isto ontem), praia fora viemos
falando daquela orfandade às avessas em que os odores velhos
ficavam, e acrescentei, lembrando-me do marido defunto:
- Desembargador, se os mortos vão depressa, os velhos ainda
vão mais depressa que os mortos... viva a mocidade!"
Na
última anotação do Conselheiro, marcada por
um "Sem data" que poderá também ser lida
como "Data nenhuma" ou "Qualquer data", isto
é, "Toda data" lê-se:
"Há seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo.
Agora à tarde lembrou-me lá passar antes de vir para
casa. Fui a pé; achei aberta a porta do jardim, entrei e
parei logo.
'Lá estão eles', disse comigo.
Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos
sentados, olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal
direito, com as mãos sobre os joelhos. D. Carmo, à
direita, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei
entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns
segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor
a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão
a que não acho nome certo ou claro; digo o que me parecem.
Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade
de si mesmos". (Machado de Assis, Obra completa, vol.
I, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994, p. 1200)
Desse modo, ao par aqui-lá, associa-se também
a oposição morte-vida e todos os seus correlatos,
devidamente ordenados em cada um dos eixos que cada termo estabelece,
em oposição.
O tema da falta ou da ausência de si mesmo já aparecera
em outro romance memorialista de Machado de Assis - Dom Casmurro,
publicado em 1899 - , sem falar de Memórias póstumas
de Brás Cubas, publicado em livro em 1881, em que, estando
o narrador já morto, suas memórias têm a justa
pretensão de se apresentarem isentas das aflições
da vida.
Voltando à Dom Casmurro, nas explicações
ao leitor que dá o narrador Casmurro, que já fora
Bentinho, do título do livro e depois do próprio livro
lê-se a tecitura voluntária da memória perfazendo,
na intenção confessa do narrador-personagem, a trajetória
da oposição topológica do aqui/presente
- lá/passado, com todas as variantes de conotação
a ela associadas:
"O
meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na
velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui
recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual,
a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros,
vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde;
mas falta eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está
é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe
na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo,
como se diz nas autópsias; o interno não agüenta
tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia
enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não
a mim".
(Obra completa, vol. I, p. 810)
No
mesmo romance, em seu capítulo LIX, chamado pelo autor "Convivas
de boa memória", o narrador, ao mesmo tempo em que tece
considerações sobre a memória - a sua e a de
convivas (daí o título) - concita o leitor a preencher
as lacunas do livro que lê - no caso este das lembranças
refletidas de Casmurro/Bentinho - com tudo aquilo que não
lê, mas que por não estar na literatura do que é
lido faz-se presente pelo que é imaginado, vivido e vivenciado
pelo leitor.
É como se, quase um século antes, ouvíssemos,
lendo, a voz prazerosa de Roland Barthes enriquecendo o estruturalismo
em seus jogos de presença/ausência a encantar os signos
com a fantástica simbologia dos atos de significação
da linguagem:
"Nada
se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode manter nos livros
omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me
aflijo nunca. O que faço em chegando ao fim, é cerrar
o olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas
idéias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas
folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas,
as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das
espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas
que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo.
Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher
as minhas".
(Machado de Assis, Obra completa, Vol. I, pp. 870-871)
Aqui
aparece um dos traços fundamentais da memória.
De fato, desde Platão e Aristóteles, foram considerados
como constitutivos da memória, dois diferentes momentos:
aquele que Platão chamou de "conservação
de sensações", caracterizado pela conservação
de conhecimentos passados e aquele chamado de "reminiscência"
que consiste na possibilidade de evocar esse conhecimento passado
e atualizá-lo, tornando-o presente. Trata-se, no primeiro
caso da memória retentiva e, no segundo, da memória
como recordação.
A indagar sobre o papel da memória na representação
- e aqui vamos nos aproximando do texto de Machado de Assis acima
transcrito - Aristóteles dirá que a permanência
em nós de algo semelhante a uma marca ou a uma pintura que
noz faz lembrar o que não está presente e não
só a presença da própria marca é como
um animal pintado num quadro que é ao mesmo tempo animal
e imagem, mesmo que o ser dessas coisas, como é o caso, não
seja o mesmo. Da mesma maneira, a imagem marcada em nós tanto
é um objeto em si como é também representação
de alguma outra coisa que não tem nenhuma relação
intrínseca necessariamente motivada com o objeto que a representa.
Desse modo sobressai o papel que a memória tem no complexo
processo da representação, tanto do ponto de vista
literário, tal como aparece no capítulo LIX de Dom
Casmurro, como de ponto de vista da linguagem humana, em geral,
e nos seus mecanismos semânticos de produção
de significados.
Nesse caso, é pela memória que se automatizam as regras
e as convenções que permitem o amplo e intrincado
fenômeno da significação no uso das línguas
naturais pela associação de sinais físicos
- sonoros ou gráficos - a significados de coisas, estados
e processos no mundo. A semantização da linguagem
dá-se por este jogo de claro-escuro, de presença-ausência,
de presente-passado, de aqui-lá que constitui,
nesse sentido, não apenas o paradigma de oposições
que estrutura a memória mas que, na verdade, é por
ela estruturado como condição essencial do ato de
dizer e de significar, tanto nas suas explicitudes como nos implícitos
próprios do não dito e nos infinitos jogos de preenchimento
de lacunas - para os quais convida o texto de Machado de Assis -
que entretecem os diálogos e as interlocuções
de que se faz o uso efetivo da linguagem humana.
No caso do uso literário, propriamente dito, dessa faculdade
de representação que a memória estrutura e
escande que se lembre, como adendo ao sugestivo texto de Machado
de Assis e à reflexão sabiamente irônica de
Dom Casmurro, narrador-personagem de suas presenças e ausências
no mundo, o conhecido poema de Fernando Pessoa sobre o ato de ler
o escrito e de escrever o lido, reescrevendo-os todos pela leitura,
dentro e fora dela, pela memória:
O
poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
E
os que lêem o que escreve
na dor lida sentem bem
não as duas que ela teve
mas só a que eles não têm.
E
assim nas calhas de roda
gira a entreter a razão
este comboio de cordas
que se chama coração.
|