Memória,
história, testemunho
Jeanne
Marie Gagnebin
Gostaria
de tentar pensar nas questões da memória e da história
a partir de alguns conceitos emprestados à filosofia de Walter
Benjamin. O pensamento de Benjamin se ateve a questões que
ele não resolveu e que ainda são nossas, sendo que
uma delas poderia ser definida como o fim da memória e da
narração tradicionais. Ela se coloca com força
em toda literatura moderna e contemporânea, na reflexão
filosófica atual - chamada ou não de "pós-moderna"
- sobre o "fim das grandes narrativas", nas discussões
históricas e historiográficas de hoje. Esta discussão
também sustenta as narrativas nas quais a memória
traumática, apesar de tudo, tenta se dizer, narrativas e
literatura de testemunho que se tornaram um gênero tristemente
recorrente do século XX, em particular (mas não só)
no contexto da Shoah.
Especialmente
dois ensaios de Benjamin tratam deste tema: Experiência
e pobreza, de 1933 e O narrador, escrito entre 1928 e
1935. Eles iniciam com descrições semelhantes para
chegar a conclusões que podem parecer opostas, contraditórias
até. É a presença desta oposição
que nos assinala, justamente, a gravidade da questão colocada.
Ambos
ensaios partem daquilo que Benjamin chama de perda ou de declínio
da experiência (Verfall der Erfahrung), isto é,
da experiência no sentido forte e substancial do termo, que
repousa sobre a possibilidade de uma tradição
compartilhada por uma comunidade humana, tradição
retomada e transformada, em cada geração, na continuidade
de uma palavra transmitida de pai para filho. A importância
desta tradição no sentido concreto de transmissão
e de transmissibilidade é ressaltada, em ambos ensaios, pela
lenda muito antiga do velho vinhateiro que, no seu leito de morte,
confia a seus filhos que um tesouro está escondido no solo
do vinhedo. Os filhos cavam, mas não encontram nada. Em compensação,
quando chega o outono, suas vindimas se tornam as mais abundantes
da região. Os filhos então reconhecem que o pai não
lhes legou nenhum tesouro, mas sim uma preciosa experiência,
e que sua riqueza lhes advém desta experiência.
Pode-se,
naturalmente, interpretar esta fábula como a ilustração
da nobreza do trabalho e do esforço. Benjamin não
a usa nestes fins moralizantes. Não é o conteúdo
da mensagem paterna que importa; aliás, o pai promete um
tesouro inexistente e prega uma peça a seus filhos para convencê-los.
O que importa é que o pai fala do seu leito de morte e que
ele é ouvido, que os filhos respondem a uma palavra transmitida
neste limiar, que eles reconhecem, em seus atos, que algo passa
de geração para geração, algo maior
que as pequenas experiências individuais particulares (Erlebnisse),
algo maior que a simples existência individual do pai, um
pobre vinhateiro, algo, porém, que é transmitido por
ele, algo, portanto, que transcende a vida e a morte particulares,
mas nelas se diz, algo que pertence a uma memória viva. Benjamin
não nomeia esta dimensão e esta omissão também
é o signo de um grande pudor. Ele insiste, aliás,
muito mais na perda da experiência que a fábula
encenava. Esta perda acarreta um outro desaparecimento, o das formas
tradicionais de narrativa, de narração, que têm
sua fonte nesta memória comum e nesta transmissibilidade.
As razões desta desaparição provêm de
fatores históricos que, segundo Benjamin, culminaram com
as atrocidades da Grande Guerra - hoje, sabemos que a Primeira Guerra
somente foi o começo deste processo. Os sobreviventes que
voltaram das trincheiras, observa Benjamin, voltaram mudos. Por
quê? Porque aquilo que vivenciaram não podia mais ser
assimilado por palavras.
Neste
diagnóstico, Benjamin reúne reflexões oriundas
de duas proveniências: uma reflexão sobre o desenvolvimento
das forças produtivas e da técnica, em particular
sua aceleração ao serviço da organização
capitalista da sociedade, e uma reflexão convergente
sobre a memória traumática, sobre a experiência
do choque (conceito-chave das análises benjaminianas da lírica
de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade para a linguagem
e para a memória de assimilar o choque, o trauma diz
Freud na mesma época, porque este, por definição,
fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em
particular à linguagem. É justamente esta impossibilidade
de uma resposta simbólica clássica que pode nos ajudar
a compreender por que Benjamin desenvolve conseqüências
tão diferentes nos dois textos em questão, apesar
da identidade do ponto de partida, a constatação da
perda da experiência e da narração tradicional.
No
curto texto Experiência e pobreza, Benjamin insiste
nas mutações que a pobreza, justamente, de experiência,
acarreta para as artes contemporâneas. Não se trata
mais de ajudar, reconfortar ou consolar os homens pela edificação
de uma beleza ilusória. Contra uma estética da harmomonia
e do belo, Benjamin defende as provocações das vanguardas.
Neste contexto cita o famoso poema de Brecht : "Apague os rastros".
Cito as duas últimas estrofes deste poema:
O
que você disser, não diga duas vezes.
Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o.
Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou
retrato
Quem não estava presente, quem nada falou
Como poderão apanhá-lo?
Apague os rastros! Cuide, quando pensar em morrer Para que não
haja sepultura revelando onde jaz
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
E o ano de sua morte a lhe entregar
Mais uma vez:
Apague os rastros!
(Assim me foi ensinado.)
A última
estrofe, em particular, adquire um peso essencial quando a lemos
como um contraponto cruel à fábula do vinhateiro no
seu leito de morte. E também quando lembramos que o primeiro
sentido da palavra grega "sèma" é,
justamente, o de túmulo, de sepultura, deste
signo ou deste rastro que os homens inscrevem em memória
dos mortos, estes mortos que poeta e historiador, nas palavras de
Heródoto, não podem "deixar cair no esquecimento".
É
desta tarefa que trata o segundo ensaio de Benjamin, O narrador.
Ele formula uma outra exigência; constata igualmente o fim
da narração tradicional, mas também esboça
como que a idéia de uma outra narração, uma
narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão
entre os cacos de uma tradição em migalhas, portanto
uma renovação da problemática da memória.
Podemos reter da figura do narrador um aspecto muito humilde, muito
menos triunfante. Ele é, diz Benjamin, a figura secularizada
do Justo, esta figura da mística judaica cuja característica
mais marcante é o anonimato; o mundo repousa sobre os sete
Justos, mas não sabemos quem são eles, talvez eles
mesmos o ignorem. O narrador também seria a figura do trapeiro,
do Lumpensammler ou do chiffonnier (figura de Baudelaire),
do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades
modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela
pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não
deixar nada se perder, de não deixar nada ser esquecido.
Este
narrador sucateiro (o historiador também é um Lumpensammler)
não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais
apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não
tem significação, algo que parece não ter nem
importância nem sentido, algo com que a história oficial
não sabe o que fazer. O que são esses elementos de
sobra do discurso histórico? Em primeiro lugar o sofrimento,
o sofrimento indizível que a Segunda Guerra devia levar ao
seu cume na crueldade dos campos de concentração (que
Benjamin, aliás, não conheceu graças ao seu
suicídio). Em segundo lugar, aquilo que não tem nome,
aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que
não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado
que mesmo a memória de sua existência não subsiste,
aqueles que desapareceram por tão completo que ninguém
se lembra de seu nome. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam
transmitir o que a tradição, oficial ou dominante,
justamente não recorda. Esta tarefa paradoxal consiste, então,
na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao
passado e aos mortos mesmo - principalmente - quando não
conhecemos nem seu nome nem seu sentido.
Gostaria,
então, de contar uma terceira história de transmissão
e de morte, de memória e de esquecimento. Começamos
pela fábula do vinhateiro que falava aos seus filhos do leito
de morte. Opusemos-lhe o poema de Brecht Apague os rastros.
A última figura de narração que gostaria de
citar é a do sonho de Primo Levi no campo de Auschwitz, sonho
sonhado, descobre ele, por quase todos seus companheiros cada noite.
Sonha com a volta para casa, com a felicidade intensa de contar
aos seus próximos o horror vivido e passado e, de repente,
com a consciência desesperada de que ninguém o escuta,
de que os ouvintes levantam e vão embora, indiferentes. Primo
Levi pergunta: "Por que o sofrimento de cada dia se traduz,
constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração
que os outros não escutam?" Esta narrativa foi feita,
está sendo feita, mas, como o ressaltam todos sobreviventes,
por exemplo Primo Levi e Robert Antelme, ela nunca consegue realmente
dizer a experiência inenarrável do horror. No sonho
de Primo Levi quem poderia ajudar a manter a memória desta
experiência indizível e dos mortos anônimos deveriam
ser os ouvintes que, em vez disso e para o desespero do sonhador,
vão embora, não querem saber, não querem permitir
que esta história, ofegante e sempre ameaçada por
sua própria impossibilidade, os alcance, ameace também
sua linguagem ainda tranqüila; mas somente assim poderia
esta história ser retomada e transmitida em palavras diferentes.
Neste sentido, uma ampliação do conceito de testemunha
se torna necessária; testemunha não seria somente
aquele que viu com seus próprios olhos, o "histor"
de Heródoto, o testemunha direto. Testemunha também
seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezam
a história do outro: não por culpabilidade ou por
compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não
repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história,
a inventar o presente.
Jeanne
Marie Gagnebin é professora de filosofia na Pontifícia
Universidade Católica PUC/SP e na Unicamp.
Este
artigo é a versão resumida de um texto com o mesmo
título, publicado na coletânea Memória e
(res)sentimento. Indagações sobre uma questão
sensível, orgs. Stella Bresciani e Márcia Naxara,
Ed. Unicamp, 2001, resenhado
nesta edição da ComCiência
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