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A memória pouco tem a ver com a verdade
Delia C. Goldfard

Recuperação da memória do lugar auxilia laudo antropológico
José Maurício Arruti

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Recuperação da memória do lugar auxilia laudo antropológico

A Constituição de 1988, através do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, prevê o reconhecimento e a titulação das chamadas "terras remanescentes de quilombos". Perícias e laudos antropológicos são necessários, em certos estados brasileiros, para instruir os processos jurídicos de regulamentação de terras pleiteados pelas comunidades rurais negras. Nesta entrevista para a ComCiência, o historiador e antropólogo José Maurício Arruti, que coordena projetos de pesquisa junto a algumas dessas comunidades, no Rio de Janeiro, através da organização não-governamental Koinonia, fala sobre alguns dos impasses colocados para os antropólogos quando estes vão à campo para a realização de laudos.


ComCiência - Embora não se possa invalidar a importância política do termo "quilombo" enquanto referência à resistência histórica dos negros à escravidão no Brasil, muitas das comunidades rurais negras que pleiteiam a titulação de suas terras não são provenientes de quilombos no sentido tradicional do termo. Mas a Constituição de 1988 opera com a categoria jurídica "remanescentes de quilombos". Quais seriam os impasses colocados por esta categoria para a realização de laudos antropológicos?
José Maurício Arruti -
A categoria "remanescentes de quilombos" é de natureza jurídica e institui uma nova figura de direito. É verdade que ela está sustentada numa categoria histórica que é a de "quilombo". E o "quilombo", enquanto categoria histórica, é uma categoria confusa. Resumidamente, se pegarmos os poucos trabalhos historiográficos existentes sobre quilombos - já que é somente a partir de 1988 que esta temática começa a receber uma atenção maior - e tentarmos fazer uma síntese sobre qual seria o conceito de quilombo, historicamente falando, não existe um conceito unânime. Na legislação do século XVIII dizia-se, por exemplo, que o quilombo poderia ser desde um pequeno grupo de fugitivos que viviam na estrada à custa de assaltos às fazendas ou mesmo aos passantes, ou seja, uma espécie de grupo nômade de economia predatória até uma organização complexa como o Quilombo de Palmares, formado por várias aldeias, com uma estrutura militar, comercial, com hierarquias entre as diferentes aldeias que formavam uma federação, enfim, de fato, uma espécie de miniatura de Estado. Então, se você observa esta enorme variação, você percebe que o conceito de quilombo não era um conceito descritivo que nós pudéssemos tomar como âncora para orientar o nosso olhar. Ele era um conceito classificatório, aplicado aos grupos de escravos que, por algum motivo, se mostravam perigosos e precisavam ser combatidos.

O quilombo, portanto, era uma categoria acionada num momento de perigo, ela não é uma categoria descritiva de valor genérico. Mas a marca é um grupo de negros, fugidos, que de alguma forma produz uma situação de insegurança para a ordem vigente. Diante desse quadro, não existe um único conteúdo historiográfico com o qual a categoria quilombo pudesse ser preenchida.

No próximo encontro da Associação Brasileira de Antropologia (junho/Olinda-PE), José Maurício Arruti estará coordenando o primeiro Fórum de Pesquisa que se dedicará a refletir sobre as diferentes experiências de mapeamento de comunidades negras rurais no Brasil, contemplando mais de dez estados da Federação. Neste Fórum, um dos temas fundamentais será justamente a relação entre ciência e política, em especial no que diz respeito às condicionantes e efeitos sociais do trabalho antropológico.

Quando surge o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, na Constituição de 1988, que prevê o reconhecimento e a titulação das chamadas "terras remanescentes de quilombos", ele está orientado por essa imprecisão, por uma noção muito genérica de quilombo, eleita pelo movimento negro na época como uma metáfora de resistência política. O quilombo emerge como uma categoria metafórica de força política, como a bandeira de um movimento social que está emergindo desde a década de 1970. Enquanto a Constituição de 1988 está sendo escrita, a categoria quilombo não é mais do que isso: ela é uma metáfora que fala numa reparação em termos históricos.

ComCiência - No que diz respeito ao movimento negro que, muitas vezes, atua enquanto mediador no processo de reconhecimento dessas comunidades remanescentes de quilombos, quais seriam as consequências postas por essa relação para a memória da própria comunidade?
Arruti -
Esta questão pode ser tomada a partir de dois vieses. Primeiro, é preciso considerar o fato de se projetar sobre essas comunidades rurais uma expectativa de uma certa herança ou a noção de resistência, que, de fato existiu, mas num sentido ampliado, e não só no sentido de se "pegar em armas". Se a resistência for percebida como as várias estratégias para se manter vivo e perpetuar o seu grupo, esses grupos remanescentes de quilombos, ou de senzalas, ou de portos de embarque de escravos, são resistentes de alguma forma porque eles chegaram até hoje, ocupando áreas que, quase sempre, são de uso comum, diante de uma situação de especulação imobiliária e avanço do capitalismo. São comunidades que resistiram, embora não sejam quilombos num sentido estrito.

Se o movimento negro abre os olhos para isso e percebe essas comunidades na sua própria realidade, com todas as implicações historiográficas e ideológicas que isto traz, que é pensar a resistência nesse sentido alargado, eu acho essa posição do movimento bastante interessante.

Mas existe também uma outra forma de encarar essa diferença entre a metáfora e as realidades sociais contemporâneas. Isso se dá quando o movimento social começa a exigir desses grupos coisas que eles não são. Como tomar essas comunidades como exemplares de sociedades primitivas ou como marcos de uma resistência que, na verdade, não reflete exatamente a experiência histórica, a memória, daquele grupo. Você começa, então, a produzir uma história, ou exigir uma adaptação da memória desses grupos para se encaixar num modelo que é do movimento negro. Ainda que esse movimento de adaptação recíproca seja inevitável, um fenômeno sociológico que temos estudado, algumas situações de conflito acabam sendo instauradas. Existem várias situações nas quais pessoas ligadas ao movimento social ou que ocupam cargos no Estado, chegam a essas comunidades rurais com certas exigências, a ponto de essas comunidades recusarem o retorno destes funcionários.

No Rio de Janeiro, por exemplo, na comunidade de São José, os moradores estavam numa enorme expectativa para trocarem suas casas de sapé e pau-a-pique por casas de alvenaria. Houve, então, conflitos com representantes do movimento negro, do Incra e até do Sindicato dos Trabalhadores Rurais porque eles estavam exigindo dos moradores a manutenção das suas casas antigas, em nome de uma tradição que é um produto ideológico deles mesmos e não uma demanda da comunidade.

ComCiência - Na sua opinião, qual deve ser a postura do antropólogo nessas situações de conflito? Como ele lida com esse quadro quando vai a campo para a realização de um laudo antropológico?
Arruti -
Cabe ao antropólogo, numa situação de conflito, descrever as disputas em torno desses símbolos. Se eu chego numa situação e encontro um quadro já montado com a presença de mediadores, uma comunidade em mobilização, vivendo uma situação de disputa, com outros agentes, em torno da imagem dela mesma, o laudo antropológico não deve se furtar a descrever isso: tudo isso é parte do objeto a ser descrito porque é fundamental para compreender a dinâmica que a comunidade está vivendo. Por mais que o laudo antropológico, hoje, seja encarado como um objeto de uma justificação de uma demanda social, se ele se assume estritamente como isso, ele é o fracasso do trabalho antropológico. O laudo se torna, então, apenas uma justificativa, fazendo com que o elemento político que existe em qualquer trabalho científico ultrapasse os limites e rompa o equilíbrio que deve existir entre uma avaliação política e uma crítica a partir dos seus parâmetros acadêmicos. Para que isso aconteça, o próprio campo de disputas deve entrar como parte do objeto a ser descrito. Esse é um trabalho, muitas vezes, difícil porque se o antropólogo já trabalha com a comunidade há muito tempo, ele mesmo se constitui em um dos atores desse campo e, sendo assim, ele precisa fazer um enorme esforço para objetivar sua própria posição, ou seja, descrever, também, qual é o lugar que ele ocupa nesse jogo.

Atualizado em 10/03/04

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