Memória
e contemporaneidade: as tecnologias da informação
como construção histórica
Raimundo
Donato do Prado Ribeiro
Vivemos
a emergência da velocidade e do excesso de informações
em nossa contemporaneidade, cremos que a premissa dessa emergência
é indiscutível em nosso cotidiano. Eventualmente encontramos
um discurso falacioso que atribui às tecnologias da informação
uma responsabilidade pela frieza, pelo distanciamento e pela velocidade
que impõem um ritmo que distancia os indivíduos de
um convívio social mais amplo e rotineiro.
Podemos
considerar que as conseqüências do uso das novas tecnologias
da informação têm propiciado, junto às
ciências humanas, questionamentos de que essas tecnologias
estariam forjando a emergência de uma nova concepção
dos lugares de memória, propiciada pela digitalização
de dados e imagens, e também pela suposta capacidade infinita
de armazenamento de dados.
A tensão
posta entre as ciências humanas e as novas tecnologias da
informação engendra várias possibilidades de
investigação, uma vez que, há de se reconhecer,
as novas tecnologias da informação causam um grande
impacto ao provocar as acuidades dos sentidos. Assim, mais do que
qualquer outra tecnologia em qualquer outra época, a da informação,
acrescida da velocidade sem igual, altera, além da percepção
do tempo e do espaço, também o imaginário de
uma sociedade, acenando para a possibilidade de uma realidade virtual.
Depreende-se
dessa afirmação que as novas tecnologias da informação
estão forjando, frente à cultura histórica
e aos lugares de memória, novas concepções
ou novos sentidos para algumas categorias das ciências humanas,
tais como: indivíduo, sociedade, as habilidades de leitura
e de escrita e as de memória. O termo "cultura histórica",
aqui utilizado, parte da conceituação do historiador
Jacques Le Goff. O sentido desse termo é muito específico
e não visa sobrepor a história às demais áreas
de conhecimento que lidam com a cultura. O termo se estabelece numa
busca pela nomeação de tudo aquilo que, nas sociedades,
constitui ou produz práticas e ou discursos que se combinam
no estabelecimento da relação de uma historicidade
com o passado. Ou seja, o próprio sentido da história
nas sociedades é uma construção respondendo
a uma cultura, esta que também é constituída
historicamente.
Construída
historicamente, a nossa contemporaneidade tem no tempo e no espaço
uma redefinição daquela erigida no decorrer das sociedades
industriais. Redefinição esta que se coloca na própria
inteligibilidade do sentido do tempo e do espaço, que há
muito deixou de significar os limites postos pelas fronteiras de
um bairro, de uma cidade ou de um país.
Em
qualquer tempo, a memória é evocação
do passado, o tempo que ficou perdido e não voltará
mais. A lembrança e o esquecimento são componentes
da memória, um não existe sem o outro, no processo
de atualização do passado, quando evocado. É
a memória que nos dá a sensação de pertencimento
e existência, daí a importância dos lugares de
memória para as sociedades humanas e para o indivíduo.
Essas
imagens diferem das apresentadas pelas novas tecnologias da informação
na nossa contemporaneidade, no que diz respeito à memória.
Nestas, o acesso à memória da máquina é
feito de maneira aleatória, seu acesso independe de seqüência
e ordem. Os dados informacionais são peças dispostas
de modo a permitir diferentes combinações de informações
as quais, ao mesmo tempo, podem vir a homogeneizar essas informações.
Reconhecemos
que a memória é sempre seletiva, o que não
é diferente com a memória informacional; mas a questão
aqui é que a memória dos grupos e dos indivíduos
é marcada pela heterogeneidade e diversificação
nas seleções, mediadas pelas mais diferentes naturezas,
enquanto que, com a possibilidade oferecida pelas novas tecnologias,
ela poderia tornar-se una, a partir da seleção daqueles
que controlariam as tecnologias de recepção e distribuição
de informações.
As
tecnologias da informação quase sempre são
apresentadas no âmbito de um museu de grandes novidades,
com os últimos lançamentos tecnológicos, quando
reconhecemos que, para além das inovações tecnológicas,
essas tecnologias estão proporcionando novos questionamentos
e construindo novos objetos e novos problemas também para
as ciências humanas. Isso significaria, em certa medida, reconhecer
a instituição da informática - não apenas
como tecnologia, mas como linguagem e, como tal, oferecer-nos-ia
uma memória informacional automatizada, como aquela capaz
de acumular, homogeneizar e traduzir a memória social. Introduzindo
mudanças nos mais diferentes campos de atuação,
percepção e construção da memória
do homem contemporâneo, a informática poderia construir
um novo sentido para a individualidade, ou destituí-la.
A memória
informacional oferece um modelo extremamente homogeneizador, aparentemente
satisfatório e competente; daí a importância
das chamadas memórias subterrâneas na nossa contemporaneidade
e dos defensores dos códigos livres na rede com seus trabalhos
de subversão e de resistência a uma perspectiva política
que aposta numa sociedade "globalizadora", que justifica
a "evolução", o "progresso" a
qualquer custo e tenta impor uma idéia apaziguadora, neutra
e objetiva de ciência e tecnologia.
Confrontamo-nos
assim com a tensão cultura/história - tecnologia da
informação, já que impõe-se uma nova
possibilidade de memória que não é aquela calcada
na tradição dos documentos e da oralidade, como também
na da seleção e do esquecimento; mas sim, a que oferece
pela rede a capacidade da democratização das informações
e de realização plena de um novo humanismo através
das novas tecnologias da informação, da velocidade
eficiente e dos bytes.
Ao
reconhecermos que as novas tecnologias da informação
inserem-se dentro de uma história e de uma cultura, reconhecemos
que elas incorporam e/ou traduzem todas as grandes tensões
postas, pelo princípio fundante da velocidade, nas relações
de poder do cotidiano. São relações que tensionam
novas percepções sensoriais do espaço, do tempo,
das imagens e que concomitantemente possibilitam também tensões
nos mais diferentes campos de atuação, percepção
e construção da memória e dos lugares de memória,
em última palavra, nas dimensões da "cultura
histórica".
Compreendemos
que as novas tecnologias da informação estão
alterando as relações da nossa contemporaneidade com
a cultura histórica, mas esse reconhecimento mais do que
encerrar o inevitável, recoloca justamente outros movimentos
em nossa contemporaneidade, que podem ser lidos, ainda que com equívocos,
modalidades de resistência e debates, que se presentificam
nas práticas discursivas presentes nos embates acadêmicos,
nos movimentos sociais, nas propostas de musealização
e mesmo nas falas que atribuem ao nosso tempo a alcunha de "sociedade
do esquecimento", dentre outras. São expressões
que trazem em seus interiores paradoxos inerentes a todo campo discursivo
em disputa.
Disputas
que nos instigam e nos dão a sensação de não-pertencimento,
com olhares-caleidoscópio, procurando lugares de memória
que fazem sentido para a nossa contemporaneidade. Oscilamos pelo
temor entre soltar ou manter Prometeu acorrentado e, diante desse
dilema, jogamos para o passado uma nostalgia de um mundo que era
diferente, idealizado numa calmaria e numa docilidade nas relações;
quando não, criamos projetos de futuro, utopias da plena
realização, cujo recurso seria o desenvolvimento das
novas tecnologias, desdobrando-se em variados mundos.
O esquecimento
é algo inerente e constante nas mais diferentes culturas.
Ele ocorre por diferentes questões: mediações
entre os grupos, lutas e disputas. Às vezes o esquecimento
pode ser necessário para a reconciliação e
o perdão, quer para os indivíduos, quer para as comunidades
recuperarem suas vidas. A capacidade ilimitada de armazenamento
de registros, longe de significar a plena realização
da memória dos grupos sociais ignora a memória destes
grupos e indivíduos, uma vez que intenciona uma outra concepção
de memória, qual seja, exclusivamente compreendida como registros,
contrapondo-se à dos indivíduos e grupos que pressupõe
lembranças e esquecimentos.
São
essas várias facetas que compõem os conflitos que
regem a cultura histórica em nossa contemporaneidade. As
novas tecnologias da informação e a cultura histórica,
em nossa contemporaneidade, não estão divorciadas
nas suas relações, mas sim aproximam-se e fazem história
e cultura.
Vislumbramos
em nossa contemporaneidade, com um temor muito grande, o futuro,
diante das incertezas do passado; porém, o inferno ou o céu
não estão no futuro. Para Calvino, num determinado
momento da obra As cidades invisíveis, ao tratar da
possibilidade da existência do inferno, argumenta que o inferno
não é algo que será, mas se existe, é
este que vivemos todos os dias. E diante dessa condição
que nos aproxima do inferno das incertezas do nosso cotidiano, para
ele só existiriam duas alternativas: a primeira, confundir-se
com o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar
de percebê-lo. E a segunda alternativa, que Calvino considera
arriscada e que demanda atenção e aprendizagem contínuas,
pois exige tentativas de saber reconhecer quem e o que, no meio
do inferno, não é inferno, preservá-lo e abrir
espaço.
A presença
das novas tecnologias da informação não implica
num mundo inteiramente novo. Pensamos um futuro que irá conviver
e coexistir com temporalidades e historicidades distintas. Vestígios
do passado sempre estão presentes - nos artefatos culturais,
nos recônditos das memórias, na presença de
lugares da memória, na necessidade das sociedades em produzirem
vínculos com o passado, criando formas de relação
e diálogo com esse tempo dos ancestrais; em outras palavras,
com a cultura histórica. A coexistência ou suplantação
de formas de se relacionar com a cultura histórica é
uma evidência em qualquer tempo, a questão é
a de mantermo-nos como intérpretes do mundo e do tempo em
que vivemos.
Raimundo
Donato do Prado Ribeiro é doutor em Ciências Sociais
- Antropologia, pela PUC-SP e coordenador do curso de História
da Universidade Metodista de Piracicaba.
Este
artigo foi produzido tendo por referência o trabalho de Ribeiro,
Raimundo Donato do Prado. Cultura História e as Novas
Tecnologias da Informação. Tese de Doutorado.
Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais
- Antropologia da PUC-SP, São Paulo, 2001.
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