Forças armadas, educação e ciência
Adler Homero Fonseca de Castro
O Renascimento marcou profundas mudanças na forma como a sociedade encarava a ciência, passando esta a ter um status que nunca antes tinha tido. Isso, naturalmente, teve seus efeitos na guerra, já que ela era uma das principais atividades dos Estados. Durante séculos, e pode-se dizer até os dias de hoje, infelizmente, as maiores realizações técnicas da humanidade estiveram associadas ao desenvolvimento bélico, como a corrida espacial, ligada à "guerra fria". No passado, isso se refletia na produção de imensos canhões e navios de guerra, símbolos do poderio e capacidade técnica dos países.
Mas, estranhamente, essa real ligação entre guerra e ciência, durante muito tempo não foi percebida pelos próprios militares. Os desenvolvimentos científicos continuaram a ser feitos por particulares, como Da Vinci, Michelangelo (que se consideravam como engenheiros de fortificações), Newton e Robbins (balística), Lavosier e Berthollet (química de explosivos), ou por técnicos anônimos, que desenvolveram os artefatos usados nos conflitos.
Parte das razões desse desinteresse dos militares pela ciência - e até mesmo com a educação formal - está na mentalidade do corpo de oficiais, oriundos da nobreza. Tal fato se explica por considerarem que uma educação técnica para o exercício de suas funções não era necessária. Segundo sua forma de pensar, os nobres "já nasciam sabendo" o seu ofício. Do ponto de vista das tropas não técnicas, como a infantaria e cavalaria, isso até que não era um absurdo total, pois o cotidiano da nobreza, com seus esportes "marciais" (hipismo e caça) e o lidar com os camponeses já davam alguns dos conhecimentos básicos para lidar com a tropa. O resto dos conhecimentos profissionais podiam ser adquiridos da mesma forma que um aprendiz de artífice aprendia o seu ofício: acompanhando o trabalho de seus superiores. Por exemplo, os candidatos a oficial da marinha se apresentavam nos navios ainda adolescentes, com 13 ou 15 anos, aprendendo as noções básicas necessárias ao serviço naval trabalhando no convés e observando os outros oficiais.
Mas, se isso funcionava para os oficias ditos "combatentes" (na época, a infantaria, cavalaria e os de marinha), é claro que a idéia era um fracasso para os serviços técnicos (artilharia e engenharia). Estas especializações começavam a se fazer cada fez mais necessárias a partir do século XVI, apesar de serem vistas com desprezo pela nobreza, por poderem ser comparadas com os "ofícios" da plebe, não tendo ligação com as tradições da nobreza cavaleira.
Uma resposta inicial ao problema foi à contratação de pessoal civil para as funções técnicas, mas isso não deu muito certo, por estes não poderem receber o mesmo tipo de disciplina a qual os militares estavam sujeitos. A solução óbvia seria, então, criar dentro do exército um corpo de oficiais especializados, treinados para exercer as funções técnicas. Mas, para isso, o sistema tradicional de "aprender no ofício" não era adequado, dado o volume de informações e conhecimentos de natureza acadêmica que era necessário ao trabalho do artilheiro e engenheiro militar - não que não se tenha tentado. Entre 1648 e 1650, por exemplo, o "engenheiro de fogo" holandês a serviço de Portugal, Miguel Timmermans esteve no Brasil para "formar discípulos aptos para os trabalhos de fortificações".
Certamente, o resto dos engenheiros que trabalharam antes e depois no Brasil também operaram de forma semelhante, instruindo aprendizes, mas este sistema era incapaz de formar o pessoal técnico para o serviço, considerando que o Brasil era uma colônia que Portugal esperava que se defendesse por si. Aqui foram construídos mais de 500 fortes e fortalezas ao longo da costa e, além disso, os engenheiros militares eram necessários nos trabalhos de engenharia civil do período: cartografia, construções de prédios públicos, pontes, estradas, etc.
A resposta foi a instituição de um sistema de educação formal, primeiro na Europa e, não muito mais tarde, no Brasil. Este sistema seria composto aqui pelas "Aulas Militares" (depois "Aulas de Fortificações" e "Aulas de Artilharia"), criadas pela carta régia de 15 de janeiro de 1699, mas já existentes informalmente alguns anos antes. Funcionando em diversas capitanias (Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Pará), essas "Aulas" foram os primeiros cursos de formação superior no País, destinados a treinar artilheiros e engenheiros, abertos não somente aos militares, mas também a civis que quisessem aprender essas matérias, havendo até bolsistas, que recebiam apoio financeiro para estudar.
Dessas Aulas - em 1738 um curso de cinco anos, com diversas cadeiras -, surgiram, em 1792, a Academia de Marinha e a Real Academia de Artilharia, Fortificações e Desenho, ambas no Rio de Janeiro. A Academia de Artilharia, hoje em dia, é reconhecida como sendo a origem do curso de engenharia no país, pois não era mais uma "Aula", com poucas cadeiras, mas sim um curso completo, de seis anos de duração. Curiosamente, levando em conta a relutância da coroa portuguesa em instalar cursos superiores no Brasil, a Academia do Rio de Janeiro acompanhou o surgimento desse tipo de escolas na Europa, criadas em meados do século XVIII, como a escola de engenharia de Mézières, da França, de 1749; Woolwich, na Inglaterra, criada em 1741; ou a dos holandeses, que data de 1735. Em Portugal, a instituição congênere, com o mesmo nome da do Rio de Janeiro, tinha sido criada apenas dois anos antes, em 1790. Cursos formais de engenharia só surgiram nos EUA em 1802 (Academia de West Point), ou na Alemanha após 1815.
Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, houve uma mudança na organização do ensino militar, com a transformação da Academia de Artilharia e Fortificação em Academia Militar, em 1810. Esta teria um curso de oito anos, dos quais os oficiais de infantaria e cavalaria faziam dois e os de artilharia e engenharia todos os oito, com um currículo muito amplo, permitindo a formação de um oficial não somente apto ao serviço militar, mas também para trabalhos de engenharia civil. O curso incluía além das matérias científicas (cálculo, química, astronomia, física, mineralogia, etc.), assuntos práticos, como topografia, pontes, estradas, canais e portos, arquitetura civil e orçamento de obras. Os oficiais formados pela Academia, indo para a vida civil, estavam aptos a executar os trabalhos de engenharia que eram necessários no país.
Durante a Regência, quando ocorreram a desestruturação do exército (houve uma redução de efetivos na ordem de 75%) e as revoltas do período, não houve uma grande modificação no ensino militar, a não ser uma racionalização do mesmo. O curso foi reduzido para sete anos, sendo que os oficiais de engenharia eram obrigados a cursar todos os sete (as outras especialidades tinham uma carga letiva menor). O aluno que completava os sete anos recebia o grau de bacharel em matemática. Se ele defendesse uma dissertação "sobre qualquer ponto da ciência matemática dos mais profundos", perante uma banca de quatro lentes da Academia, receberia o título de doutor, com "imposição formal da borla e do capelo", além do respectivo anel de grau, título que mais tarde geraria uma série de problemas para o exército.
Apesar do título de bacharel em matemática e o ensino acadêmico ser voltado muito para os aspectos da engenharia que hoje chamamos "civil", o corpo de oficiais estava apenas preocupado com os aspectos práticos da profissão. Pode-se dizer que a preocupação era mais técnica do que científica. No período colonial não havia nenhum incentivo - mas sim restrições - à pesquisa científica no Brasil. Depois da chegada da família real, e mais ainda após a Independência, alguma coisa se fez, principalmente no campo civil, com a fundação do Museu Nacional e a vinda da Missão Francesa. No campo militar pouca coisa de caráter semelhante pode ser apontado no ramo científico, com a exceção de uma comissão encarregada de estudar a instalação do Observatório Nacional em 1827 - mas isso por causa da importância prática que esta instituição teria para a cartografia e navegação.
Somente com a estabilidade interna, após a maioridade de Pedro II em 1840, a situação se alteraria. É um momento em que as forças armadas começam a se profissionalizar e que o mundo como um todo passa por profundas modificações tecnológicas, fruto da Revolução Industrial. No período de 1840 a 1860 ocorre toda uma série de modificações, visando dotar as forças armadas de meios para acompanhar as transformações técnicas por que estava passando a Europa. Neste momento é que se pode falar de uma real ligação entre ciência e exército no Brasil, pois somente a pesquisa formal, usando o método científico, permitiu que se dominassem as tecnologias que eram necessárias para as tropas operarem. Estas iam de munição de fuzis até a produção local de navios encouraçados, desenhados no país.
No exército, esse processo foi gerenciado pela Comissão de Melhoramentos do Material do Exército, composta por diversos oficiais e doutores em ciências, que buscavam compreender e reproduzir o que existia no mundo militar de então.
Era necessário fabricar-se pólvora? A fábrica da Estrela, cujo diretor era membro da Comissão fez um estudo das complicadas reações físico- químicas da combustão da pólvora, chegando a um processo de fabricação local que resultava em um produto 20% mais forte do que os melhores importados.
O Exército comprou armas de carregar pela culatra na Alemanha (Fuzis Dreyse, em 1852). Para se dominar a tecnologia de fabricação de munição dessas armas (segredo militar alemão), os oficiais do Laboratório Pirotécnico do Campinho estudaram os exemplares adquiridos, conseguindo reproduzir localmente a complicada munição dessas armas.
Para o uso de novas granadas, eram necessárias novas espoletas de tempo? O pessoal da Comissão estudou as existentes, chegando a produzir localmente uma espoleta com precisão de cinco centésimos de segundo - isso em 1855!
Ingleses ofereceram o "segredo" de novos foguetes militares, possivelmente ao mesmo preço por que foram vendidos aos EUA: 20.000 dólares (numa época em que um trabalhador recebia por volta de 10 dólares por mês de salário)? Estudou-se a questão aqui, e o Brasil passou a ser um dos grandes fabricantes de foguetes de guerra no século XIX, fabricando para suas tropas em operações no Paraguai cerca de 10.000 projéteis desse gênero - sem pagar os royalties e direitos exigidos pelos estrangeiros. Muitos outros exemplos podem ser citados.
A Guerra do Paraguai viria a significar uma interrupção nesse ciclo de pesquisa e desenvolvimento. A antiga Academia Militar, que tinha gerado um curso específico de engenharia militar, administrado na Escola Central (1858), foi fechada durante a Guerra e os alunos foram enviados para as unidades na linha de frente. As experiências técnicas tiveram que diminuir no exército (a marinha, por outro lado, viu o auge de seu desenvolvimento, com a produção local de 15 navios, dos quais 10 encouraçados, novidades no mundo). Do ponto de vista das forças de terra, os interesses agora eram por resultados práticos em curto prazo e as compras diretas de produtos acabados no exterior. Estas não geravam tecnologia própria, e eram mais dispendiosas, mas atendiam a necessidade imediata das forças em operações.
O fim do conflito não veria um retorno à situação de antes da Guerra. Grandes entraves se apresentavam: o primeiro era a natural contração de despesas, ocasionada pelas dívidas da guerra. Outro, mais complicado, podia ser atribuído à nova natureza do corpo de oficiais, com um grande número deles tendo recebido suas promoções por bravura em combate, mas sem terem concluído os estudos formais da Academia. Isso gerou um certo antagonismo dentro das fileiras: de um lado ficavam os "tarimbeiros" (da tarimba, a dura cama sem colchão dos quartéis, de onde eles seriam provenientes), oficiais que tinham se destacado no conflito, mas que não tinham o mesmo nível de instrução formal que o outro grupo. Este outro grupo seria composto pelos "doutores", formados na Academia e portadores do anel de grau ou o título de bacharel em matemática, vistos com desconfiança, por sua educação demasiado livresca e pouco prática para as necessidades que o Exército tinha. Infelizmente, ambos os grupos estavam pouco interessados na pesquisa científica de aplicação prática para o Brasil. Finalmente, o maior problema foi a própria Revolução Industrial. A partir de 1870, o país, devido ao seu pequeno parque industrial instalado, não teve condições de acompanhar as rápidas transformações técnicas que ocorriam no exterior.
Alguns desenvolvimentos e pesquisas locais ainda viriam a ser feitos, como os do foguete Martins modelo de 1874, que não chegaram a ser adotados oficialmente, mas estavam décadas a frente do período, conceitualmente. A idéia geral desses foguetes (disparados por um canhão), somente voltaria a ser abordada na Segunda Guerra Mundial, pelos alemães, em desenvolvimento independente. A marinha, no Arsenal do Rio de Janeiro, também manteve um programa de pesquisa e desenvolvimento, com a construção de navios e motores nacionais, destacando-se o projeto do engenheiro Trajano, da corveta que levou o seu nome, lançada em 1872. Esta tinha uma revolucionária linha de casco, que lhe dava uma bom desempenho hidrodinâmico, a ponto de ter sido copiada no exterior.
Entretanto, esses desenvolvimentos podem ser vistos mais como os últimos sinais de atividades resultantes de pesquisas nas forças armadas, já que estas foram se restringindo cada vez mais. Em 1874, foi criada a Escola Politécnica, separando o curso de engenharia civil dos estudos militares o que, se foi bom para o país, serve para demonstrar o pouco interesse que a formação acadêmica voltada para a área técnica passou a ter no Exército. Mais tarde, na década de 1890, a Comissão de Melhoramentos viria a ser extinta e o golpe final viria em 1897, no meio das confusões das operações de Canudos. Nesse ano, foi considerada necessária uma reação aos problemas causados pelos oficiais "tarimbeiros", sem os conhecimentos técnicos e administrativos necessários à campanha, bem como aos "doutores", incapazes de lidar com os problemas práticos das forças em operações. Dessa forma, o congresso autorizou "a reorganização dos estabelecimentos de ensino militar, devendo reduzir os estudos teóricos e ampliar os práticos...", ficando o curso da Academia Militar reduzido a apenas dois anos, inclusive para os oficiais técnicos. No caso dos engenheiros, estes passaram a ser o que hoje chamamos de "engenheiros de combate", oficiais que aprendem o necessário para o exercício das atividades em situações de combate, como construção de pontes ou estradas, sem ter o mesmo tipo de formação de um engenheiro civil.
O resultado de todos esses problemas foi um longo período de descaso para a pesquisa científica local, pelo menos dentro das forças armadas, tendo chegado a haver a proposta de se extinguir o curso de engenharia de combate, os candidatos a profissão devendo ser enviados para estudar no exterior. Essa situação só se viria a alterar com os projetos nacionalistas da década de 1930 e com a percepção de que era necessário aperfeiçoar o treinamento dos oficiais e soldados, tanto é que são abertas diversas escolas voltadas para o ensino profissionalizante, como a Escola de Motomecanização e a de Artilharia de Costa e Antiaérea. Mais importante para o assunto que estamos falando, em 1930, começou a funcionar a Escola de Engenharia Militar (posteriormente Escola Técnica do Exército), estabelecimento voltado para formação de engenheiros mais completos que aqueles formados pela Academia Militar.
O pessoal da Escola Técnica do Exército, já com a nova visão de que era necessário desenvolver o país, passou a ter uma atividade voltada para a formação técnica, mas sem os erros cometidos com os antigos "doutores" do século passado. A instrução era voltada para as necessidades do exército, mas também para a pesquisa e desenvolvimento, junto com o Instituto Militar de Tecnologia (fundado em 1941 e que foi fundido com Escola Técnica em 1959, para criar o atual Instituto Militar de Engenharia). É o pessoal dessas instituições que permite a instalação de diversas fábricas necessárias à produção local de material bélico, como a fábrica de Itajubá (fuzis), a fábrica de munições do Andaraí, a de veículos, de Curitiba, e assim por diante.
Mas não era apenas nos aspectos técnicos que se concentravam as atividades de pesquisa. O programa aeroespacial do exército, por exemplo, foi iniciado em 1947, o Instituto Militar de Engenharia tendo produzido 36 diferentes projetos de foguetes, incluindo o primeiro com motor de propelente líquido. Estas atividades servem como marco de uma mudança de mentalidade de pesquisa, tendo resultado prático, demonstrado pelos grandes sucessos da indústria de armamentos brasileira das décadas de 1970 e 1980, pois os desenhos produzidos pela indústria civil e vendidos em grandes números para o exterior foram oriundos de pesquisas desenvolvidas por engenheiros e pesquisadores do exército, sendo esses projetos repassados depois para a iniciativa privada, alguns dos quais ainda são sucesso comercial hoje em dia.
Adler Homero Fonseca de Castro é mestre em história, pesquisador
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Curador
de Armas Portáteis do Museu Militar Conde de Linhares.
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