Medicina de guerra e de emergência são semelhantes
A medicina de emergência foi, no princípio, um esforço exclusivo da medicina
militar. Era necessário cuidar dos feridos e, para isso, havia durante
os combates uma equipe responsável por socorrê-los e levá-los a
um lugar seguro para as devidas atenções. Atualmente, os hospitais
de emergência, em que muitos dos atendimentos se assemelham aos
prestados em um fronte de guerra, são uma necessidade inquestionável
da vida civil.
Descobertas
científicas ajudaram
a salvar feridos de guerra (veja texto)
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Foi no século XVI que começaram a surgir os primeiros especialistas
em medicina de guerra. Nesse tempo, as tensões nos combates haviam
aumentado muito, em conseqüência do uso da pólvora. Foi também nesse
período que apareceram os modelos pioneiros de ambulâncias para
transportar feridos. O cirurgião francês, Ambroise Paré (1510-1590),
foi o criador das primeiras formas de ambulâncias, movidas por cavalos.
Entretanto, alguns países, como é o caso da Argentina, só foram
aplicar as técnicas de medicina de guerra muito mais tarde, no século
XX. Quando houve a Guerra das Malvinas não havia antecedentes de
aplicação da medicina de guerra no país e tampouco médicos que pudessem
transmitir suas experiências de assistência a feridos em combates.
"Em Malvinas muitas vezes se teve que improvisar", afirmam os médicos
José R. Buroni e Enrique M. Ceballos, autores do livro La medicina
em la Guerra de las Malvinas. Nesse livro, editado em 1992,
os médicos contam o trabalho desenvolvido no Hospital Militar de
Puerto Argentino, improvisado em edifício construído para hotel.
Durante a existência desse hospital (de 12 de abril a 15 de junho
de 1982) foram internados quase dois mil pacientes, mais de 80%
com patologias relacionadas diretamente com os combates.
Em um trecho do livro, os médicos afirmam que a partir da experiência
cirúrgica no hospital Militar de Puerto Argentino houve uma mudança
de mentalidade, de hábitos e de técnicas no atendimento de urgência.
É a medicina de guerra servindo de base para a medicina de emergência.
Médicos brasileiros se sentem na guerra
Atender a um número cada vez maior de pacientes com ferimentos graves
em função do uso de armas mais potentes deixa os médicos de hospitais
de emergência brasileiros com a impressão de que estão em um campo
de batalha. A afirmação: "entrar na emergência é como um treinamento
para a guerra" é comum entre médicos dos hospitais Miguel Couto
e Salgado Filho, no Rio de Janeiro.
O Claves
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Um dos temas de estudo do Claves é
a Violência e seu impacto na Saúde. As pesquisas do Centro
buscam identificar os grupos mais vulneráveis e definir
sobre quais a violência incide com maior gravidade, tendo
como finalidade a formulação de políticas públicas. O Claves
participou, por exemplo, da elaboração da Política Nacional
de Prevenção à Acidentes e Violência, publicada pelo Ministério
da Saúde, em maio de 2001.
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Mas quem pensa que essa observação foi feita há
alguns dias, após os recentes confrontos entre narcotraficantes
e policiais nas favelas cariocas, está enganado. Em 1996, pesquisadores
do Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde
(Claves), grupo da Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), acompanharam
durante um mês, em cada um dos hospitais, as equipes de plantão
(diurno e noturno) e verificaram que o agravamento da violência
já era percebido pelos médicos. "Os resultados apontaram para o
crescimento da violência. Os médicos têm consciência da mudança
da gravidade dos ferimentos, estão lidando com pacientes feridos
com fuzis e granadas, armas usadas em guerra e com uma destruição
física maior", afirma Edinilsa Ramos de Souza, coordenadora executiva
do Claves. Outra constatação, segundo ela, é de que o fenômeno da
violência está obrigando os hospitais de emergência a se expandirem,
tanto em espaço físico quanto em recursos humanos.
A realidade dos serviços de emergência do Rio de Janeiro é a mesma
dos hospitais de São Paulo, Recife e Vitória. No caso do Rio de
Janeiro, a maioria dos feridos por arma de fogo é vítima do narcotráfico,
mas há também feridos em conflitos interpessoais, como os provenientes
de discussões no trânsito, em bares e com vizinhos. "Esses conflitos
acontecem em função do acesso fácil à arma de fogo. O que antes
não passaria de um briga física se tornou uma ação mais grave, quando
não letal", avalia a pesquisadora do Claves.
Brasil mais difícil que na guerra
O coordenador de saúde do movimento Médicos
Sem Fronteira, Mauro Nunes, já trabalhou em duas áreas de guerra,
em Angola e Moçambique (África), mas, no entanto, considera mais
difícil o trabalho realizado na zona urbana do Rio de Janeiro. "Na
guerra você sabe onde é a fronteira, onde está cada lado, a hora
que pode cruzar a fronteira, a hora da troca da guarda e até a hora
do bombardeamento. Na realidade atual do Rio, não se sabe a hora,
quando e nem onde vai estourar um tiroteio. Você pode estar em casa,
dentro do carro ou na rua e levar uma bala perdida", comenta.
Embora tenha chegado em Moçambique no período de reconstrução do
país, Nunes ainda acompanhou as divergências entre o partido dos
rebeldes e do governo. Ele prestava serviços na área dominada pelos
rebeldes e morava na área do governo, o que o obrigava a cruzar
o fronte todos os dias. O que mais o impressionou foi perceber o
quanto a guerra "animaliza" os seres humanos. A guerra, na opinião
dele, faz com que as pessoas percam seu referencial de humanidade
e cometam atos de imensa brutalidade de que não seriam capazes em
situações normais.
Essas mesmas reações de "animalidade e irracionalidade" comum nas
guerras, Nunes encontra nos conflitos urbanos do Rio de Janeiro.
"Nas favelas se ouve certas histórias de assassinatos com requintes
de brutalidade semelhantes aos que ocorrem nas guerras. São iguais
aos estupros na Bósnia e às mutilações em Serra Leoa", afirma.
Nos países em guerra, o Médicos Sem Fronteiras presta auxílio aos
feridos e distribui alimentos. No Brasil, o movimento tenta minimizar
a exclusão social, oferecendo aos mais carentes oportunidade de
acesso à saúde. O trabalho teve início, em 1991, na assistência
aos índios Ianomâmis, na Amazônia. Com a implantação dos distritos
sanitários pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e Fundação Nacional
de Saúde (Funasa), as atividades nessa área foram abandonadas.
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Atendimento
do Médicos sem Fronteiras no Brasil. Fonte:MSF |
Atualmente, os 25 profissionais brasileiros e dois estrangeiros
estão concentrados na região Sudeste. No Rio, trabalham nas comunidades
carentes de Vigário Geral, Costa Barros, Barros Filho e Acari, bem
como com moradores de rua do centro da cidade. Antes de estabelecerem
as atividades que vão desenvolver - pode ser assistência domiciliar
ou implantação de posto de saúde - os médicos identificam as necessidades
de cada população.
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