A
memória
Daniela
Martí Barros
Existem
certas experiências que vivenciamos, as quais não esquecemos.
Por exemplo, uma visita às Cataratas do Iguaçu. A
exuberância da natureza combinada com a abundância e
a fúria das águas, sem falar que o ambiente mais parece
uma "Torre de Babel", tal é a diversidade de línguas...
inglês, espanhol, japonês, russo, português...
Cada uma daquelas pessoas guardará aquelas imagens de forma
particular, pois a memória mescla experiências vividas
no ambiente com as nossas vivências interiores. Assim somos
seres "únicos" porque aprendemos e lembramos das
nossas experiências. O conjunto de memórias de cada
um determina aquilo que se denomina personalidade ou forma de ser.
Poderíamos
nos perguntar, mas afinal como se processa a memória? Se
fôssemos defini-la de uma forma simples poderíamos
dizer que memória é a aquisição, o armazenamento
e a evocação de informações. A aquisição
é também denominada de aprendizado. A evocação
é também chamada recordação, lembrança,
recuperação.
A memória
de trabalho, também chamada de memória operacional,
é a interface entre a percepção da realidade
pelos sentidos e a formação ou evocação
de memórias. Para exemplificar a memória de trabalho
poderíamos dizer que é a memória de um número
telefônico que alguém nos diz e esquecemos logo depois
de discar. A memória de trabalho não forma arquivos
duradouros, nem deixa traços bioquímicos. É
funcionalmente distinta dos outros tipos de memória, as quais
formam arquivos por meio de uma seqüência de eventos
bioquímicos.
Costumamos
classificar as memórias, em relação ao seu
conteúdo, em dois grandes grupos: as memórias declarativas
(aquelas para fatos ou eventos e qualquer informação
que possa ser expressa conscientemente) e as memórias procedurais,
as quais envolvem basicamente habilidades motoras e/ou sensoriais,
também chamadas de hábitos. O processamento das memórias
declarativas envolve o hipocampo, córtex entorrinal, além
de outras estruturas corticais. Entre as memórias declarativas,
aquelas que são mais "carregadas" emocionalmente
(aversivas, emocionais) são fortemente moduladas pela amígdala
(conjunto de núcleos nervosos situados nos lobos temporais).
As memórias declarativas sofrem influência do estresse,
do humor e da motivação. As memórias procedurais
ou implícitas são adquiridas gradativamente e, além
disso, evocadas de modo inconsciente. Para exemplicar melhor: as
memórias procedurais são as nossas habilidades de
montar quebra-cabeças, andar de bicicleta, nadar. As memórias
de procedimentos ou implícitas sofrem pouca modulação
pelas emoções e estados de ânimo.
Fonte:
Neurociências (Bears, Connors e Paradiso, 2002, append cap
7)
Fonte:
Neurociências (Bears, Connors e Paradiso, 2002, fig. 5.2)
Do
ponto de vista de duração, as memórias classificam-se
em curta duração, a qual dura de alguns minutos a
poucas horas, e a memória de longa duração
que permanece dias, semanas e anos. Ambas possuem alterações
(traços) bioquímicos. As memórias de curta
e de longa duração são processos separados,
mas interdependentes.
A memória
é uma função do sistema nervoso. Os neurônios
(células nervosas) emitem prolongamentos aos quais chamamos
de axônios, que enviam informações através
da liberação de substâncias, e dendritos que
recebem as substâncias liberadas pelas terminações
dos axônios. As substâncias liberadas pelos axônios
são chamadas de neurotransmissores. Os neurotransmissores
ao serem liberados em uma pequena fenda entre os neurônios,
denominada sinapse, ligam-se em proteínas da superfície
celular, denominadas receptores. O glutamato é o principal
neurotransmissor excitatório (o qual apresenta um papel fundamental
na memória), enquanto o ácido gama amino butírico
(GABA) é o principal neurotransmissor inibitório.
Existem muitos outros aos quais chamamos de neuromoduladores: a
serotonina, a dopamina, a acetilcolina, a noradrenalina. Esses neuromoduladores
modulam a memória e estão diretamente relacionados
com o processamento das emoções, com o nível
de alerta e estados de ânimo. Todos sabemos como é
fácil aprender ou evocar algo quando estamos atentos e de
bom humor, ao contrário, o quanto nos custa aprender qualquer
coisa ou até lembrar coisas simples quando estamos cansados,
deprimidos ou muito estressados. Todo esse processo é regulado
por sinapses noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotonérgicas.
Além
dos moduladores citados acima, a consolidação (armazenamento)
da memória de longa duração sofre influência
dos "hormônios do estresse", ß- endorfina,
adrenocorticotropina (ACTH), os corticóides, adrenalina,
noradrenalina e vasopressina circulantes. Todos esses hormônios
atuam através do núcleo basolateral da amígdala
(responsável pela mediação de memórias
emocionais). Com excecção da ß- endorfina, que
inibe a consolidação da memória em qualquer
dose, os demais "hormônios do estresse" melhoram
a consolidação em níveis moderados e a inibem
em doses ou concentrações elevadas. Isso explica o
que chamamos de "branco" quando estamos excessivamente
estressados.
Nos
últimos 15 anos houve um grande avanço nas neurociências,
especialmente em relação aos mecanismos fisiológicos
e moleculares da formação, consolidação
e evocação da memória. No entanto, desde o
final do século XIX que Ramon y Cajal (1893), postulou corretamente
que as memórias consistem na modificação na
forma e na função das sinapses envolvidas na formação
dessas memórias. Este processo de modificação
sináptica chamamos de plasticidade neuronal. Cada experiência
vivenciada estimula o processo de plasticidade neuronal em diferentes
espécies, que vão desde invertebrados aos humanos.
Estudos
com mamíferos de laboratório, utilizando-se a tarefa
de esquiva inibitória como ferramenta para formação
da memória, nos permitem uma maior compreensão sobre
os mecanismos neurais envolvidos na formação, armazenamento
e evocação da memória.
A tarefa
de esquiva inibitória baseia-se no aprendizado associativo,
estabelecido por Ivan Pavlov, fisiologista russo, no início
do século XX. Pavlov estabeleceu que nos aprendizados associativos,
se um estímulo novo é pareado com outro "biologicamente
significante" (doloroso ou prazeroso) o qual produz uma resposta
(fuga ou salivação, por exemplo), a resposta ao primeiro
muda, condicionada ao pareamento.
O implante
de cânulas em regiões específicas, como hipocampo,
córtex entorrinal, núcleo basolateral da amígdala,
entre outras, nos possibilita infundir agonistas (drogas que ativam
receptores) e antagonistas (drogas que se ligam aos receptores sem
produzir efeitos) permitindo desvendar os mecanismos da memória.
Em síntese, o que acontece quando realizamos uma experiência?
Um neurotransmissor (glutamato), contido em vesículas dentro
da parte terminal de um axônio, é liberado na fenda
sináptica, atingindo receptores na superfície do dendrito.
Em muitos casos, essa interação ativa "segundos
mensageiros", que intermedeiam a ligação do neurotransmissor
com o efeito final (o íon cálcio ou o cAMP), ativando
enzimas que estimulam a síntese de mRNA, e determinam a produção
de certas proteínas, as quais podem ser proteínas
de adesão celular, receptores que modificam a estrutura e
a função das sinapses. Este processo é chamado
de plasticidade neuronal. Apresentado de uma maneira simples este
é o mecanismo pelo qual a memória de longa duração
é consolidada. Todo esse processo requer de 2-6 horas, por
isso salientamos que a memória de longa duração
não é adquirida imediatamente na sua forma final,
sendo extremamente lábil nas primeiras horas depois de adquirida.
Embora
possamos armazenar tantas experiências quanto possível,
podemos dizer que tão importante quanto o armazenamento de
informações é o seu esquecimento. O fenômeno
do esquecimento é fisiológico e desempenha um papel
adaptativo. Imagine só se fôssemos capazes de "guardar"
tudo aquilo que vivenciamos com uma riqueza de detalhes, seria praticamente
impossível, pois levaríamos boa parte do nosso tempo
recordando cada detalhe vivenciado. No entanto, quando o esquecimento
é patológico, e prejudica de maneira irreversível
a vida cognitiva do indivíduo, estamos diante de um quadro
de doença neurodegenerativa. A mais comum delas é
a doença de Alzheimer. Na sua fase inicial o indivíduo
esquece fatos mais recentes. À medida que a doença
evolui, a memória remota do paciente é afetada, culminando
com o não reconhecimento dos parentes e pessoas mais próximas,
perda das habilidades e por fim da sua própria identidade.
A doença de Alzheimer é causada pela hipersecreção
de uma proteína chamada substância ß amilóide,
pelas células afetadas. Esta proteína é produzida
normalmente pelas células nervosas, porém, na doença
de Alzheimer, esse processo ocorre de forma exagerada. Ainda, a
formação de emaranhados neurofibrilares causa a morte
celular. Essas lesões ocorrem inicialmente no córtex
entorrinal e, a seguir, no hipocampo. A utilização
de fármacos para o tratamento da doença de Alzheimer,
bem como de outras demências, até o momento, são
pouco específicos e eficazes. Porém, está bastante
claro que o exercício contínuo da memória em
suas diversas formas pode prevenir ou ao menos retardar o aparecimento
das demências e da doença de Alzheimer.
Diferente
das memórias esquecidas são as memórias extintas.
Estas permanecem latentes e não são evocadas, a menos
que ocorra uma circunstância especial como a apresentação,
de uma forma muito precisa, do estímulo (da situação)
utilizado para adquiri-las e/ou com uma intensidade muito aumentada,
uma "dica" muito apropriada. As memórias extintas
podem ser evocadas, as memórias esquecidas não. A
extinção se produz no hipocampo e na amígdala
basolateral e requer expressão gênica, síntese
de proteínas e vários outros processos bioquímicos
e tem uma clara aplicação terapêutica no tratamento
de fobias: síndrome do pânico, ansiedade generalizada
e, sobretudo, estresse pós-traumático. Assim, se um
paciente for exposto a uma versão amenizada da situação
que lhe causou a fobia ou o trauma, acompanhado de psicoterapia
apropriada, pode levar a eventual extinção da memória
dessa situação.
Mesmo
que nos últimos 15 anos o estudo dos processos cognitivos
tenha apresentado avanços marcantes, muito nos cabe pesquisar
para desvendar os "mistérios" que envolvem o "entendimento"
da memória.
Daniela
Martí Barros (dani "arroba" octopus "ponto"
furg "ponto" br) é professora de farmacologia do
Departamento de Ciências Fisiológicas da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande - FURG -RS.
Referências
Bibliográficas
Izquierdo,
I. Memória. Porto Alegre, ArtMed Editora AS, 2002.
MTT,
Wong-Riley Segredos em Neurociências. ArtMed, Porto
Alegre, 2003.
Izquierdo,
I e McGaugh, JL. Behavioural pharmacology and its contribution to
the molecular basis of memory consolidation. Behavioural Pharmacology,
517-534. 2000.
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