Mundo teme armas químicas e biológicas
O ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro do ano passado,
pôs à prova a eficiência do sistema de segurança dos Estados Unidos,
aumentou o temor que já existia em relação ao terrorismo e também
a preocupação de que armas químicas e biológicas sejam usadas por
terroristas contra a população norte-americana.
É certo que o ataque de 11 de setembro pode ser considerado um evento
histórico, por ter provocado o maior número de vítimas instantâneas,
comparado a outros crimes da história. A preocupação em relação
às armas não-convencionais também é justificável, principalmente
depois das cartas com carbúnculo (ou antraz), que mataram cinco
pessoas nos Estados Unidos, pouco depois do atentado às torres gêmeas.
"Uma avaliação do Escritório de Avaliação Tecnológica, realizado
em 1993, concluiu que 100 quilogramas de antraz espalhados por uma
cidade como Washington, causaria entre um e três milhões de mortos
- algo semelhante ao dano causado por uma bomba radioativa como
a de Hiroshima", afirma a infectologista brasileira Luciana Borio,
do Centro de Biodefesa da Universidade Johns Hopkins, de Maryland,
Estados Unidos.
Esta afirmação revela o grande poder de destruição de uma arma biológica
o que justifica o pavor em relação a elas e desperta os países que
se sentem mais ameaçados, seja por razões políticas, religiosas
ou outras. "O risco é diferente em cada país. Uma epidemia de varíola
nos Estados Unidos se transformaria num problema mundial, pois o
tempo de incubação é de 7 a 17 dias, tempo suficiente para que os
americanos ou turistas levem, em suas viagens, a doença para outros
países", afirma Borio, que alerta para o fato de que todos os países
precisam estar preparados para evitar uma catástrofe caso ocorra
um ataque.
São consideradas armas biológicas, bactérias ou vírus que tenham
a propriedade de provocar doenças graves e que possam conduzir a
pessoa infectada à morte. Além da capacidade de matar a vítima,
alguns desses germes são transmissíveis, seja pelo ar, ou pelo contato
pessoal, podendo se alastrar rapidamente. Entre os germes mais conhecidos
como prováveis armas estão o próprio carbúnculo (ou antraz), os
vírus da varíola (Poxvirus variolae) e do Ebola (uma família
de vírus que podem causar uma doença mortal), a bactéria do botulismo
(Clostridium botulinum), a bactéria causadora da peste bubônica
(Yersinia pestis) e a bactéria causadora da tularemia (Francisella
tularensis).
Esses agentes podem ser usados tanto em sua forma natural como podem
ser modificados em laboratório, para potencializar o seu efeito
ou para encontrar formas que possam ser disseminadas mais facilmente.
Luciana Borio diz que se o vírus da febre amarela fosse usado como
arma biológica, causaria um dano muito sério. Já a varíola, mesmo
em sua forma natural, é terrível, segundo a infectologista. Já o
antraz, precisa ser transformado em laboratório para tornar-se uma
arma perigosa.
Outras características, além das já apontadas, garantem eficácia
às armas biológicas, entre elas, o chamado "fator surpresa", pois
não há como prever um ataque com essas armas. A razoável facilidade
de acesso a esses agentes e a difícil identificação do criminoso
também são fatores preocupantes, a não ser em casos em que o próprio
causador se identifique, o que pode ocorrer em ataques terroristas.
Para Paulo Queiroz Marques, pesquisador-doutor do Centro de História
e Filosofia da Ciência e da Tecnologia, da USP, o eventual uso de
armas químicas e biológicas restringe-se a esse fator surpresa,
sem a preocupação precípua de atingir um grande número de pessoas.
O próprio ataque de 11 de setembro mostra ser bastante plausível
a hipótese de Marques, uma vez que, apesar de saber do grande poder
de destruição que os aviões causariam ao chocar-se contra as torres
do prédio, os terroristas escolheram um horário de baixo afluxo
de pessoas nas torres gêmeas. "Mesmo os casos de contaminação por
carbúnculo não se deram em grande número", completa o pesquisador.
Mas em outros tempos, esse tipo de arma foi usado realmente com
o intuito de eliminar um grande número de pessoas e os responsáveis
não eram terroristas. Em muitas guerras, os exércitos usaram armas
biológicas para eliminar a maior quantidade possível de soldados
inimigos. Nas colonizações, os nativos foram muitas vezes aniquilados
pelos colonizadores com a introdução de vírus e substâncias químicas
que facilitaram a ocupação das terras.
Mas o mundo todo tem se preocupado com esta questão. Desde 1925,
os países vêm fazendo acordos para que esse tipo de arma não seja
usado em hipótese alguma. Não só pelos terroristas, mas também pelos
exércitos oficiais.
O mais importante protocolo, hoje, é a Convenção
para proibição de armas químicas, que reafirma os termos do
protocolo de Genebra, de 1925, o qual proíbe o uso de armas químicas,
biológicas, e também da Convenção de 1972, que determina a destruição
dos agentes biológicos e toxinas utilizados para fins militares,
harmonizando-se com esses acordos multilaterais. A Convenção reconhece
também a proibição do uso de herbicidas como método de guerra, conforme
estabelecida em outros instrumentos internacionais, e expressa o
desejo dos Estados-Partes em garantir o desenvolvimento econômico
e tecnológico da química para fins não proibidos.
Marques afirma que essas assinaturas se deram sob forte influência
dos Estados Unidos, nação que, em suas palavras, "se reserva o direito
de usar agentes desfolhantes na Guerra da Coréia e do Vietnã e de
gastar mais de 1 bilhão de dólares para caçar um único homem: Osama
Bin Laden, missão para a qual, até agora tem se mostrado pouco eficiente.
Eles são incompetentes e prepotentes".
Atualmente, vigoram dois mecanismos de limitação do suprimento de
armas químicas - os Regulamentos de Administração das Exportações
(RAE) e os Regulamentos sobre o Tráfico Internacional de Armas (RTIA),
ambos propostos pelos Estados Unidos e o último administrado pelo
Departamento de Comércio daquele país. "Vale lembrar que tais regulamentos
preceituam a restrição de exportação de insumos para qualquer destino,
com exceção dos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan), Austrália, Áustria, Irlanda, Japão, Nova Zelândia e Suíça.
Esses regulamentos não são eficazes, porque a maior parte das matérias-primas
e equipamentos fornecidos pelos países desenvolvidos também têm
aplicações declaradamente civis", diz o pesquisador da USP.
Marques exemplifica sua afirmação, contando que o oxicloreto de
fósforo, um produto utilizado na fabricação do tabun, agente
paralisante do sistema nervoso, é também usado em uma série de processos
e produtos legítimos da indústria química, inclusive de síntese
orgânica, plastificantes, aditivos para gasolina, fluídos hidráulicos,
inseticidas e silício puro para semicondutores. O cloreto de tionila
é outro componente para vários agentes de armas químicas (três agentes
paralisantes nervosos, dois tipos de gás mostarda de enxofre e três
outros à base de nitrogênio). Por outro lado, a maioria dos equipamentos
industriais usados na produção de armas químicas (como reatores,
unidades de condensação, destiladores, etc.) servem também para
a fabricação de produtos farmacêuticos. Para ele, negar sua exportação
é difícil, quando os países importadores podem argumentar que serão
usados na produção de medicamentos. Há, ainda, segundo Marques,
a necessidade legítima de os países em desenvolvimento empregarem
esses produtos na produção de pesticidas e fertilizantes. Dependendo
de como as fábricas forem projetadas, sua conversão para plantas
de produção de armas químicas pode se dar em poucos dias ou algumas
poucas dezenas de horas.
Marques ressalta que não é necessária a existência de infra-estrutura
sofisticada para a fabricação da maioria das armas químicas. Prova
disso é que nos anos 80, a Índia exportou produtos químicos para
o Irã. Ele menciona ainda um acontecimento ocorrido por volta dos
anos 90, que comprova a razoável facilidade em produzir armas químicas
pelos países em desenvolvimento. Na segunda metade da década de
80, o Iraque construiu uma planta de refino de petróleo em Musayyib,
ao sul de Bagdá. O petróleo era, então, transformado em produtos
químicos como o etileno e seus derivados. Um desses derivados era
o óxido de etileno, usado na fabricação de anticongelantes para
radiadores de automóveis, mas usado, também, na produção do tiodiglicol,
um dos componentes do gás mostarda. Com isso, o Iraque não mais
dependeria de importações. De dependente, transformou-se em exportador
do produto e suspeita-se fortemente que ele tenha fornecido armas
químicas para o Sudão, seu aliado. "Esses exemplos demonstram que
a produção de grande parte das armas químicas não apresenta maiores
dificuldades técnicas ou tecnológicas e que estão, portanto, ao
alcance de países fracamente industrializados. Logo, a ameaça de
ataques com esse tipo de armas é real e palpável e o perigo realmente
iminente", garante Marques.
Segurança, pesquisa e publicação
Luciana Borio diz que há uma preparação enorme do governo dos Estados
Unidos para proteger a população de possíveis ataques terroristas
com armas químicas e biológicas. "É impressionante o que um país
organizado e rico é capaz de fazer em tão pouco tempo", salienta.
Um recente estudo realizado pela equipe de Borio, sob sua coordenação,
publicado em maio pela revista Journal
of American Medical Association (JAMA), traz recomendações
aos profissionais de saúde sobre como agir no caso de um ataque
bioterrorista com vírus causadores de febres hemorrágicas, como
o Ebola. A falta de familiaridade dos médicos com o tratamento e
o diagnóstico dessas doenças pode contribuir para o rápido alastramento
da epidemia, o que pode ocorrer entre dois e 21 dias após o ataque.
Entre as conclusões do estudo, está a de que há uma necessidade
urgente de desenvolvimento de vacinas e novos tratamentos. "No caso
de um ataque bioterrorista, o mais provável seria o uso de agentes
como a varíola ou o antraz, mas temos que estar preparados para
outras hipóteses", afirmou Borio, em entrevista para o Jornal O
Globo, publicada no Jornal
da Ciência On-Line.
Mas a questão da vacinação também é polêmica em algumas situações,
como no caso da varíola. A própria Luciana Borio lança a pergunta:
"devemos vacinar a população contra uma doença erradicada, sabendo
que a vacina tem efeitos colaterais sérios (até mesmo a morte)?"
A varíola é uma doença que no passado assustou o mundo, principalmente
pelo seu grau de letalidade. Ela mata 30% das vítimas que a contraem
e deixa o restante delas deformadas. O mais grave é que não há um
tratamento para essa doença, mas a vacinação logo após a exposição
ao vírus deve evitar que ela se desenvolva.
A doença foi erradicada em 1978, mas ainda existem estoques do vírus
armazenados. Há dois anos, o principal comitê de saúde da Organização
das Nações Unidas (ONU) estabeleceu que, em 2002, os estoques do
vírus seriam destruídos, mas após o ataque aos Estados Unidos, a
Assembléia Mundial de Saúde, pertencente à Organização Mundial da
Saúde (OMS), decidiu que os estoques sejam mantidos até 2005. Oficialmente,
os dois únicos países que estocam o vírus da varíola são os Estados
Unidos e a Rússia, mas as autoridades não duvidam que o vírus possa
estar também em outras mãos.
Aliás, desde o desmembramento da União Soviética e com o fim da
Guerra Fria, surgiram suspeitas de que muitos cientistas soviéticos,
que ficaram sem emprego, teriam sido contratados pelos países que
financiam também os terroristas, tanto para produzirem armas químicas
quanto biológicas, o que faziam antes em seu antigo país. Dentre
esses países, os que levantam maiores suspeitas são Iraque e Irã.
Mas vários outros poderiam fazer o mesmo. São países que admitem
ter estoques ou produzir armas químicas e biológicas, tais como
China, Israel, Líbia, Síria e Taiwan.
Essa relação da ciência com o desenvolvimento de armas químicas
e biológicas vai muito além do debate já costumeiro. O conhecimento
científico pode fornecer subsídios para que se desenvolva um antraz
resistente a vários antibióticos, por exemplo, ou uma varíola resistente
à vacina. Isso pode ocorrer deliberadamente ou acidentalmente, no
decorrer de pesquisas com o fim de desenvolver novos tratamentos
ou vacinas.
Nesse sentido, Borio reconhece que é preciso haver uma discussão
sobre o que deve ser publicado nos artigos científicos, sabendo
que há o risco de se propagar um conhecimento que poderia ser prejudicial
à segurança da saúde da população. "Não sou a favor da censura,
mas é preciso haver um diálogo entre os cientistas para se estabelecer
uma posição ética em relação à pesquisa com potencial dark (que
possa ser usada contra a saúde da população e não a favor), antes
mesmo que uma censura seja imposta, à revelia dos envolvidos".
Situação no mundo e no Brasil
O principal alvo dos ataques bioterroristas são, segundo o professor
Paulo Queiroz Marques, da USP, os EUA e seus aliados, como conseqüência
tanto da Guerra do Golfo como do massacre ao Afeganistão. Contudo,
diz ele, o temor é generalizado. "Tanto que minha recente viagem
à Ásia, demonstrou que o controle no embarque dos vôos nos países
socialistas (China e Coréia do Norte) e nos ex-socialistas (Mongólia
e Rússia) é bem mais rigoroso que nos países da Europa Ocidental
(refiro-me aos dois em que permaneci: Holanda e França). Na Rússia,
por exemplo, antes do embarque, houve revista corporal (mas, sem
constrangimento)".
Quanto ao Brasil, Marques considera difícil equacionar uma saída
ética e honrosa para o problema. Em primeiro lugar porque o segmento
bélico, segundo ele, é caracterizado pela mais absoluta falta de
ética, o que fica muito claro se considerarmos a Guerra Irã-Iraque.
Ele conta que o Brasil fornecia os mesmos equipamentos e peças de
reposição para os dois países. E isso custou muito caro aos fornecedores
brasileiros. Tanto que a Engesa e a Avibrás "quebraram" quando o
doloso expediente foi descoberto pelos iranianos e pelos iraquianos.
Conclusão, as duas empresas receberam o "calote" no pagamento de
suas dívidas.
O Brasil possui ainda uma vasta quantidade de germes causadores
de doenças contagiosas, capazes de causar grandes prejuízos à população,
tanto humana quanto animal, o que poderia torná-lo um produtor de
armas biológicas. O vírus brasileiro Sabiá é um exemplo. Ele foi
incluído no estudo coordenado por Luciana Borio, publicado no JAMA,
como um dos potenciais agentes utilizados pelo bioterror, bem como
o Marburg, da febre de Lassa, e o vírus da febre amarela.
Mas o país está comprometido com os demais Estados-Partes da Convenção
para a proibição de armas químicas e biológicas, não podendo assim,
desenvolver, produzir, estocar ou conservar armas químicas, bem
como transferi-las a quem quer que seja, utilizá-las ou ajudar a
realizar atividades proibidas pela Convenção. Apesar disso, o Brasil
necessita de mecanismos legais e transparentes, envolvendo rígido
controle do Congresso e de segmentos da sociedade civil, como a
comunidade acadêmica e empresários comprovadamente nacionalistas,
para cumprir sua parte no acordo.
Veja também:
Armas biológicas e químicas já foram usadas
em outras guerras e ataques terroristas
"Usar substâncias químicas e agentes biológicos como armas não
é uma novidade dos últimos tempos. Desde a antigüidade, os militares
já se encantavam pelo poder das armas biológicas. Durante a dominação
romana..."
Para saber mais:
Sobre armas químicas, no site de Cláudio
Gonçalves, estudioso do assunto.
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