A automatização do campo de batalha
Quando, em 1939, Alan Turing é convocado pelo Intelligence Service
britânico para desvendar o segredo das Enigma alemãs (máquinas
eletromecânicas produtoras de códigos cifrados), a participação
dos precursores da informática no esforço de guerra já estava bem
definida, como lembra o sociólogo Armand Mattelart, em seu último
livro História da Sociedade da Informação[1].
Nessa época, salienta o autor, três frentes contribuíram para o
progresso da computação: a decifração da correspondência do inimigo,
as tabelas de tiro para uso da artilharia aérea (cálculo balístico)
e a bomba atômica (com o projeto Manhatan). O modelo americano de
pesquisa, criado pelo US National Defense Research Committee
e confirmado mais tarde pelo National Security Act, pregava
a sinergia de esforços. Tudo em prol da "automatização do campo
de batalha", conforme a expressão de Mattelart. Os projetos não
eram puramente militares, mas sim de cooperação: civis-militares,
setor privado-setor público.
É nesse contexto que surgem os think tanks, centros de pesquisa
e de formação de pesquisadores, onde "especialistas das ciências
sociais, economistas, matemáticos, engenheiros, físicos são chamados
a compartilhar seus conhecimentos", fazendo surgir uma nova função,
a do "militar intelectual", diz Mattelart, que serve de conselheiro
aos órgãos de defesa e circula com intimidade pelos corredores do
Pentágono e do Departamento de Estado.
Diversas tecnologias computacionais, como a tradução automática
de textos e a criptografia, são decorrentes do esforço de guerra
e de projetos desenvolvidos nos think tanks, que aliás sobreviveram
ao pós-guerra, adquirindo novas funções. Recentemente, essas instituições
se proliferaram e hoje há mais de 280 delas espalhadas pelo mundo,
mas sua natureza política e social varia consideravelmente de país
para país, como afirmam os autores do NIRA's World
Directory of Think Tanks, publicação do National Institute
for Research Advancement (NIRA), organização fundada por empresários
e pesquisadores, em 1974, no Japão.
O contexto militar em que a computação se desenvolve, na esteira
da Segunda Grande Guerra, vai se modificar algumas décadas mais
tarde, dando lugar a novas funções dessa ciência, dentro do que
viria a ser chamado de "sociedade da informação". Com o fim da corrida
espacial, nos anos 70, outros argumentos passam a sustentar o desenvolvimento
da computação. A "conversão" das tecnologias informáticas ao âmbito
civil dará suporte, afirma Mattelart, ao slogan da "revolução das
comunicações". A tecnologia é então associada à queda de fronteiras
geográficas, à aproximação de indivíduos espacialmente dispersos,
à diminuição das restrições de tempo, a novas formas de "sociabilidade".
No entanto, os vínculos entre computação e estratégias militares
não desaparecem, embora talvez sejam mais tênues no período que
sucede à Guerra Fria.
Uma palavra-chave se destaca nesse novo período: "informação" ou,
mais precisamente, "guerra de informação". No campo da inteligência
artificial, uma idéia é desenvolver sistemas inteligentes, a partir
de "bases de conhecimento", que possam ser utilizados em diversas
aplicações estratégicas: recuperar dados; ensinar e treinar estudantes;
auxiliar na decisão, propondo soluções para problemas específicos;
etc. Um exemplo é o "agente discípulo", desenvolvido pelo Grupo
de Engenharia de Conhecimento do U.S. Army War College,
para determinar o centro de gravidade de um problema (normalmente
uma guerra ou outro tipo conflito). O centro de gravidade é o ponto
nevrálgico de um sistema, para o qual convergem todas as energias
e cuja destruição tem por fim desestabilizar o inimigo num conflito.
Um "agente discípulo" é um programa inteligente, que visa a permitir
que o especialista de um domínio construa "por si próprio" uma base
de conhecimentos e um sistema de solução automática de problemas.
Sem essa ferramenta, normalmente o especialista passa suas informações
ao engenheiro de computação que, por sua vez, constrói uma base
de conhecimentos a partir dos dados inicialmente fornecidos. O primeiro
possui o conhecimento do assunto, sabe como resolver o problema.
O segundo possui o conhecimento de como formalizá-lo, descrevendo
e explicitando critérios e procedimentos, utilizando-se da programação
informática para isso. No processo tradicional, "o engenheiro tenta
compreender como o especialista raciocina e resolve problemas e,
em seguida, codifica esses conhecimentos num sistema de base de
conhecimentos. Depois, o especialista revê as soluções propostas
pelo sistema ou, por vezes, a própria base, para identificar erros,
que são depois corrigidos pelo engenheiro", conforme explicam os
pesquisadores do KEG, no site
da instituição. "Com o agente discípulo", continuam, "o objetivo
é permitir a especialistas de um domínio e a comuns usuários de
computador desenvolver e manter bases de conhecimento, tão facilmente
quanto eles usam computadores para processamento de textos".
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No processo tradicional
(acima), é preciso a intervenção do engenheiro
de computação para a montagem da base de conhecimentos
e do programa. Com o agente discípulo (abaixo), o próprio
especialista treina o programa. Fonte: KEG/US
Army War College |
Neste caso, o especialista/usuário é "guiado" pelo discípulo para
descrever os aspectos relevantes de um "ambiente estratégico" e
o agente constrói, a partir daí, uma representação formal desse
ambiente. O diálogo homem-máquina tem de ser o mais natural possível.
Em seguida, o especialista ensina ao agente como desempenhar várias
tarefas, de maneira semelhante à que ele ensinaria a uma pessoa.
O agente, aprende com o especialista, construindo, verificando e
melhorando sua base de conhecimentos. Uma vez "treinado", o agente
formula soluções para o usuário a partir de problemas que este lhe
coloca, como descrevem os autores.
Desse modo, o agente inteligente pode ser utilizado tanto pelo usuário
especialista que o treinou, como assistente na resolução de problemas,
como pelo não-especialista, para resolver problemas, pelo estudante,
como tutorial, etc.
Um outro exemplo de agente inteligente, desta vez sem fins militares,
é o Olimpo,
que se presta a buscas sofisticadas na base de resoluções do Conselho
de Segurança da ONU. Ele foi totalmente desenvolvido no Brasil,
por uma equipe do curso de Engenharia de Produção da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi eleito como um dos 20 melhores
trabalhos científicos em Inteligência Artificial e Direito pela
Conferência Internacional de Inteligência Artificial e Direito (ICAIL,
em inglês), durante dois anos seguidos, 1999 e 2001.
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O programa Olimpo, que
permite buscas avançadas no arquivo do Conselho de Segurança
da ONU, tem uma demonstração disponível
na Internet. Fonte: IJURIS |
O responsável pelo projeto, Hugo Hoeschl, professor convidado da
UFSC e membro do Conselho Científico do Instituto Jurídico de Inteligência
e Sistemas (IJURIS),
explica que o Olimpo foi escolhido por sua grande eficácia em fazer
busca de documentos em grandes bases de dados, com alto grau de
precisão. Isto porque o programa permite utilizar como "palavra-chave"
um texto de até 2.300 palavras. Com isso, o resultado da busca é
muito mais preciso, pois os documentos retornados são os que mais
se aproximam do texto completo. Através de técnicas de pesquisa
contextual estruturada, recuperação textual e raciocínio baseado
em casos, o Olimpo reconhece os documentos da base que melhor se
relacionam com os termos da busca (veja a tela de busca do programa
na imagem abaixo). "Trata-se de um sistema baseado em conhecimento,
que faz uma busca inteligente de documentos, comparando-os entre
si e retornando ao usuário uma lista hierárquica, por graus de similaridade",
explica Hoeschl.
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Na primeira tela (acima)
o Olimpo permite entrar com uma "palavra-chave" de
até 2300 caracteres e também escolher filtros.
Em seguida, os resultados são apresentados hierarquicamente,
com um significativo resumo ao lado. Fonte: IJURIS |
Embora o Olimpo não faça parte de um projeto militar, Hugo Hoeschl,
reconhece que a pesquisa tecnológica, inclusive a com fins militares,
é importante para a soberania do país. "Não há como ter controle
sobre a Amazônia sem tecnologia avançada. E os projetos para essa
área incluem interesses de defesa nacional", afirma. "Entretanto",
diz, "ficaria feliz se ficássemos apenas na guerra tecnológica e
de informação, sem prejuízos materiais e financeiros para os países".
No campo das aplicações militares da computação, a criptografia
é certamente um dos ramos que mais se desenvolveu (veja artigo
nesta edição). O setor é tão importante e estratégico que somente
há cerca de dois anos foi liberada a exportação de programas de
criptografia nos EUA. Até então, a lei proibindo o envio desses
programas era tão rigorosa que dissuadia os produtores a fazerem
até mesmo vendas domésticas, argumenta o jornalista Paul Wallich,
em uma matéria
sobre privacidade na Internet, publicada em Scientific American.
Quanto à inteligência artificial, embora ela não esteja ligada em
suas origens à pesquisa militar (ao contrário, justamente, da criptografia
e do cálculo balístico), como nota Jacques Wainer, professor do
Instituto de Computação da Unicamp, algumas aplicações podem efetivamente
ser mencionadas. Segundo ele, nos anos 60, a tradução automática
de textos (sobretudo do russo para o inglês), mais tarde abandonada
por não apresentar avanços significativos. Nos anos 70, o processamento
de imagens e reconhecimento de objetos (por exemplo, tanques de
guerra), que começou como pesquisa da área de inteligência artificial,
ainda que já não se auto-denomine da mesma forma. Nos anos 80 e
90, o desenvolvimento de multi-agentes (programas inteligentes)
e o reconhecimento de sinais, como no caso do projeto Sivam
(veja reportagem nesta edição).
A automatização do campo de batalha ganhou novas nuances, mas o
interesse estratégico da computação parece continuar presente, como
décadas atrás.
(M.M.)
Nota:
1. Mattelart, A. (2001). Histoire de la Société
de l'Information. Paris:La Découverte. [voltar]
Para
saber mais |
- Cryptography
FAQ
Arquivos da lista sci.crypt. A ser melhor avaliado. Parece
interesse, com participantes de alto nível, pesquisadores
ligados a grandes universidades americanas.
- Atech
Empresa brasileira conveniada com a americana Amazontech,
que desenvolve modelagem matemática, programas de tratamento
e gerenciamento de imagens de satélites e outras tecnologias
para o projeto Sivam, com objetivos de defesa do território
nacional.
- Gateway
to International Studies - Regional Studies (Think Tanks)
Site governamental (militar) do US Air War College, onde
se encontra uma lista de think tanks e outros recursos relacionados
ao assunto (listas de discussão, documentos on line, etc).
- "TRADUÇÃO
AUTOMÁTICA AINDA UM ENIGMA MULTIDISCIPLINAR"
Artigo de Milena de Uzeda Garrão (PUC-Rio), sobre o surgimento
e características da Lingüística Computacional e da pesquisa
em tradução automática
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