Escolas
recuperam memória de comunidade
"Sabe,
a gente não tinha essa pressa toda não. Não
tinha relógio para marcar o tempo", garantiu Astrogilda
Conceição, 78 anos, em seu depoimento para o livro
Os caiçaras contam, organizado pelo pesquisador Marco
Frenette.
Em
um mundo em que os dias e anos passam com grande velocidade, surgem
vários projetos e pessoas dedicadas a resgatar idéias
e sentimentos que pareciam esquecidos e sem valor. Esses resgates
têm sido feitos por meio da recuperação e registro
das memórias das pessoas, a partir dos depoimentos delas.
Memórias que não são apenas um retorno a um
passado imutável, mas que, ao serem narradas, lembradas e
relembradas, adquirem novos contornos que podem ajudar a repensar
o presente em que se vive e o futuro que se planeja.
Alguns
projetos de recuperação de memória de comunidades
e bairros são desenvolvidos em parceria com escolas, como
forma das crianças e adolescentes conhecerem um pouco mais
sobre a história dos locais onde vivem e, assim, se tornarem
sujeitos dessa história.
São
memórias que surgem a partir de fotografias, documentos,
cartas e, principalmente, da história das pessoas do lugar.
A recuperação da memória de comunidades, bairros
e cidades é realizada por meio da história oral, ou
seja, da história contada pelas próprias pessoas e
permite que estas pessoas apareçam como sujeitos dessa mesma
história. Nesse processo, não são mais heróis,
"autoridades" e "fatos marcantes" que fazem
a história, mas as pessoas comuns e seu cotidiano comum.
Um
desses projetos é o "Jarinu tem Memória",
desenvolvido na cidade de Jarinu (SP), iniciado em 1998, por pesquisadores
do Centro de Memória da Unicamp e professores da rede municipal
de ensino. O registro das inúmeras experiências resultantes
dessa iniciativa está no livro Memória em movimento
na formação de professores, organizado por Margareth
Park, coordenadora do projeto.
Nesse
livro, a pesquisadora afirma que a memória não é
sonho, mas sim, trabalho. "Podemos acrescentar que a experiência
de relembrar em conjunto, isto é, o ato de compartilhar a
memória, é um trabalho que constrói sólidas
pontes de relacionamento entre os indivíduos", diz ela,
para quem compartilhar memórias pode ser a base para viver
plenamente o nosso tempo e nos fazer pensar sobre nossas futuras
ações.
No
desenvolvimento do projeto "Jarinu tem memória"
cada escola elaborou seu projeto, partindo da própria escola
e suas redondezas. Segundo Park, a proposta de trabalho procurou
envolver professores, alunos e comunidade "em um processo de
construção de conhecimentos no interior e também
no exterior da escola". Fotos, quadros, histórias, cantigas,
brincadeiras e "causos" compuseram os momentos em que
a história da cidade era narrada e tecida por todos os envolvidos.
Esse envolvimento da comunidade no projeto promoveu novas formas
de relação entre a escola e os bairros. A interação
entre todos os envolvidos permitiu a construção de
uma nova forma de trabalho dos professores e de uma relação
muito mais estreita entre as pessoas da comunidade e a escola. "Os
portões da escola abrem-se", diz Park.
"Hoje
iniciamos a aula, retirando um texto do baú. Foi retirada
uma foto antiga de 1910, sobre origens. Falamos que origem é
o começo de uma história, de fazendas que se formaram
com imigrantes que vieram para o nosso país". Este trecho
foi retirado do Diário do projeto "Histórias
da nossa terra", dos alunos Ingrid, Roberto e Letícia,
outro projeto que busca, assim como o anterior, formar professores
para o trabalho com a metodologia da história oral, procurando
respeitar as peculiaridades de cada escola, cidade e professor.
(Leia sobre o projeto do Centro de Memória
da Unicamp)
O trabalho
é coordenado pela pesquisadora Sônia London, do Instituto
Museu da Pessoa (http://www.museudapessoa.net),
um museu virtual que trabalha com o registro de histórias
de vida, armazenando depoimentos, fotografias, documentos, desenhos,
gravações em áudio e vídeo sobre a história
de vida de pessoas célebres e anônimas. Desde 2001,
o projeto vem sendo desenvolvido nas séries iniciais das
escolas públicas das cidades de Ituiutaba, Uberaba e Uberlândia
(MG).
Painel
elaborado por alunos de Uberlândia
representando Folia de Reis
Para
London, os trabalhos do Museu da Pessoa partem do princípio
de que "todas as pessoas participam e fazem história".
O projeto "Histórias da nossa terra" tem por objetivo,
portanto, propiciar que a comunidade e os alunos dessas três
cidades pensem e façam a sua própria história,
constituindo um passo fundamental para a construção
da cidadania atual e futura dessas pessoas.
A metodologia
de trabalho, segundo London, envolve os professores ao longo de
todo o processo de trabalho. "Primeiro há o processo
de formação, no encontro dos pesquisadores com os
professores e coordenadores, depois, atividades diretas com as crianças,
seguidas de discussão com os professores e de planejamento
do período até o próximo encontro". Para
London, a ligação com os conteúdos curriculares
foi feita pelos próprios professores na sala de aula ao longo
do ano.
Das
atividades com alunos e professores é que surgiam os temas
da escola e da cidade que todos gostariam de pesquisar. No caso
de Uberlândia, por exemplo, os temas escolhidos foram as festas
tradicionais (como a congada e a folia de reis), o bairro do Fundinho
(bairro onde a cidade se originou) e suas praças e as mudanças
nas telecomunicações (como a chegada da televisão,
do telefone e da internet). A partir deles, o processo de pesquisa
seguiu com a discussão do roteiro do que se quer saber, levantamento
de pessoas a entrevistar, encontro dessas pessoas com os alunos
e professores dentro da escola, gravação das entrevistas
e, finalmente, a criação de textos e desenhos pelos
alunos.
O Museu
da Pessoa mantém em sua página na internet todos esses
materiais produzidos ao longo do projeto. São entrevistas,
textos, desenhos e diários dos alunos. Já em Jarinu,
foi organizada uma exposição no ginásio de
esportes da cidade como resultado do primeiro ano de trabalho. Uma
exposição que, segundo os pesquisadores, foi visitada
por 40% do total de moradores do município. Além disso,
o Centro de Memória da Unicamp organizou e mantém
um acervo fotográfico sobre a cidade de Jarinu, além
da existência de material para a construção
de uma biblioteca de jornais e revistas (hemeroteca) sobre a cidade.
Uma riqueza de materiais que reflete a riqueza do próprio
processo de construção de conhecimento.
(ES)
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