Perda
de memória: quem não vai passar por isso?
Quem
nunca passou por um lapso de memória, não ficou um
certo tempo tentando encontrar no seu acervo lingüístico
pessoal, a palavra adequada para o contexto desejado, ou simplesmente
não esqueceu o que iria dizer ao seu interlocutor? E quem
nunca se esqueceu, em determinado momento, do que iria fazer logo
em seguida? Ou ainda, quem nunca esqueceu em algum lugar um objeto
pessoal (um guarda-chuva, por exemplo)? Como diria Jorge Luís
Borges, "somos feitos, em larga medida, de memória"
e "essa memória é feita, em boa parte, de esquecimento".
Segundo
o pesquisador Iván Izquierdo, que estuda a fisiologia da
memória na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, as
falhas de memória ocorrem quando as sinapses - conexões
entre dois neurônios -, encarregadas de evocar um certo tipo
de memória, estão inibidas, alteradas ou em número
reduzido. A redução do número de sinapses e
de neurônios pode se acelerar, entre outras coisas, devido
à estimulação excessiva, a doenças degenerativas,
a isquemias cerebrais - popularmente conhecidas como "derrames"
- e a traumatismos cranianos decorrentes de acidentes. Mas a perda
fisiológica de neurônios é algo que todos experimentamos
naturalmente ao longo da vida.
A velhice
é acompanhada de um enfraquecimento geral dos diversos tipos
de memória, devido à diminuição gradativa
do número de neurônios que ocorre na idade adulta.
Em seu livro Memória, Izquierdo chama essa amnésia
senil de benigna - por ela não ser decorrente de doença
degenerativa -, e diz que suas primeiras manifestações
são uma leve disfunção da memória de
trabalho (a que usamos para evocar palavras no ato da fala, por
exemplo) e uma diminuição da capacidade de memória
de curta duração (quando não se lembra, entre
outras coisas, o que foi servido na última refeição).
Izquierdo
explica, porém, que essa amnésia senil benigna não
deve ser confundida com a tendência das pessoas idosas a evocar
memórias antigas em detrimento das mais recentes. "Os
idosos geralmente escolhem, como todos, quais as memórias
que preferem evocar", afirma. "Acham preferível
lembrar fatos e episódios de sua infância ou juventude
porque correspondem à época em que eram ágeis,
fortes, com toda uma vida à sua espera", argumenta.
É
também na velhice que se manifestam as chamadas doenças
degenerativas que provocam a perda de funções mentais,
como a memória. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, a doença de Parkinson, que causa a
degeneração progressiva de neurônios produtores
de dopamina - neurotransmissor responsável pela comunicação
entre as células nervosas - atinge 2% dos brasileiros acima
de 60 anos. E a doença de Alzheimer, que provoca a produção
exagerada de uma proteína em determinadas células
nervosas e leva à morte do todos os neurônios que rodeiam
essas células, está entre as quatro maiores causas
de óbito no mundo, de acordo com a Organização
Mundial de Saúde.
Nos
pacientes com doença de Parkinson, as memórias de
longa duração para lembranças conscientes,
como faces e nomes de pessoas ou locais que visitamos, são
preservadas, mas eles têm dificuldade em manter informações
visuais e espaciais enquanto realizam uma operação
mental através da memória de trabalho. Os parkinsonianos
também perdem um tipo de memória que os pesquisadores
chamam de "hábito", uma subdivisão da memória
implícita. "[A memória de hábito] corresponde
a associações entre estímulos e respostas que
adquirimos de forma inconsciente (implícita) e gradual",
explica Cláudio da Cunha, do Laboratório de Fisiologia
e Farmacologia do Sistema Nervoso Central, da Universidade Federal
do Paraná (UFPR). "Um bom exemplo é passar a
marcha de um carro. Depois que aprendemos, fazemos isto de forma
automática", ilustra.
Da
Cunha coordenou, em seu laboratório, pesquisas que reproduziram
em ratos os mesmos problemas de memória encontrados em parkinsonianos,
lesando nos animais a mesma região cerebral degenerada pela
doença de Parkinson, denominada "substância negra
compacta". Para estudar as memórias de hábito
e de trabalho nos ratos, os pesquisadores usaram um labirinto aquático
onde os animais tinham que encontrar uma plataforma submersa sinalizada
por uma bola. Segundo Da Cunha, os ratos lesionados têm dificuldade
de fazer a simples associação da bola com a plataforma.
"Quando os animais têm que usar dicas espaciais para
encontrar a plataforma sem a sinalização da bola,
o prejuízo só é observado quando têm
que manter a informação por um curto período,
enquanto estão envolvidos com a tarefa de encontrar a plataforma
no espaço do labirinto aquático", relata. Se
a tarefa requer que o animal se lembre da posição
da plataforma em dias anteriores, sua memória funciona como
a dos ratos não lesionados.
Rato em um labirinto aquático.
Foto: Divulgação/UFPR
Na
etapa seguinte da pesquisa, foram testadas em ratos com lesão
na substância negra as alterações nas memórias
afetadas após a aplicação de cafeína,
droga que já havia se mostrado eficaz no tratamento de disfunções
motoras causadas pela doença de Parkinson. "Esses problemas
de memória de associação estímulo-resposta
dos animais com a lesão da substância negra tiveram
uma melhora substancial quando eles foram tratados com cafeína,
o que sugere que esta substância pode ser útil no tratamento
dos sintomas cognitivos da doença de Parkinson", afirma
Da Cunha. Após esses resultados, pesquisadores da Unifesp
e da USP se associaram ao laboratório da UFPR para testar
o efeito do tratamento com cafeína associado a drogas convencionais
em humanos com a doença de Parkinson.
Entre
as drogas utilizadas no tratamento de doenças degenerativas
estão os inibidores de acetilcolinesterase, uma enzima que
destrói o neurotransmissor acetilcolina, responsável
pelo funcionamento involuntário dos órgãos.
Existem drogas, como a anfetamina, que teriam atuação
específica em memórias declarativas de longa duração,
mas a dependência que elas podem causar no paciente impedem
o seu uso terapêutico. Todas essas drogas, incluindo os estimulantes
anfetamina e cafeína, seriam, segundo Ivan Izquierdo, apenas
paliativas no tratamento de doenças degenerativas, pois "a
morte neuronal prossegue inexorável, mesmo na sua presença".
Ele acrescenta que em pessoas saudáveis elas não teriam
efeitos comprovadamente importantes. "Até agora, não
foi encontrada nenhuma droga que 'melhore' a memória em pessoas
normais e que seja útil", afirma. "A melhor forma
de aperfeiçoar e de conservar a memória é seu
exercício ou prática", defende.
Além
de serem evidentes nos casos de doenças degenerativas, as
perdas de memórias também podem ser relacionadas aos
casos de afasia, perturbação de linguagem causada
por lesão no Sistema Nervoso Central por acidentes vasculares
cerebrais (derrames) ou por traumatismos cranianos, em geral. "É
interessante o raciocínio correlato entre a perda da linguagem
e a perda da memória, porque de fato elas se confundem na
prática", afirma a neurolinguista Edwiges Morato, do
Laboratório de Neurolinguística/Centro de Convivência
de Afásicos (CCA)
da Unicamp. "Quando se tem um lapso, se esqueceu uma palavra,
a afasia é tida como a perda da memória da palavra.
E o contrário também é verdadeiro: se você
perde a memória, alguma coisa da linguagem também
acaba sendo perdida ali", completa.
A
pesquisadora da Unicamp afirma que no caso das afasias, ao contrário
das neurodegenerescências, a praxe é a melhora do paciente,
devido à plasticidade do cérebro, dependendo evidentemente
da extensão da lesão e de fatores como a idade do
sujeito e suas qualidades fisiológicas e neuropsicológicas.
"Uma vez atacadas, certas regiões do cérebro
reputam às outras as funções originais",
explica. Segundo Morato, o cérebro depende do que está
exterior a ele para poder funcionar de maneira integrada. Além
da interação de uma área com outra área,
está na base de seu funcionamento a interação
do cérebro com o organismo como um todo, do sujeito com o
mundo e da linguagem com outros processos cognitivos. É essa
concepção de funcionamento do cérebro que leva
o CCA a apostar no convívio social dos afásicos e
no compartilhamento de suas experiências.
Morato
critica o que ela chama de metadiscurso clínico sobre linguagem
e memória, que cristaliza um conceito idealizado com base
em preconceitos, com origem nos gregos da Antiguidade, para quem
o esquecimento significava o abandono do conhecimento. A perda de
memória seria, assim, o pior dos males, e na linguagem estaria
a evidência dessa perda de conhecimento. Para a neurolinguista,
tanto os testes de afasia que contêm apenas tarefas metalingüísticas
(como identificar sinônimos e antônimos) quanto os testes
de memória que verificam apenas a capacidade de recuperação
de informações sem contextualizá-las estudam
apenas determinados aspectos da linguagem e da memória. "A
nossa evocação de palavras, por exemplo, está
longe de ser estritamente lexical. Não é palavra-palavra,
mas palavras em situações enunciativas, em contextos
determinados, sobretudo na relação com as pessoas,
em relação às pessoas e aos contextos",
explica. "É nesse contexto que as palavras vêm,
ou não vêm, ou vêm outras..."
A neurolinguista
da Unicamp lembra que muito daquilo que é chamado de perda
ou de patológico tanto no caso de afasia quanto no de falha
de memória é bastante comum também no contexto
de normalidade. "Se você grava pessoas falando nas ruas,
na televisão, num bate-papo e apaga qualquer tipo de história
daquelas pessoas, daquele contexto, daquela interação,
os dados serão muito próximos dos dados de afasia,
sobretudo as afasias chamadas de leves", exemplifica. "Não
há nada de estranho em 'perder' a memória, não
há nada de mórbido em si mesmo, porque por vários
e diferentes motivos, esquecimentos, lapsos ou falhas são
processos que pertencem à memória. Nesse sentido,
a perda da memória, que não é algo infalível
e cujo funcionamento está na dependência de nossas
experiências psico-sociais mais amplas, é normal",
conclui. Lembrando o início deste texto, quem nunca passou
pelo esquecimento?
Leia
também:
Linguagem
e memória: os discursos sobre as perdas
(RC)
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