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A memória pouco tem a ver com a verdade
Delia C. Goldfard

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José Maurício Arruti

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A memória pouco tem a ver com a verdade

Delia Catullo Goldafarb, psicanalista, gerontóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, acredita que o conceito de memória pouco ou nada tem a ver com o conceito de verdade e que a lembrança é, de certa forma, ficcional. Nesta entrevista à ComCiência Goldfarb, que é também professora do curso de especialização em gerontologia e autora do livro Corpo, tempo e envelhecimento, da Casa do Psicólogo, 1998, fala também de como a memória constrói o presente.


ComCiência - Em um trabalho apresentado no Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, em outubro de 2001, a senhora afirmou que "se temos uma história é porque conseguimos registrar na memória os acontecimentos significativos de nosso passado, descobrir aquilo que permanece e o que muda, e assim, confirmar nossa identidade". Qual a importância da memória na formação da identidade ou personalidade de um indivíduo?
Délia C. Goldfarb -
História, memória e identidade são conceitos diferentes, mas intimamente ligados entre si. Quando contamos nossa história, estamos falando de um "saber" sobre nós mesmos, estamos transmitindo aquilo que sabemos sobre os acontecimentos, afetos, sensações e sofrimentos que marcaram nossas vidas. Um saber que eu tenho sobre o que é meu 'Eu'.

Para que exista "minha história" devo me reconhecer nela como um indivíduo, como um protagonista permanente. Por isso dizemos que há coisas que não podem mudar e outras que devem mudar para construir uma identidade.

A história é um movimento de mudança permanente. Esse movimento faz com que eu me reconheça, me identifique com minha história, com a história de minha vida, quando a conto para alguém ou quando, simplesmente, penso nela. Se nada mudasse, eu não teria história para contar, pois tudo seria sempre igual. Se você aos 50 é a mesma que aos 15... Que história é essa? Em alguns pontos você é sempre a mesma, você será sempre fulana de tal, filha de outros fulanos. Mas hoje você trabalha nesta revista, aos 15 talvez fosse muito religiosa, e aos 40 talvez decida mudar de profissão e ser atriz, e mais tarde pode ser uma agnóstica. Isso irá criando subjetividades diferentes, diferentes modos de se colocar no mundo, diferentes formas de pensar e ver a vida, de se relacionar com seu próprio corpo, de se vincular com os outros. Mas em todo esse movimento, você vai conservar sua identidade, senão, você deixaria de ser você. Aí já entraríamos no campo das patologias.

ComCiência - Um dos conceitos mais discutidos por Freud e pela psicanálise é o do trauma. De que forma a memória pode ser afetada por um trauma?
Goldfarb -
O trauma atua sobre a memória de uma forma muito particular. Quando há uma lembrança traumática, esta se caracteriza por não ser afetada pelas mudanças temporais, é como se retornasse sempre igual, não há elaboração possível, só repetição do mesmo. É como um sonho traumático, que se repete sempre igual. É uma memória que insiste na repetição e não na elaboração. Nesse sentido, não cria história.

ComCiência - Por que acontece o esquecimento?
Goldfarb -
Sobre todo esse processo tem muita influência o mecanismo da repressão, que faz com que alguns conteúdos não possam ser lembrados. É um mecanismo que manda esquecer aquilo que em determinado momento poderia ser perigoso para a consciência. A memória existe porque existe o esquecimento. Se não tivéssemos a capacidade de esquecer, ter memória não faria o menor sentido, não precisaríamos dela. E a repressão atua em vários níveis, dependendo do grau de periculosidade do reprimido, por isso, alguns conteúdos são facilmente resgatados do esquecimento enquanto outros, nem sabemos que alguma vez existiram (embora continuem produzindo efeitos desde o inconsciente).

ComCiência - Até onde o que lembramos é fruto da realidade dos fatos e o que é ficção ou percepção?
Goldfarb -
Tanto o conceito de história, quanto o de memória, pouco ou nada tem a ver
com o conceito de verdade. Estes conceitos questionam a verdade. Nesse sentido, diria-se que a lembrança é sempre, de certa forma, ficcional. E a história de cada um é uma espécie de narrativa que cada sujeito cria em relação a si mesmo e na qual acredita piamente.

ComCiência - O passado interfere nas lembranças atuais?
Goldfarab -
Para ter uma história na qual possamos nos reconhecer como permanentes, devemos ter uma memória que registre esse passado. E aqui já estamos falando de tempo, que é o outro conceito inseparável dos anteriores. A memória une o passado com o presente e permite que nos projetemos no futuro. Todo esse movimento une-se através do desejo que é como o fio que une as contas de um colar, que se não estivesse ali, encadeando as lembranças, seriam contas soltas e não um colar.

A história de um sujeito psíquico é a história de suas emoções, pois é a emoção que marca os fatos mais relevantes de nossas vidas. Aquilo que não nos afeta especialmente, é facilmente esquecido, e o que lembramos 10 ou 20 anos mais tarde é produto da emoção com que foi vivido e pode ser que não tenha nada a ver com o que aconteceu "de verdade". O lembrado é sempre depois do acontecido e nesse tempo que passa entre o acontecimento e a recordação, a pessoa vai vivendo, vai mudando, vai adquirindo novos códigos de análise das coisas e, em certo ponto, quem lembra não é a mesma pessoa que protagonizou aquele acontecimento agora lembrado. A lembrança vem "só depois" do acontecimento e esse tempo transcorrido muda muita coisa. A recordação é real pois é "nossa" realidade, só nesse sentido é "realmente verdadeiro".

ComCiência - No trabalho citado anteriormente, a senhora também afirma que "A memória não responde pela ratificação do passado e sim pela construção do presente". De que forma a memória "constrói" o presente?
Goldfarb -
Isso que eu acabei de falar está ligado ao conceito de construção. Ninguém pode ter absoluta certeza da "veracidade" de suas lembranças. Nós nos lembramos a partir de um estímulo no presente e então vem a recordação de um tempo passado (pode ter sido ontem) e os dois tempos parecem se juntar em um só (Proust sabia muito bem disso). Constrói-se algo novo: a lembrança sempre deformada do passado mais os afetos daquele tempo, mais os afetos de hoje que lembro, mais o que sou hoje, mais o que já fui, mais o que foi me acontecendo nesse tempo todo. Tijolo a tijolo, vou construindo minha história, o que me identifica com o que sou. O que permanece e o que muda.


Atualizado em 10/03/04

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