Por
uma poética das memórias literárias
Tânia
Regina Oliveira Ramos
Para
Aristóteles, a memória é uma fruição
da imagem. Fruição que, segundo ele, é ampliada
pela reflexão e leva ao acontecimento do passado como tal,
que é a recordação. Logicamente esta é
propriedade exclusiva do homem. Portanto, a matéria da
recordação é algo que deriva e implica a inteligência,
uma vez que auxilia o reconhecimento de algo que é pretérito.
E como a memória se processa na literatura? Toda a minha
reflexão, que resultou em uma tese de doutorado em literatura,
defendida na PUC, Rio de Janeiro, intitulada: Memórias,
uma oportunidade poética, parte do princípio que
a capacidade humana tem de recuperar as coisas vividas e pela potencialidade
do imaginário de verbalizar cenas e fatos. Assim, as memórias
literárias não passam só pela autoria, por
aquele que lembra, mas pelo narrador que traz para o texto um somatório
de experiências de linguagem; e estas experiências são
sempre revigoradas por possibilidades líricas.
A expressão
da temporalidade em um texto de caráter subjetivo, comprometido
com a história de quem conta, extrapola o real vivido. Aquilo
que se convencionou chamar de realidade em relação
ao passado, dificilmente pode ser definido ou isolado com precisão.
Não se pode confundir a realidade com aquilo que é
contado, pois as memórias escritas dão ao texto certas
garantias de realidade mas, ao mesmo tempo, elas se escrevem e se
constroem muito mais pelas possibilidades da invenção.
Se há uma permuta entre o real e o imaginário, há
muito mais espaço para a fantasia.
O sujeito
que lembra, nas memórias escritas, é um controlador
da autoria, da estruturação dos fatos, mas é
muito mais um manipulador da função estética,
dramática e lírica de todas as suas lembranças,
em torno do desdobramento do sujeito que viveu, agora, seu personagem.
O autor-escritor-narrador passa a ser muito mais o sujeito do verbo
das lembranças: eu me lembro, recordo bem, ou passa
a ser objeto direto ou indireto de pessoas, coisas e fatos lembrados,
pronome possessivo ou oblíquo. Ilustro estas minhas afirmações:
"Lembro-me da pena de pato com que meu avô escrevia"
(José Américo de Almeida, in: Antes que me esqueça);
"Hoje, passados tantos anos, eu o recordo com carinho e com
saudade. Saudade do meu gato que, aliás, não era propriamente
meu, mas sim de minha família. E seria ele, realmente, da
família?" (Zélia Gattai, in: Anarquistas,
graças a Deus); "Minha mãe lia devagar"
(Graciliano Ramos, in: Infância) e "Educam-me
na religião católica" (Murilo Mendes, in: A
Idade do serrote).
Esta
subjetividade desdobrada através de outros sujeitos nas histórias
lembradas é a garantia da coerência interna do texto.
O fato de ser a primeira pessoa a estruturar a narrativa, através
de verbos rememorativos, garante o presente narrativo, estruturador
e selecionador das lembranças, no que se pode chamar de tutela
histórica. Por outro lado, as memórias, enquanto gênero
literário, aproximam-se do romance. Cada texto inaugura traços
novos e específicos de acordo com o material que o discurso
narrativo oferece. As memórias sempre trabalham esteticamente
com as lembranças de um sujeito que é exclusivo. Cada
texto pode ter uma estrutura temática original, às
vezes mais ricos do que as autobiografias, pois o diálogo
com o presente atualiza o passado, permitindo a reconstituição
da vida pela linguagem, quando as lembranças não serão
uma realidade, mas interpretações das coisas findas
e do próprio destino pessoal. Foi isso que fizeram, por exemplo,
entre tantos, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico
Veríssimo, Oswald de Andrade e, antologicamente, Pedro Nava,
cuja obra memorialística, nos seus seis volumes, seria suficiente
para a comprovação da especificidade do gênero.
É ele, Pedro Nava, médico de profissão, quem
afirma, em Círio perfeito, o que seria uma poética
das memórias: "Escrever memórias é libertar-se,
é fugir. Temos dois temores: a lembrança do passado
e o medo do futuro. Pelo menos um, a lembrança do passado
é anulada pela catarse de passá-la para o papel".
Aqui, em seu sexto e último volume de suas memórias,
complementa o que anunciara em seu texto inaugural, Baú
de ossos: "Existiu em determinada ocasião o indivíduo
cujo conhecimento pessoal não valia nada, mas cuja evocação
é uma esmagadora oportunidade poética".
As
poucas páginas para falar o que rendeu uma tese me levam,
mais do que teorizar, a demonstrar como as memórias se fazem
literatura. Leiam comigo:
Como
e por onde começar as minhas memórias? Hesito. Devo
começá-las pelo início de minha existência
ou pelo fim? Pois se é preciso começar comecemos pelo
começo.*
Nasci
oficialmente em Juiz de Fora. Quanto à data do mês
e ano, isto é da competência do registro civil. Não
me vi nascer, não me recordo de nada que se passou naquele
tempo. Na verdade nascemos a posteriori. No mínimo
uns dois anos depois. Mesmo porque antes era o dilúvio.*
Faço
esforços de memória para saber qual foi a primeira
impressão de minha vida, quando percebi que existia, que
era um ser sensível e humano. É uma lástima
esquecer! Nada descubro como ponto de partida, como clarão
inaugural... Agora me lembro. Guardo a vaga lembrança de
um ajuntamento de pessoas, subindo, em silêncio, a colina,
onde assentava a casa grande. Desde os cueiros até aprender
a falar, o choro foi um gênio, minha força de opinião,
meu grande argumento. Sou teimoso. Vou rasteando o tempo para exumar
alguma coisa do limbo. Servirá mesmo o quotidiano e o doméstico,
contanto que tenha uma expressão e traduza realidade e sentimento.*
Afinal de contas, a memória de um velho está cheia
de labirintos. Escrever memórias numa ordem rigorosamente
cronológica seria uma tarefa difícil, perigosa, e,
possivelmente, monótona. De resto, o tempo do calendário
e o do relógio pouco e às vezes nada tem a ver com
o tempo de nosso espírito.* Vivo em memória tudo aquilo
que passou e não volta mais: a nossa cidade, a casa de vovó,
onde vivemos os primeiros anos, o quintal que revejo com os olhos
daquele tempo, imenso, misterioso, cheio de atrativos; a velha cisterna
que me fascinava...* Servia-me o almoço às dez e o
jantar às quatro, e isso representava já uma concessão
aos hábitos citadinos. Meu pai nascera na roça, e
horário ideal parecia o de tia Perpétua, que, às
nove papava o seu picadinho com angu, ao meio-dia merendava, e às
três despedia-se da mesa com uma sopa de feijão, para
se meter entre os lençóis assim baixasse a noite,
conforme prescreviam os antigos: Janta com o sol alto, não
terás sobressalto; com o sol posto o rosto.* À
tarde, não havendo outros compromissos, dona Angelina reunia
em sua casa algumas vizinhas interessadas em romances de folhetim.
Os folhetins de antigamente representavam o mesmo papel das novelas
de televisão nos dias de hoje.* E como a vida era boa naquele
tempo.* É uma lembrança longínqua, das mais
longínquas, a figura ou antes, a sombra do meu avô
materno. Como uma fotografia antiga, desbotada, quase desaparecida
pela ação do tempo, vejo-me segura às suas
pernas na sala de jantar da casa de vovó.* Sempre associei
o nome e a figura dessa avó materna a certos odores, coisas
de comer.*
Não
sei porque me vêm à memória certas coisas de
minha infância, sempre que pego na pena; talvez porque naquela
época, coisas pequenas me impressionassem mais e eu guardo
tudo muito.* O que há de especial nessas reminiscências
é que não obstante serem tão vagas, encerram
para mim um conteúdo inesgotável de emoção.*
Debruço-me sobre este caderno e fico alguns minutos, imóvel,
com a pena apontando a página em branco. De vez em quando,
no ermo da madrugada para entreter os intervalos de minhas insônias,
desço aos porões da memória, em busca desses
instantes antigos.* Uma das mais terríveis noites de minha
vida foi a de 2 de dezembro daquele ano de 1922.* E por que tantos
enterros e ressurreições em meus sonhos? Qual seria
a explicação? Já encontrei explicação
muitos anos mais tarde.* Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se
se tratasse de ficção, bem; fala um sujeito mais ou
menos imaginário; fora daí é desagradável
adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos
para evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a
narração. Além disso, não desejo ultrapassar
o meu tamanho ordinário.* Eu, tu, ele, nós, vós,
eles. Entre dois nadas os pronomes dançam. Assim, vagando
no tempo, voltando de manhã para ontem (que nem cápsula
espacial que pode girar quatro, cinco, seis dias, sol e noite, claro-escuro,
nas vinte e quatro horas dum dia só), volto àquela
Rua Haddock Lobo na sua eternidade. Saudade. Readquiro outra idade.
Saudade. Sim. De mim na hora em que começava outra fase da
vida nas ruas que se destinava a ser minha cidade. Saudade.* Eugênia!
Que saudades me ficaram daqueles instantes de alumbramento! Fogo
de carne que ainda hoje me queima como brasa.* A memória
é manhosa, tenho de negacear. Primeiro reproduzo o painel
assim como me vem à mente; depois investigo pormenores, procuro
restituir a pintura primitiva, removendo as finas pinceladas com
que sobre ele, o tempo compôs outros quadros. Quero da memória
apenas a essência das lembranças.* Estarei assim dentro
da verdade? Importa a verdade? Ah! Pilatos, Pilatos... Para quem
escreve memórias, onde acaba a lembrança? Onde começa
a ficção? Talvez sejam inseparáveis. Minha
opção é sempre a segunda, porque só
há dignidade na recriação. O resto é
relatório.* (É bom ser ficcionista, pois se eu fosse
sociólogo, etnólogo ou qualquer outra coisa em ó
l o g o não estaria fazendo tantas afirmações
levianas.* O impulso de escrever para mim mesmo, em caráter
autoconfessional, ditou os feixes de palavras que fui acumulando
e que um dia... destruí. Do conjunto sacrificado salvaram-se
algumas páginas que hoje reúno em livro. Animou-me
a ingênua presunção de que possam dar ao leitor
um reflexo do tempo vivido de 1943 a 1977, menos por mim e pelas
pessoas em volta, fazendo esmerar coisas literárias e políticas
daquele Brasil sacudido por ventos contrários.* Rasgamos
papéis, rasgamos os fatos que eles testemunhavam. Passar
a vida a limpo.* Eu me pergunto se a memória não estará
tentando enganar-me, bem como agora talvez eu esteja procurando
ludribriar quem me lê.* É o caso de eu ter escrito
e continuar a escrever estas minhas pobres memórias. Elas
estão longe do que eu desejaria que fossem. Não me
considero grande escritor por tê-las rabiscado. Foram produzidas
porque eu queria ter - roubando aqui o pensamento de Proust - esse
encontro urgente, capital, inadiável comigo mesmo.* E mesmo
de olhos abertos eu sonhava. Inventava meu mundo e convocava meus
mitos, fugindo do meu ambiente para mostrar outros quadros. Nesses
momentos de fuga ia ao ponto de plantar minha paisagem e gerar outras
vidas, por obra da imaginação. Demorava-me nessa atmosfera
fictícia e meus sonhos tomavam corpo. A imagem estava sempre
presente e eu brincava com essa ilusão. E assim me fiz romancista.*
As palavras "outrora", "naquele tempo", "antigamente",
"há séculos" impressionavam-me muito. Queria
saber se não seria possível colar os tempos uns nos
outros, se o tempo era vertical ou horizontal.* Estou só
e a vida vai custar a reflorir. Estou só.* Dolorosamente
encaro o velho que tomou conta de mim e vejo que ele foi configurado
à custa de uma espécie de desbarrancamento, avalanche,
desmonte - queda dos traços e das partes moles deslizando
sobre o esqueleto permanente. Erosão.* Meu retrato está
de corpo inteiro nestas memórias.* Ó tempo! Ó
anti-Pitanguy, meu e nosso carrasco.* A memória é
a repetição da vida que multiplica o passado, mas
bom mesmo é esquecer.* Quem ousaria negar que - ao menos
para uma memória fértil - o passado situa-se a posteriori?*
Policio minha linguagem. Censuro, escamoteio qualquer coisa que
possa lembrar terra, caixão e tumba/c'roa pedr'e e catacumba.*
Não vou citar nomes.* Nesse trabalho coletivo a memória
e a imaginação cooperam de tal jeito que nos é
impossível saber se o informe decisivo é falso ou
verdadeiro.* As coisas findas/muito mais que lindas/estas ficarão.*
Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa
releitura...* A saudade que dói mais fundo - e irresistivelmente
- é a saudade que temos de nós.* És um senhor
tão bonito, tens a cara do meu filho/Tempo, tempo, tempo,
tempo.*
*
* *
Dedico
este texto a todos os escritores, artistas e intelectuais brasileiros
que nos deixaram as suas memórias. Por ordem dos asteriscos
você leu e rememorou: Oswald de Andrade, Murilo Mendes, José
Américo de Almeida, Érico Veríssimo, Maria
Helena Cardoso, Cyro dos Anjos, Maria Helena Cardoso, Érico
Veríssimo, Helena Morley, Manuel Bandeira, Josué Montello,
Érico Veríssimo, Zélia Gattai, Graciliano Ramos,
Pedro Nava, José Lins do Rêgo, Cyro dos Anjos, Pedro
Nava, Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade,
Josué Montello, Érico Veríssimo, Pedro Nava,
Cyro dos Anjos, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Pedro Nava, José
Américo de Almeida, Carlos Drummond de Andrade, José
Américo de Almeida, Murilo Mendes, Pedro Nava, Érico
Veríssimo, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade,
Pedro Nava, Mário Quintana e Caetano Veloso.
Tânia
Regia Oliveira Ramos é professora de Literatura na Universidade
Federal de Santa Catarina.
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