Robótica
aérea
Samuel
Siqueira Bueno
Uma
introdução ao assunto
De uma forma
geral, veículos robóticos abrangem sistemas aéreos, terrestres
e subaquáticos. Na sua forma mais simples, esses sistemas podem ser
operados remotamente, ou seja, controlados à distância por um
operador humano, o tempo todo, para desempenhar determinada tarefa. Atualmente,
a pesquisa e desenvolvimento em veículos robóticos enfoca em
muito o aspecto de execução autônoma de atividades que
são atribuídas a esses sistemas. Para esse funcionamento autônomo,
o sistema robótico deve perceber a sua própria situação
e aquela do ambiente onde ele evolui, tomar decisões de maneira independente
e movimentar-se para cumprir a tarefa que lhe foi atribuída, sem precisar
da dependência constante de um operador humano, ou então agindo
em cooperação com esse operador.
Esses
sistemas robóticos aéreos são comumente denominados Veículos
Aéreos Não-Tripulados (VANTs) ou, em Inglês, Unmanned
Aerial Vehicles (UAVs). Em termos de aeronaves, têm-se principalmente
aviões, helicópteros e dirigíveis, existindo ainda propostas
de “aeronaves não convencionais”.
VANTs
(ou um grupo coordenado de VANTs) podem cobrir diferentes áreas de
aplicação, tais como: reconhecimento tático, apoio operacional
e execução de missões em atividades militares; patrulhamento
e monitoração das regiões remotas, fronteiras e áreas
costeiras; segurança e apoio policial; busca e salvamento; operação
em zonas de perigo ou de desastres; mapeamento; prospecção mineral
e arqueológica; levantamento de uso da terra em regiões rurais
e urbanas para diagnóstico e planejamento; estudos agriculturais com
predição de rendimento de colheitas; observação
e contagem de rebanhos; detecção de incêndios e suporte
à sua extinção; pesquisa ambiental e do clima, incluindo
composição atmosférica e qualidade do ar, monitoração
e avaliação de reservas florestais, manguezais áreas
marítimas e limnológicas; a inspeção de estruturas
tais como os oleodutos, linhas da transmissão, represas e estradas;
monitoração e controle de transportes; telecomunicações
e serviços da transmissão; e outras.
Se por um
lado já existem no mercado vários VANTs que funcionam predominantemente
por controle remoto ou com grau limitado de autonomia, por outro lado é
intenso o esforço em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação
(PD&I), na academia e no setor industrial, visando o estabelecimento de
VANTs substancialmente autônomos. Esse esforço é possível
devido aos avanços tecnológicos recentes que levaram à
miniaturização e aumento do desempenho de sensores, processadores
e sistemas de comunicação, o que resulta também em um
aumento na capacidade de carga e na flexibilidade operacional dos VANTs, ampliando
seu potencial de uso como plataformas da observação e da aquisição
de dados em cenários militares, civis e comerciais.
Embora os
VANTs ocupem atualmente uma pequena parcela no mercado aeroespacial, nas décadas
seguintes são previstos crescimentos acentuados da sua importância
e participação no mercado mundial. Estados Unidos, Comunidade
Européia, Israel e Austrália lideram o setor de VANTs; esses
países e outros, como o Canadá, têm estabelecido recentemente
políticas estratégicas de PD&I específicas para o
setor. Nos Estados Unidos por exemplo, cenários para o aprimoramento
de VANTs são apresentados em www.nasa.gov/centers/dryden/pdf/111761main_UAV_Capabilities_Assessment.pdf
para o domínio civil e em www.acq.osd.mil/usd/Roadmap%20Final2.pdf
para o âmbito militar.
No
Brasil, os primeiros esforços na área de VANTs deram-se na década
de 80, quando o Centro Técnico Aeroespacial (CTA) desenvolveu o projeto
Acauã. Nos últimos anos, em competições internacionais
da SAE AeroDesign, foram premiados VANTs rádio-controlados construídos
pela Universidade Federal Do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade de São
Paulo em São Carlos (USP/SC), Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Instituto Tecnológico
de Aeronáutica (ITA) e Centro Federal de Educação Tecnológica
de Minas Gerais (Cefet-MG). Atualmente, e num patamar tecnológico mais
elevado, projetos visando o desenvolvimento de VANTs autônomos são
conduzidos pelos institutos de pesquisa CTA e Centro de Pesquisas Renato Archer
(CenPRA), pelas universidades USP/SC, Universidade de Brasília (UNB),
UFMG, UFRN e pelas empresas Aeromot, Fitec e Prince Air Models; quanto ao
desenvolvimento de sensores (inerciais e GPS) para essas aeronaves, destacam-se
a empresa Navcon e os centros de pesquisa CTA e Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) em São José dos Campos, SP.
No que tange
à estruturação de uma política nacional para o
setor, o Ministério da Defesa estabeleceu suas diretrizes através
da Portaria Nº 606/MD de 11/06/2004, publicada no DOU Nº 112 em
14/06/2004. Atualmente, o Ministério da Defesa e Ministério
da Ciência e Tecnologia trabalham na criação de uma “Comissão
de Coordenação Nacional do Programa VANT”.
Dirigíveis
não tripulados e o Projeto Aurora do CenPRA
Nos
anos 90, o Centro de Pesquisas Renato Archer – CenPRA (órgão
do MCT situado em Campinas, SP), conjuntamente com a Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), participaram do Projeto Helix conduzido pela empresa
Gyron Tecnologia de Santa Catarina. Este projeto tinha como objetivo a criação
de um helicóptero robótico para aplicações de
inspeção e monitoramento.
Em
1996 o CenPRA propôs o Projeto Aurora (de Autonomous Unmanned Remote
Monitoring Robotic Airship), ou seja, um dirigível robótico
autônomo, não-tripulado, para monitoração remota.
Apesar de
serem mais lentos e menos manobráveis que aviões e helicópteros,
dirigíveis necessitam despender menos energia e podem permanecer por
longos períodos em vôo; têm a capacidade pairar no ar sobre
áreas de interesse; podem decolar e pousar verticalmente sem necessidade
de infra-estrutura complexa; apresentam grande capacidade de carga relativa
ao próprio peso e degradam lentamente em caso de falha (usualmente
não caem abruptamente). Essas características, dentre outras,
fazem com que os dirigíveis sejam uma plataforma aérea particularmente
adequada para um amplo conjunto de operações de observação
remota.
Sidney
Pinto da Cunha |
|
Interessante
notar que dirigíveis, ou veículos mais-leves-que-o-ar não
são, em si, algo original. Dentre os brasileiros, em 1709 Bartolomeu
de Gusmão, demonstrou para a corte portuguesa de D. João V a
viabilidade do mais-leve-que-o-ar, pelo que lhe foi concedida carta patente
da sua invenção. Em 1881 houve uma primeira tentativa de desenvolver
um projeto de dirigível no Brasil, por Júlio Cesar Ribeiro de
Souza. De 1898 a 1903, Alberto Santos-Dumont desenvolveu vários dirigíveis,
dentre eles o premiado Nº 3 que, em 1901, voou sobre Paris num percurso
de 11 Km que contornava a Torre Eiffel, demonstrando a dirigibilidade dessa
classe de veículos. Entre 1894 e 1902, Augusto Severo Maranhão
construiu alguns dirigíveis, dentre eles o inovador PAX (Mais detalhes
sobre a história
da aviação).
Se
por um lado o famoso acidente ocorrido em 1937 com o Hidenburg (que tinha
241 metros de comprimento) e a crescente disponibilidade dos aviões
resultou no início de um período de certo ostracismo para os
dirigíveis, a partir dos anos 90 a situação modificou-se.
Existe atualmente um interesse crescente por dirigíveis, focando aplicações
seja de veículos não tripulados - abrangendo desde aplicações
de curta duração a baixas altitudes até as de longa duração
na estratosfera, seja de veículos tripulados - desde os de pequena
dimensão até os de grande porte para o transporte de grandes
cargas. Investimentos importantes em dirigíveis vêm sendo feitos
principalmente nos Estados Unidos, Japão, Coréia e Comunidade
Européia, com forte apoio governamental e em programas estruturados
envolvendo empresas de forte conteúdo tecnológico, centros de
pesquisa e universidades.
Voltando
ao Projeto Aurora do CenPRA, seu início efetivo deu-se em 1997, tendo
como objetivos principais estabelecer tecnologia para a operação
autônoma de veículos aéreos não tripulados, usando
dirigíveis como plataforma, e desenvolver aplicações
de dirigíveis robóticos autônomos em áreas como
sensoriamento remoto, monitoração ambiental e inspeção
aérea.
O
Projeto Aurora foi planejado para ser um programa de longo prazo e de múltiplas
fases, prevendo uma evolução gradual em termos tanto de capacidade
de vôo (através de dirigíveis de maior porte) quanto de
nível de autonomia de operação. O objetivo final é
de se alcançar dirigíveis robóticos substancialmente
autônomos e aptos a realizar aplicações de grande duração,
cobrindo grandes áreas - como sensoriamento e monitoração
da Amazônia, inspeção de milhares de quilômetros
de dutos de óleo, gás e de linhas de transmissão, dentre
outras.
O
projeto tem envolvido interações com potenciais utilizadores
do sistema, numa prospecção que direciona os desenvolvimentos;
citam-se por exemplo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) a Petrobras e a Transportadora Brasileira
Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), bem como grupos de sensoriamento e ecologia
em universidades. Ele tem recebido financiamentos da Fapesp, CNPq, Capes e
Fundos Setoriais.
Atualmente,
o Projeto Aurora usa como plataforma experimental um pequeno dirigível
adquirido na Inglaterra, com corpo inflável (denominado envelope) com
10,5 metros de comprimento, 3 metros de diâmetro máximo e 34
metros cúbicos de volume, que é preenchido com gás hélio.
Ele possui a capacidade para transportar 10 quilos de carga, e sua velocidade
máxima é de aproximadamente 60 km/h. O CenPRA integrou diferentes
sensores - como GPS (Global Positioning System), central inercial, bússola,
medidores de vento e de altitude, câmera de vídeo e outros -
em um computador com sistema Linux em tempo real, e colocou este conjunto
a bordo da aeronave. Estabeleceu também um sistema de comunicação
entre esse computador embarcado e um computador em terra, que é destinado
à programação e operação do veículo.
O CenPRA criou ainda ambientes de simulação a partir de modelos
matemáticos que reproduzem o comportamento dinâmico do veículo.
Esses ambientes de simulação permitem o desenvolvimento, depuração
e validação inicial dos algoritmos; somente depois de estudos
conclusivos eles são implementados no sistema embarcado para testes
e validação experimental com a aeronave. Essa infra-estrutura
– o dirigível, os sistemas embarcado, em terra e de comunicação,
e os ambientes de simulação, constituem a base para o desenvolvimento
do Projeto Aurora.
Um
dos domínios de pesquisa desenvolvido até o momento consiste
em métodos de controle e guiamento, cujo software implantado no computador
de bordo permite ao dirigível percorrer automaticamente trajetórias
definidas pelo operador em terra; essas trajetórias são especificadas
como “pontos de passagem” (expressos como coordenadas de latitude
e longitude) e perfis de altitude entre eles. Vôos experimentais com
essa espécie de “piloto automático” foram os primeiros
resultados obtidos pela equipe do projeto, em 2002. Atualmente, os esforços
de pesquisa visam estender as estratégias de controle automático
para incluir as fases de decolagem, aterrissagem e vôo pairado, procedimentos
que nenhum dirigível no mundo é capaz de fazer de forma automática
no presente momento.
Outro
domínio de pesquisa, igualmente inovador, consiste em navegar o dirigível
por visão computacional, ou seja, capacitar o dirigível a desenvolver
trajetórias seguindo alvos visuais, indo além das coordenadas
geográficas atualmente em uso. Uma primeira versão nesse enfoque,
para o seguimento de alvos visuais caracterizados por retas, já foi
implementado no computador de bordo e encontra-se atualmente em experimentação.
A evolução dessa estratégia, além de considerar
outros tipos de alvos visuais, fixos ou móveis, visa também
e principalmente dotar o dirigível de capacidade de, baseado em visão,
criar um mapa representativo da região onde opera e conseguir localizar-se
com precisão neste mapa, aumentando consideravelmente sua capacidade
autônoma.
Pode-se
mencionar ainda a condução de outra linha de pesquisas para
aumentar o nível de autonomia do sistema. Um dos enfoques em curso
consiste na concepção de um nível hierárquico
superior, que por sua vez comanda as estratégias de controle e navegação
já descritas e situadas em um nível inferior. Esse nível
superior compreende a inteligência para percepção, diagnóstico
e tomada de decisão, necessária à operação
autônoma do dirigível robótico.
É
importante salientar que o Projeto Aurora é calcado em forte ação
colaborativa, no país e no exterior. As pesquisas em curso e os resultados
obtidos devem-se em grande parte à participação de pesquisadores
principalmente do Instituto Superior Técnico (IST) de Lisboa, Portugal,
e do Instituto Nacional de Pesquisa em Informática e Automação
(Inria) em Sophia Antipolis, França. A cooperação internacional
envolve também o Instituto de Sistemas e Robótica em Coimbra,
Portugal, e a Universidade de Carnegie Mellon em Pittsburgh, nos Estados Unidos.
No Brasil, os principais colaboradores são o Departamento de Ciências
da Computação da UFMG, o Departamento de Engenharia Aeronáutica
da Escola de Engenharia da USP/SC, o Inpe e a Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Os vôos experimentais são realizados na área
da 2ª Companhia de Comunicação Leve do Exército,
em Campinas, que presta o seu apoio ao projeto.
Em
termos estratégicos, pelo menos duas ações podem ser
citadas na evolução do Projeto Aurora. Uma delas, no âmbito
do próprio projeto, visa nacionalizar a tecnologia de fabricação
a aeronave, construindo no Brasil um dirigível não tripulado
de médio porte, com aproximadamente 25 quilos de carga útil,
ao qual será agregada a tecnologia de navegação autônoma
atualmente em desenvolvimento, originando assim um veículo apto a executar
uma grande variedade de aplicações em cenários mais realistas.
Esse esforço envolveria, por exemplo, a USP/SC e a pequena empresa
Ômega Aerosystem, de Santa Cruz da Conceição, SP. Um outro
viés estratégico, mais amplo e muito mais relevante, insere-se
no esforço de estabelecer, no país, um programa em Veículos
Aéreos Não-tripulados, articulando de forma estruturada os centros
de pesquisa, universidades, empresas desenvolvedoras, setores privados e governamentais
como usuários, e o governo como responsável pelo estabelecimento
de uma programa que abre um imenso potencial para o Brasil em termos de desenvolvimento
e domínio tecnológico, inovação e inserção
no mercado.
Samuel
Siqueira Bueno é pesquisador da Divisão de Robótica e
Visão Computacional do Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA),
do MCT.